Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0147238-72.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de São José do Rio Preto

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de São José do Rio Preto

 

Ementa:

1)     Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 11.348 de 21 de junho de 2013, do Município de São José do Rio Preto, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade dos Poderes Públicos Municipais para que incluam nos processos licitatórios, em qualquer modalidade, de contratação de empresas de serviços terceirizados com fornecimento de mão de obra, a apresentação na sua proposta, da indicação do sindicato representativo da categoria profissional e o índice salarial correspondente de acordo com a realidade do município de São José do Rio Preto."

2)     Lei que versa sobre normas gerais de licitação, que está na esfera de competência do legislador federal (art. 22, XXVII, da CR). Repartição de competências como manifestação do princípio federativo. Princípio constitucional estabelecido. Contrariedade ao art. 144, da Constituição do Estado.

3)     Procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 11.348 de 21 de junho de 2013, do Município de São José do Rio Preto, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade dos Poderes Públicos Municipais para que incluam nos processos licitatórios, em qualquer modalidade, de contratação de empresas de serviços terceirizados com fornecimento de mão de obra, a apresentação na sua proposta, da indicação do sindicato representativo da categoria profissional e o índice salarial correspondente de acordo com a realidade do município de São José do Rio Preto”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por violar o princípio da separação dos poderes, por conter vício de iniciativa e por ausência de competência legislativa do Município para tratar de matéria relativa às normas gerais de licitação.

A liminar foi concedida (fls. 18/19).

A Presidência da Câmara Municipal prestou informações, atendo-se ao processo legislativo (fls. 33/35).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo (fls. 30/31).

É o relato do essencial.

Procede o pedido.

A Lei nº 11.348, de 21 de junho de 2013, do Município de São José do Rio Preto, tem a seguinte redação:

         “Art. 1º - Todas as licitações realizadas pelos Poderes Públicos Municipais, que tenham como objeto a contratação de mão de obra terceirizada, obrigatoriamente, deverão apresentar, juntamente com a proposta, cópia do Termo de Acordo ou Convenção Coletiva de cada categoria representada por Entidades Sindicais do Município de São José do Rio Preto, quanto aos requisitos de salários e benefícios da categoria.

         Art. 2º - O não cumprimento das disposições desta lei desclassificará automaticamente o licitante.

         Art. 3º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação."

Verifica-se a existência de vício material, na medida em que a lei trata de questão que está na esfera da competência do legislador federal.

Observe-se que as fases do procedimento licitatório é matéria afeta às normas gerais de licitação, já prevista minuciosamente na Lei Federal n. 8.666, de 21 de junho de 1993, e suas alterações posteriores.

Legislar a respeito de normas gerais de licitação é da competência privativa do legislador federal, nos termos do art. 22, XXVII, da Constituição Federal.

Note-se: não se trata de invocar parâmetro contido na Constituição da República para fins de declaração de inconstitucionalidade de lei municipal. A impugnada lei viola o disposto no art. 144 da Constituição Paulista, que tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

(...)”

Um dos princípios constitucionais estabelecidos é o denominado princípio federativo, que está assentado nos arts. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.

Como é cediço, a Constituição da República estabelece a repartição constitucional de competências entre as diversas esferas da federação brasileira. E a repartição de competências entre os entes federados é o corolário mais evidente do princípio federativo.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13. ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).

Um dos aspectos de maior relevo, e que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo, adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia e dos respectivos limites, dos Estados, Distrito Federal, e Municípios, em relação à União.

Anota a propósito Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “‘a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4. ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).

Não pairaria qualquer dúvida a respeito da inconstitucionalidade de proposta de emenda constitucional ou de lei que sugerisse, por exemplo, a extinção da própria Federação: a Constituição veda proposta de emenda “tendente a abolir”, entre outros, “a forma federativa de Estado” (art. 60, § 4º, I, da CR/88).

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do C. Supremo Tribunal Federal, pois como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

"(...) a idéia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I)." (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).

Por essa linha de raciocínio, pode-se também afirmar que a lei municipal que regula matéria cuja competência é do legislador federal e do estadual está, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, a violar o princípio federativo.

A prescrição de que os Municípios devem observar os princípios constitucionais estabelecidos não se encontra apenas no art. 144 da Constituição Paulista. O art. 29, caput, da Constituição Federal prevê que “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado, e os seguintes preceitos (g.n.).”

Relevante anotar que quando do julgamento da ADI 130.227.0/0-00 em 21.08.07, rel. des. Renato Nalini, esse E. Tribunal de Justiça acolheu a tese no sentido da possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de lei municipal por violação do princípio da repartição de competências estabelecido pela Constituição Federal. É relevante trazer excerto de voto do i. Desembargador Walter de Almeida Guilherme, imprescindível para a elucidação da questão:

“(...)

 Ora, um dos princípios da Constituição Federal – e de capital importância – é o princípio federativo, que se expressa, no Título I, denominado ‘Dos Princípios Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...’.

Sendo a organização federativa do Estado brasileiro um princípio fundamental da República do Brasil, e constituindo elemento essencial dessa forma de estado a distribuição de competência legislativa dos entes federados, inescapável a conclusão de ser essa discriminação de competência um princípio estabelecido na Constituição Federal.

Assim, quando o referido art. 144 ordena que os Municípios, ao se organizarem, devem atender os princípios da Constituição Federal, fica claro que se estes editam lei municipal fora dos parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a esfera de competência legislativa da União, não estão obedecendo ao princípio federativo, e, pois, afrontando estão o art. 144 da Constituição do Estado (...) (trecho do voto do i. des. Walter de Almeida Guilherme, no julgamento da ADI 130.227.0/0-00).

(...)”

Assim estabelecida a questão, oportuna é a observação de que o parâmetro para aferição de constitucionalidade da norma somente pode ser feito com a Constituição Estadual, no caso, o art. 144, mas nunca com normas infraconstitucionais (Lei Orgânica do Município), a teor do que reza o art. 125, § 2º, da Constituição Federal.

Por outro lado, não colhe o entendimento de violação ao vício de inciativa, por incongruente, posto que se o Município é despido de competência legislativa para tratar da matéria em questão, jamais poderia haver iniciativa reservada para deflagração do processo legislativo por parte do Chefe do Poder Executivo.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 11.348, de 21 de junho de 2013, do Município de São José do Rio Preto.

 

São Paulo, 2 de outubro de 2013.

 

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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