Parecer
Processo nº 0143068-57.2013.8.26.0000
Requerente: Prefeito Municipal de Iacanga
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Iacanga
Ementa:
1.
Ação direta de
inconstitucionalidade. Lei nº 1.361, de 16 de maio de 2013, do Município de Iacanga,
que “Dispõe sobre a obrigatoriedade por parte do Executivo de que seja
encaminhado para o Legislativo ao término de cada ano letivo um relatório
contendo todos os indicadores educacionais da rede pública municipal, bem como,
estabelecer a obrigatoriedade de que todos os estabelecimentos de ensino
municipal fixem em local visível e na entrada do estabelecimento uma placa
contendo os dados dos últimos quatro anos de seus respectivos IDEB’S (Índice de
Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo) e dá outras providências”.
2.
A prestação de contas
dos atos de gestão se insere no dever genérico do Chefe do Executivo. Ato discricionário
e sujeito à vontade política do governante.
3.
Extrapola a função
legislativa deliberar em caráter administrativo impondo ao Prefeito a obrigação
de colocar placa contendo os dados dos quatro últimos anos de seus respectivos
de IDEB’S (Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo) em
todos os estabelecimentos educacionais da rede municipal, bem como encaminhar
relatório anual, após o término de cada ano letivo, à Câmara Municipal,
contendo indicadores educacionais e, ainda, publicar todos os referidos dados,
até o último dia útil de cada ano, no site oficial da Secretaria Municipal de
Educação.
4. Matéria tipicamente administrativa. Iniciativa parlamentar. Invasão da esfera da gestão administrativa, reservada ao Poder Executivo Municipal. Criação de mecanismo de controle externo não previsto na sistemática constitucional. Violação ao princípio da separação de poderes (arts. 5º, 24, § 2º, 1 e 4, 47, II e XIV, 144 e 176, I da Constituição do Estado) e da simetria que deve existir, na matéria em relação aos modelos constitucionais de controle da Administração (arts. 33, 144 e 150 da Constituição do Estado).
5.
Parecer pela
procedência da ação.
Colendo Órgão Especial,
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente:
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Iacanga, tendo por objeto a Lei nº 1.361, de 16 de maio de 2013, do Município de Iacanga, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade por parte do Executivo de que seja encaminhado para o Legislativo ao término de cada ano letivo um relatório contendo todos os indicadores educacionais da rede pública municipal, bem como, estabelecer a obrigatoriedade de que todos os estabelecimentos de ensino municipal fixem em local visível e na entrada do estabelecimento uma placa contendo os dados dos últimos quatro anos de seus respectivos IDEB’S (Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo) e dá outras providências”, sob alegação de violação aos arts. 5º, 24, § 2º, 1 e 4, 25, 47, II, XIV e XIX, “a”, 144 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.
Foi deferida a liminar para a suspensão da eficácia do ato normativo impugnado até o final julgamento (fls. 30/31).
Notificado, o Presidente da Câmara Municipal sustentou a constitucionalidade do ato normativo impugnado (fls. 38/42) .
Citado regularmente, o Procurador Geral do Estado declinou de se manifestar sob o fundamento de que se trata de matéria exclusivamente local (fls. 71/73).
É a síntese do que consta dos autos.
O ato normativo impugnado, fruto de emenda parlamentar, cujo veto do Executivo foi derrubado pela Câmara Municipal, tem a seguinte redação:
“Art. 1º O Poder Executivo deverá estabelecer a obrigatoriedade de que todos os estabelecimentos de ensino municipal (fundamental inicial e final), a fixação de uma placa de 1,00 X 0,80 metros contendo os valores de seus respectivos IDEB’S e IDESP’S referente aos 4(quatro) últimos anos.
Parágrafo 1º - Essas informações deverão ser renovadas a cada ano letivo, sempre contendo os índices atuais e os dos três últimos anos anteriores para possibilitar o acompanhamento e a evolução dos índices educacionais nas escolas municipais de Iacanga.
Art. 2º - O Poder Executivo, através da Secretaria Municipal de Educação (SME), enviará e apresentará, após o término de cada ano letivo, à Câmara Municipal, um relatório anual contendo os indicadores educacionais citados no artigo 1º .
Art. 3º - Os indicadores educacionais a que se refere o artigo 2º a serem utilizados como parâmetros são:
I- Educação Infantil – Creche e Pré- Escola
a) número de alunos atendidos nas creches;
b) número de creches conveniadas;
c) número de vagas em creches;
d) número de alunos atendidos na pré-escola;
e) custo per capita dos alunos matriculados nessa modalidade (deve-se especificar qual a relação de custo que está sendo usada);
II- Alfabetização:
a) taxa de analfabetismo dos alunos com faixa etária entre 6 (seis) e 14 (quatorze) anos;
b) taxa de analfabetismo dos alunos matriculados no EJA – Educação de Jovens e Adultos.
III- Matrícula e evasão escolar:
a) número de alunos matriculados por modalidade de ensino – Educação Infantil, Ensino Básico e Fundamental;
b) índice de evasão escolar;
c) número de vagas ociosas por nível de escolaridade;
IV- Custo por aluno:
a) custo per capita dos alunos do ensino básico e fundamental devendo o Poder Executivo especificar qual a relação de custo que está sendo utilizado;
V- Taxa de distorção idade/série
VI- Funcionamento das unidades:
a) unidades com terceiro turno vigente;
b) unidades que tiverem a vigência de três turnos;
c) tempo que tais situações perduraram, caso tenham ocorrido;
VII- Docentes:
a) número total de professores;
b) número de professores em contrato temporário;
c) número de professores com pós – graduação “lato sensu”, em percentual;
d) número de professores com mestrado;
e) número de professores com doutorado;
f) remuneração média per capita (relação gastos com pessoal X número e docentes); e
g) piso e teto salarial dos professores por nível de ensino;
VIII- Programas:
a) Relacionar os programas de valorização e capacitação docente desenvolvidas para os professores da rede pública municipal.
b) Relacionar os programas realizados em parceria com as iniciativas pública e privada;
IX- Rendimento Escolar:
a) índice de aprovação/reprovação em razão de rendimento escolar;
b) índice de reprovação por faltas às atividades escolares;
X- Infra-estrutura:
a) relacionar o número total de unidades escolares da rede pública municipal de ensino e o número total de salas em efetiva utilização;
b) relacionar o total de unidades escolares com necessidades de recuperação da rede física, de acordo com os padrões básicos construtivos, com o respectivo número de salas de aula;
c) relacionar o total de escolas recuperadas com o número de salas de aulas, nas suas instalações físicas, de acordo com os padrões básicos construtivos-número de professores com pós-graduação “latu-senso”, em percentual;
d) relacionar as escolas com laboratório de informática;
e) relacionar as escolas com biblioteca;
f) relacionar as escolas com quadras poliesportivas cobertas e descobertas;
g) relacionar as escolas com laboratórios de ciências;
h) relacionar as atividades extracurriculares regulares como dança, música, instrumentos musicais, artesanato, educação ambiental.
Art. 4º - Fica o Poder Executivo obrigado a publicar todos os dados relacionados no art. 3º , até o último dia útil de cada ano, sistematizados e em formato de planilhas e relatórios, no site oficial da Secretaria Municipal de Educação.
Art. 5º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.
Como se pode observar, a
legislação impugnada, de iniciativa parlamentar, criou, no Município de Iacanga,
obrigatoriedade ao Prefeito Municipal de colocar placa contendo os dados dos
quatro últimos anos de seus respectivos de IDEB’S (Índice de Desenvolvimento da
Educação do Estado de São Paulo) em todos os estabelecimentos educacionais da
rede municipal, bem como encaminhar relatório anual, após o término de cada ano
letivo, à Câmara Municipal contendo os indicadores educacionais constantes do
art. 3º e, ainda, publicar todos os referidos dados, até o último dia útil de
cada ano, no site oficial da Secretaria Municipal de Educação.
Entretanto,
tal dispositivo é verticalmente incompatível com nossa ordem constitucional,
face à flagrante violação ao princípio da separação de poderes (art.5º c.c. o
art.144 da constituição Paulista).
É
ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo
cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de
planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder
Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a
função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e
abstração.
O
legislador municipal, na hipótese analisada, acolheu iniciativa parlamentar,
imiscuindo-se na fiscalização da qualidade de ensino dos estabelecimentos
educacionais municipais, a ser exercido pelo Chefe do Poder Executivo, em
virtude da regular administração do Município.
Referido
diploma, na prática, invadiu a esfera da
gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o
planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso
equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos
poderes.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa:
a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa,
convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos,
individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo
as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência
dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local.
Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções
é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também
toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou
do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos
órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo
Poder Judiciário” (Direito municipal
brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da
Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).
Ademais,
em se tratando se projeto de lei apresentado pelo próprio Legislativo,
configurado fica o vício de iniciativa.
Esse
E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais
de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo
na violação da regra da separação de poderes: ADI 149.044-0/8-00, rel. des.
Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j.
05.03.2008; entre outros.
A propósito, a Constituição
Estadual estabelece que:
“Artigo 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;
(...)
XIV - praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo”
Tal regramento deve ser observado
pelos Municípios por força do princípio da simetria previsto no art. 144 da
Constituição Paulista.
Anote-se,
ainda, que o legislador municipal ao criar obrigações de cunho administrativo
para a Administração Pública local, violou, igualmente, o art. 24, § 2º, 1 e 4,
da Constituição do Estado, eis que criou funções específicas à Secretaria
Municipal de Educação e, por conseguinte, aos servidores públicos municipais.
Por outro lado, a prestação de
contas das ações governamentais é atividade nitidamente administrativa
discricionária, representativa de atos de gestão, de escolha política. Assim,
privativa do Poder Executivo.
Abstraindo
quanto aos motivos que podem ter levado a tal solução legislativa, ela se
apresenta como manifestamente inconstitucional, por interferir na realização,
em certa medida, da gestão administrativa do Município.
Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando matéria relativa à gestão administrativa, como ocorre no caso em exame, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.
Também
por outro fundamento se chegará à conclusão de que o dispositivo impugnado é
inconstitucional.
Tanto
a Constituição Federal, como a Estadual, já estabelecem formas de controle
interno e externo, cuja essência deve ser seguida pelo legislador Municipal.
Recorde-se
a propósito o art. 31, § 1º, da CR/88 prevê que o controle externo da Câmara
Municipal sobre o Executivo será “exercido
com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos
Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver”.
Note-se,
também, que o art. 33 da Constituição Paulista prevê que o controle externo
seja exercido pela Assembleia Legislativa, com o auxílio do Tribunal de Contas,
com várias atribuições contidas em seus diversos incisos, que, em linhas
gerais, replicam as atribuições do Tribunal de Contas da União, cf. art. 71 da CR/88.
Por
seu turno, o art. 150 da Carta Paulista reitera a existência de sistemas de
controle interno, em cada Poder, e externo pela Câmara Municipal, com remissão
expressa ao art. 31 da CR/88.
Deste
modo, dentro das sistemáticas de controle interno e externo, previstas tanto no
texto da Constituição Federal, como na Estadual, não se identifica, nem de modo
distante, metodologia de fiscalização que se assemelhe àquela adotada pelo
legislador municipal, na legislação impugnada na presente ação.
Assim,
o ato normativo impugnado na presente ação, nitidamente: (a) violou o
necessário equilíbrio e harmonia que devem existir entre os Poderes Legislativo
e Executivo; (b) criou sistemática de controle não previsto na nossa ordem
constitucional; (c) desrespeitou, dessa forma, o “modelo” traçado pelo
constituinte para exercício do sistema de “freios e contrapesos”.
A inconstitucionalidade,
portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na
Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 33, 47, II e XIV, 150
e 144).
Não bastasse a inconstitucionalidade formal apontada o ato
normativo impugnado também viola os arts. 25 e 176, I da Constituição Paulista
por gerar despesas sem a indicação da respectiva fonte de custeio.
É evidente que a colocação das placas nos estabelecimentos
educacionais, bem como a publicação dos indicadores educacionais no site
oficial da Secretaria de Educação importarão em despesas públicas, o que impõe necessidade de
planejamento e previsão orçamentária, razão pela qual atribuição de iniciativa
privativa do Executivo e da limitação imposta pelo art. 25 da Constituição
Estadual.
Diante do exposto, o pedido deve ser julgado procedente
reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei nº 1.361, de 16 de maio de 2013,
do Município de Iacanga.
São Paulo, 23 de setembro de 2013.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
vlcb