Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0140773-47.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Suzano

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Suzano

 

Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 4.641, de 1º de março de 2013, do Município de Suzano, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre o atendimento escolar em período integral, e dá outras providências”.

2) A instituição de programas e serviços administrativos, por órgãos do Poder Executivo, é matéria da reserva da Administração e da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo, sendo inconstitucional lei de iniciativa parlamentar, maculada ainda pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual).

3) Disciplinar as ações que compõem o “atendimento escolar” é matéria de competência privativa do Executivo, que por seu órgão executivo próprio tem o poder de regulamentar o funcionamento das Escolas Municipais de Educação Infantil e Ensino Fundamental.

4) Violação do princípio da separação de poderes (art. 5º, art. 24, § 2º, 2, art. 47, II, XIV, XIX e art. 144 da Constituição do Estado). Procedência do pedido.

 

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente:

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 4.641, de 1º de março de 2013, do Município de Suzano, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre o atendimento escolar em período integral, e dá outras providências”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por conter vício de iniciativa e violação do princípio da separação dos poderes. Daí, a afirmação de ofensa ao disposto nos arts. 5º, 20, III, 47, inc. II, 25 e 144, da Constituição Estadual.

Foi deferido o pedido de liminar para suspender, com eficácia ex nunc, a vigência do ato normativo impugnado (fls. 30/31).

Citado regularmente, o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 42/44).

Notificado, o Presidente da Câmara Municipal prestou informações, atendo-se ao processo legislativo, (fls. 49/50).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Procede o pedido.

A Lei nº 4.641 de 1º de março de 2013, do Município de Suzano, de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após derrubada do veto do executivo, tem a seguinte redação:

         “Art. 1º. As Escolas Municipais de Educação Infantil e Ensino Fundamental devem prestar atendimento escolar a seus alunos pelo período de 8 (oito) horas.

         § 1º. O estabelecido no caput deste artigo vem dar cumprimento ao disposto no art. 87, § 5º da Lei nº 9394, de 26 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, bem como aos Objetivos e Metas para a Educação Infantil e Ensino Fundamental definidos no Plano Nacional de Educação - Lei Federal nº 10.172, de 09 de janeiro de 2001.

         § 2º. O período de atendimento e permanência de alunos nas Escolas Municipais de Educação Infantil e Ensino Fundamental de Suzano será ampliado de 4 (quatro) para 8 (oito) horas, de forma gradativa, a partir da regulamentação da presente Lei.

         Art. 2º. As reformas ou ampliações dos prédios escolares necessárias ao atendimento do determinado no art. 1º desta Lei deverão ser incluídas no orçamento anual na dotação "Reforma e Ampliação de Próprios Municipais" da pasta da Secretaria da Educação, do ano subsequente ao da aprovação da presente Lei.

         Art. 3º. O atendimento integral aos alunos da rede municipal, tanto na Educação Infantil como no Ensino Fundamental, deverá ser definido em Projeto Pedagógico fundamentado, que contemple os princípios estabelecidos pelos arts. 2º e 3º da Lei Federal nº 9.394, de 26 de dezembro de 1996, bem como os Objetivos e Metas para a Educação Infantil e o Ensino Municipal, definidos no Plano Nacional de Educação, Lei Federal nº 10.172, de 09 de janeiro de 2001.

         Art. 4º. Os procedimentos necessários par viabilização desta Lei, inclusive o Projeto Pedagógico referido no artigo anterior, serão determinados pelo Executivo Municipal na regulamentação da presente Lei.

         Art. 5º. As despesas com a execução desta lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas, se necessário.

         Art. 6º. Esta Lei entra em vigor no ano subsequente ao da aprovação da dotação orçamentária própria constante no orçamento anual do município de Suzano."

De início, verifica-se que a lei municipal impugnada traça metas a serem atingidas pela Administração (art. 3º), prevê reformas ou ampliações nos prédios escolares (art. 2º) e dispõe a respeito do período de atendimento das escolas aos alunos da rede municipal (art. 1º, caput e seu parágrafo 2º).

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é, pois, verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio da separação de poderes, previsto nos arts. 5º; 24, § 2º; e art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
(...)

§2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:
1 - criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;
2 - criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX; (NR)
(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A matéria disciplinada pela lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa do município, cuja direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A providência determinada pela lei é atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. O poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Assim, quando o Poder Legislativo do município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre no caso em exame, em função da forma de como se desencadearão as atividades de execução dos serviços públicos descritos nos arts. 1º e 3º, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade da providência determinada pela lei. Trata-se de atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que devem existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da Administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX, da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), por serem privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, quando ele mesmo não pudesse discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a lei, ao determinar providência administrativa, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.

De outro lado, e não menos importante, a lei local contestada colide frontalmente com o art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo.

A norma combatida não indicou de forma adequada os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordena atividade nova na Administração Pública, cuja instalação e desenvolvimento demandam meios financeiros que não foram previstos, não servindo a genérica menção a dotações orçamentárias próprias.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 4.641, de 1º de março de 2013, do Município de Suzano.

São Paulo, 18 de setembro de 2013.

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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