Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0148076-49.2012.8.26.0000

Requerente: Partido Humanista da Solidariedade – PHS do Município de São José do Barreiro

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de São José do Barreiro

 

Ementa: Constitucional. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Decreto Legislativo nº 03, de 21 de junho de 2012, que “Dispõe sobre a suspensão dos efeitos do Decreto Legislativo que menciona e dá outras providências”, do Município de São José do Barreiro. Revisão de rejeição das contas públicas da Prefeitura Municipal relativas ao exercício financeiro de 2008 (Decreto Legislativo 01/2011). Necessidade do quórum de 2/3 dos membros da Câmara de Vereadores. Inconstitucionalidade constatada. Parecer pela procedência do pedido.

 

 

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Partido Humanista da Solidariedade – PHS, do Município de São José do Barreiro, em face do Decreto Legislativo nº 03, de 21 de junho de 2012, “Dispõe sobre a suspensão dos efeitos do Decreto Legislativo que menciona e dá outras providências”, do Município de São José do Barreiro.

Sustenta o autor que a lei padece de inconstitucionalidade porque foi aprovada por maioria simples dos membros da Câmara Municipal, quando a Constituição Federal e a Lei Orgânica do Município exigem o quórum de 2/3 dos membros.

O diploma teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 141/142). Contra tal decisão foi interposto agravo regimental, sem sucesso, no entanto (fls. 251/254).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações, em defesa da norma impugnada (fls. 240/246).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa da norma questionada, consignando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 288/289).

É a síntese do necessário.

Assim dispõe o Decreto Legislativo nº 03/2012, de São José do Barreiro:

“Artigo 1º - Ficam suspensos os efeitos do Decreto-Legislativo nº 01/2011, que rejeitou as contas públicas da Prefeitura Municipal de São José do Barreiro, relativas ao exercício financeiro de 2008.

Parágrafo único – a suspensão de que trata o caput deste artigo vigorará até a apreciação pelo Colendo Plenário da alteração do Decreto-Legislativo nº 01/2011 e adequação do mesmo à alínea ‘g’, do art. 1º, da Lei-Complementar 64/90.

Artigo 2º - O presente Decreto-Legislativo entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

O Decreto Legislativo n. 03/2012 da Câmara Municipal de São José do Barreiro contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos arts. 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal.

Os preceitos da Constituição Federal e da Constituição Estadual são aplicáveis aos Municípios não só pelo art. 29 da Constituição da República, mas, também, por força do art. 144 da Constituição do Estado que assim estabelece:

“Artigo 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

A norma contestada é incompatível com os seguintes preceitos da Constituição Estadual:

“Artigo 20 - Compete exclusivamente à Assembleia Legislativa:

(...)

VI - tomar e julgar, anualmente, as contas prestadas pela Mesa da Assembleia Legislativa, pelo Governador e pelo Presidente do Tribunal de Justiça, respectivamente do Poder Legislativo, do Poder Executivo e do Poder Judiciário, e apreciar os relatórios sobre a execução dos Planos de Governo;

(...)

Artigo 33 - O controle externo, a cargo da Assembleia Legislativa, será exercido com auxílio do Tribunal de Contas do Estado, ao qual compete:

I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Governador do Estado, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias, a contar do seu recebimento;

II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, incluídas as fundações instituídas ou mantidas pelo Poder Público estadual, e as contas daqueles que derem perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário;

(...)

IX - aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;

(...)

Artigo 150 - A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do Município e de todas as entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, finalidade, motivação, moralidade, publicidade e interesse público, aplicação de subvenções e renúncia de receitas, será exercida pela Câmara Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno de cada Poder, na forma da respectiva lei orgânica, em conformidade com o disposto no artigo 31 da Constituição Federal”.

Esses preceitos reproduzem o quanto disposto na Constituição Federal:

“Art. 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na forma da lei.

§ 1º - O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver.

§ 2º - O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal.

(...)

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

(...)

IX - julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República e apreciar os relatórios sobre a execução dos planos de governo;

(...)

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:

I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;

II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;

(...)

VIII - aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário;

(...)

§ 3º - As decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terão eficácia de título executivo”.

Não é ocioso frisar que as normas constitucionais centrais são disposições de observância obrigatória e já eram aplicáveis na órbita estadual e municipal por força do caráter remissivo dos arts. 144 e 150 da Constituição Estadual.

Apenas para o devido registro, é cabível o contraste da lei local com a Constituição Federal a partir das normas remissivas contidas nos arts. 144 e 150 da Constituição Estadual e que determina a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal.

Trata-se de “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).

Daí resulta a possibilidade de contraste da norma local com os arts. 144 e 150 da Constituição Estadual, por sua remissão à Constituição Federal e, em especial, aos arts. 31, § 2º, 49, IX, 71, I, II e VIII, e § 3º, no tocante às competências opinativas (ou auxiliares) e decisórias do Tribunal de Contas até porque o modelo federal desse órgão de controle externo é de observância compulsória pelos Estados, como já decidido:

“(...) 3. A Constituição Federal é clara ao determinar, em seu art. 75, que as normas constitucionais que conformam o modelo federal de organização do Tribunal de Contas da União são de observância compulsória pelas Constituições dos Estados-membros. (...)” (RTJ 200/719).

No atual estágio do direito constitucional brasileiro o Tribunal de Contas é órgão opinativo no tocante ao julgamento das contas do Chefe do Poder Executivo que é da alçada exclusiva do Poder Legislativo.

E é órgão decisório, com capacidade deliberativa própria e insuscetível de revisão pelo Poder Legislativo, no que pertine ao julgamento das contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, e também na aplicação aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, das sanções previstas em lei, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário, a qual tem eficácia de título executivo.

Neste sentido pronuncia a jurisprudência:

“Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Constituição do Estado do Tocantins. Emenda Constitucional n° 16/2006, que criou a possibilidade de recurso, dotado de efeito suspensivo, para o Plenário da Assembléia Legislativa, das decisões tomadas pelo Tribunal de Contas do Estado com base em sua competência de julgamento de contas (§ 5o do art. 33) e atribuiu à Assembléia Legislativa a competência para sustar não apenas os contratos, mas também as licitações e eventuais casos de dispensa e inexigibilidade de licitação (art. 19, inciso XXVIII, e art. 33, inciso IX e § 1º). 3. A Constituição Federal é clara ao determinar, em seu art. 75, que as normas constitucionais que conformam o modelo federal de organização do Tribunal de Contas da União são de observância compulsória pelas Constituições dos Estados-membros. Precedentes. 4. No âmbito das competências institucionais do Tribunal de Contas, o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a clara distinção entre: 1) a competência para apreciar e emitir parecer prévio sobre as contas prestadas anualmente pelo Chefe do Poder Executivo, especificada no art. 71, inciso I, CF/88; 2) e a competência para julgar as contas dos demais administradores e responsáveis, definida no art. 71, inciso II, CF/88. Precedentes. 5. Na segunda hipótese, o exercício da competência de julgamento pelo Tribunal de Contas não fica subordinado ao crivo posterior do Poder Legislativo. Precedentes. 6. A Constituição Federal dispõe que apenas no caso de contratos o ato de sustação será adotado diretamente pelo Congresso Nacional (art. 71, § 1º, CF/88). 7. As circunstâncias específicas do caso, assim como o curto período de vigência dos dispositivos constitucionais impugnados, justificam a concessão da liminar com eficácia ex tunc. 8. Medida cautelar deferida, por unanimidade de votos” (RTJ 200/719).

Não é lícito ao Poder Legislativo investir-se em competências que são exclusivamente reservadas ao Tribunal de Contas, como já decidido:

“DIREITO CONSTITUCIONAL. TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO: COMPETÊNCIAS RESERVADAS. ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DE TEXTOS DE LEI COMPLEMENTAR E DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE RORAIMA. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AOS ARTIGOS 49, IX, 71, I E II, 73, ‘CAPUT’ E 96, C/C ARTIGO 75 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. Está parcialmente prejudicada a presente Ação, no ponto em que impugna os artigos 1º, inciso II, e 38, ambos da Lei Complementar nº 6, de 24.06.1994, cuja redação foi, posteriormente à propositura, alterada pela Lei Complementar nº 12, de 11.09.1995. 2. A Emenda Constitucional n° 2, de 10.06.1994, deu nova redação ao inciso III e acrescentou o inciso IV ao art. 33 da Constituição do Estado de Rondônia, nestes termos: ‘Art. 33 - É da competência exclusiva da Assembleia Legislativa: III - julgar as contas do Tribunal de Contas do Estado, do Tribunal de Justiça e do Ministério Público; IV - julgar as contas do Poder Legislativo apresentadas obrigatoriamente pela Mesa;’ 3. A mesma E.C. 2/94 acrescentou parágrafo único e o inciso I ao art. 49 da Constituição Estadual deste teor: ‘Parágrafo Único - Compete ao Tribunal de Contas do Estado: I - apreciar as contas prestadas anualmente pelo Governador do Estado e pelo Presidente da Assembleia Legislativa mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar do seu recebimento’. 4. Tais normas e expressões atribuíram à Assembleia Legislativa do Estado de Roraima competências que a Constituição conferiu, no plano federal, ao Tribunal de Contas da União e, no plano estadual, ao Tribunal de Contas da unidade da Federação, entre elas a de julgar as contas do Tribunal de Contas, do Tribunal de Justiça, do Ministério Público, e do Poder Legislativo do Estado (artigos 71, II, 75 e 25 da Constituição Federal). 5. Precedentes. 6. Ação Direta julgada procedente, pelo S.T.F., declarando a inconstitucionalidade dos incisos III e IV do art. 33, bem como da expressão ‘e pelo Presidente da Assembleia Legislativa’, constante do inciso I do parágrafo único do art. 49, todos da Constituição do Estado de Roraima, com a redação dada pela E.C. nº 2, de 10.06.1994” (STF, ADI 1.140-RR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sydney Sanches, 03-02-2003, v.u., DJ 26-09-2003, p. 04).

Tratando-se do controle externo da Administração Pública as competências são de direito estrito porque remetem à divisão funcional do poder e ao sistema de freios e contrapesos desenvolvido na norma constitucional central.

A Câmara de Vereadores, ao editar o decreto legislativo enfocado, na medida em que suspendeu os efeitos do Decreto Legislativo n. 01/2011, que havia rejeitado as contas públicas da Prefeitura Municipal de São José do Barreiro, relativas ao exercício de 2008, fez novo juízo de valor. Passou a aprovar o que anteriormente desaprovara. Deveria, neste passo, observar tanto as normas constitucionais que dizem respeito ao controle das contas públicas municipais, exercido pelo Tribunal de Contas, quanto àquelas relativas ao quórum de 2/3 dos membros da Câmara de Vereadores exigido para o caso de desacolhimento do parecer prévio emitido por aquele Tribunal. Como assim não procedeu, maculou de inconstitucionalidade o diploma editado.

Por tudo quanto exposto, o parecer é pela procedência da ação.

 

São Paulo, 03 de setembro de 2013.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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