Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0149070-43.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeita Municipal de Ribeirão Preto

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Ribeirão Preto

 

 

 

Ementa: 1) Lei municipal de iniciativa parlamentar que institui sistema de “Responsabilidade Social” no Município. 2) Diploma que cria órgãos novos no âmbito da Administração, e confere atribuições a estes e a outros já existentes, violando o disposto no art. 24 § 2º, n. 2, da Constituição Estadual. 3) Diploma que cria programa governamental, com providências para concretização da “Responsabilidade Social”, bem como de ordem administrativa, interferindo na esfera da gestão governamental (planejamento, deliberação, organização, programação, direção e execução). Quebra da separação entre os Poderes, violando o art. 5º, art. 37 e art. 47 II e XIV, da Constituição do Estado. 4) Lei que estabelece matérias de inclusão obrigatória na legislação orçamentária, cuja iniciativa é reservada ao Poder Executivo, violando o disposto no art. 174 da Constituição do Estado. 5) Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito Municipal de Ribeirão Preto, tendo como alvo a Lei nº 11.272, de 22 de junho de 2007, daquele Município.

O diploma teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se, pois, ao pedido liminar (fl. 41).

Citado, o Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado (fls. 49/50).

A Presidência da Câmara Municipal prestou informações, em defesa da constitucionalidade da norma impugnada (fls. 54/57).

Em resumo, é o que consta nos autos.

1) Do ato normativo impugnado.

A Lei nº 11.272, de 22 de junho de 2007, decorrente de projeto de lei de iniciativa parlamentar, e que, conforme respectiva rubrica, “INSTITUI A LEI DE RESPONSABILIDADE SOCIAL DO MUNICÍPIO DE RIBEIRÃO PRETO E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS, tem a seguinte redação:

“CAPÍTULO I

DA RESPONSABILIDADE SOCIAL

Art. 1º. Pessoas físicas e jurídicas socialmente responsáveis são aquelas que conduzem seus interesses com o objetivo de se tornarem parceiras e co-responsáveis pelo desenvolvimento social e sustentável.

Art. 2º. A responsabilidade social no Município de Ribeirão Preto, objetiva o desenvolvimento social e sustentável do seu capital social a partir dos cidadãos, individualmente ou integrados em organizações de direito público e privado, priorizando a garantia das mínimas condições de existência dos seus cidadãos.

Art. 3º. A responsabilidade social no Município de Ribeirão Preto será executada de forma planejada, transparente, integrada e descentralizada, com a participação de organizações de direito público e privado.

Art. 4º. A política de gestão da Administração Pública do Município de Ribeirão Preto, seus princípios e diretrizes, deve pautar-se pelos padrões de Responsabilidade Social.

CAPÍTULO II

DA GESTÃO DA RESPONSABILIDADE SOCIAL

Art. 5º. A gestão da Responsabilidade Social municipal será realizada pela Secretaria Municipal de Assistência Social, de acordo com os princípios e diretrizes da política pública municipal de Responsabilidade Social definidos no Fórum de Responsabilidade Social Municipal.

 

Art. 6º. Os Conselhos municipais que tenham por competência constitucional a consulta, deliberação e elaboração de políticas públicas de desenvolvimento social e sustentável serão monitorados por indicadores contínuos, através de métodos quantitativos e qualitativos, que objetivem a aferição de resultados, efeitos e impactos da sua atuação, através do Fórum de Responsabilidade Social.

Capítulo III

DOS INSTRUMENTOS DE GESTÃO PÚBLICA

Art. 7º. Compõem a gestão socialmente responsável do Município de Ribeirão Preto os seguintes indicativos de planejamento:

I – o mapa social: demonstração do índice de desenvolvimento social por área geográfica, utilizando-se as informações arquivadas no ano anterior pelo Órgão Gestor;

II – o diagnóstico social:  cadastro dos programas e projetos realizados com indicadores quantitativos e qualitativos, e sistema de controle e monitoramento;

III – o diagnóstico do capital social: grau de confiança que a população do Município possui em si mesma e nas suas instituições como capazes de solucionar seus problemas;

IV – o cadastro de instituições: cadastro das pessoas físicas e jurídicas que atuam no Município e empreendem ações de desenvolvimento social e sustentável;

V – o cadastro do voluntariado: sistema de cadastro de pessoas físicas, voluntárias, com informações que definam sua área de atuação, período e horário comprometido para a prestação de serviços voluntários, dentre outras informações, disponível aos munícipes e organizações que promovam o desenvolvimento social e sustentável;

Art. 8º. Integrará o Plano Pluri-Anual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei Orçamentária Anual do Município, o Plano de Metas Pluri-Anual Social e o Plano de Metas Social Anual respectivamente.

Parágrafo único. No Plano de Metas Pluri-Anual Social e Plano de Metas Social Anual estarão contidas as disposições concernentes às políticas públicas dos planos desenvolvidos pelos conselhos municipais, em suas respectivas áreas de atuação.

Art. 9º. As metas de Responsabilidade Social a serem estabelecidas no Plano Pluri-Anual e na Lei Orçamentária Anual serão definidas com a participação da sociedade organizada, legitimada pelo Fórum de Responsabilidade Social.

CAPÍTULO IV

DO FÓRUM DE RESPONSABILIDADE SOCIAL

Art. 10. Fica instituído no Município de Ribeirão Preto, permanentemente, o Fórum de Responsabilidade Social, que se reunirá anualmente, tendo por competência:

I – elaborar, programar e sugerir a política pública municipal de Responsabilidade Social;

II – monitorar e avaliar as políticas públicas e privadas de Responsabilidade Social;

III – monitorar e avaliar, através de indicadores contínuos e métodos quantitativos e qualitativos, os efeitos e impactos da atuação dos Conselhos Municipais;

IV – avaliar e conferir o Certificado Municipal de Responsabilidade Social.

Art. 11. O Poder Executivo estabelecerá os componentes e a forma de funcionamento do Fórum de Responsabilidade Social e órgãos internos do mesmo, por meio de lei específica, a ser aprovada pela Câmara Municipal.

Parágrafo único. Dentre outros, o Fórum de Responsabilidade Social de Ribeirão Preto, será composto por servidores públicos, representantes de entidades de classe, associações de bairros e de todos os conselhos municipais de direitos.

Art. 12. Para a execução das políticas públicas elaboradas no Fórum de Responsabilidade Social o Poder Executivo poderá firmar parcerias com organizações da sociedade civil de direito privado, sem fins lucrativos, para apoio e execução das deliberações sugeridas.

CAPÍTULO V

DO BALANÇO SOCIAL MUNICIPAL

Art. 13. Anualmente, o Poder Executivo encaminhará ao Poder Legislativo o Balanço Social Municipal, referente ao exercício anterior, com avaliações e considerações relativas aos aspectos quantitativos e qualitativos das ações realizadas.

CAPÍTULO VI

DO CERTIFICADO DE RESPONSABILIDADE SOCIAL

Art. 14. Fica instituído o Certificado de Responsabilidade Social do município de Ribeirão Preto, a ser conferido às pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, anualmente, que apresente o seu Balanço Social do exercício imediatamente anterior.

Art. 15. Para participarem do concurso as pessoas físicas e jurídicas enviarão ao Fórum Municipal de Responsabilidade Social, até o último dia útil do mês de junho do ano seguinte a que se refere o Balanço, que deve ser elaborado observando-se os princípios e referência do IBASE – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas.

§1º. Dentre os aspectos a serem considerados por ocasião da pontuação e escolha, constarão:

I – pagamento regular pela empresa dos tributos municipais, estaduais e federais;

II – pagamento regular dos encargos sociais incidentes sobre a folha de pagamento;

III – condições de trabalho existente na empresa, compreendendo higiene, instalações sanitárias, alimentação dos empregados, programa de saúde e medicina preventiva, programas de qualidade de vida, atividades recreativas e transporte;

IV – benefícios diversos – participação dos empregados no resultado econômico, seguro de vida, empréstimos, programas de educação, treinamento e estágios;

V – participação comunitária – participação da empresa e do seu quadro de funcionários voluntários nas áreas da cultura, esportes, saúde pública, educação, segurança pública, defesa civil, meio-ambiente, assistência social e outros investimentos sociais na comunidade;

VI – políticas administrativas adotadas visando incluir socialmente determinados seguimentos sociais;

VII – contribuições voluntárias a fundos especiais sociais;

VIII – outras ações que promovam o desenvolvimento social e sustentável.

§ 2º. Para fazer jus à comenda o postulante precisará auferir uma soma mínima de pontos relativos a indicadores que abordem aspectos internos e externos, quantitativos e qualitativos de Responsabilidade Social, por deliberação da Comissão de Análise e Fiscalização.

§ 3º. A comissão de Análise e Fiscalização será constituída por membros do Fórum Municipal de Responsabilidade Social, conforme previsto no art. 11.

Art. 16. As pessoas físicas ou jurídicas certificadas como de Responsabilidade Social poderão utilizar a comenda na embalagem dos seus produtos, serviços e materiais publicitários, sem ônus.

Parágrafo único. A comenda será um certificado que anualmente terá um selo artisticamente elaborado.

CAPÍTULO VII

DOS INCENTIVOS FISCAIS

Art. 17. O Município de Ribeirão Preto concederá isenção fiscal às organizações privadas que se cadastrarem como empresas socialmente responsáveis, e que apresentem projetos que visem o desenvolvimento social e sustentável do seu capital social, aprovados pelos respectivos Conselhos Municipais da área abrangida pelo projeto ou, em sua falta, pela Secretaria Municipal de Assistência Social.

Parágrafo único. Decreto do Poder Executivo regulamentará a forma de cadastro, avaliação do projeto e concessão dos incentivos fiscais, com a definição de percentuais a serem deliberados, controle e monitoramento da aplicação dos recursos.

CAPÍTULO VIII

DAS DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 18. Todas as informações dos instrumentos de gestão pública, pelas deliberações e políticas definidas no Fórum de Responsabilidade Social, pelo Balanço Social Municipal, pelos balanços sociais certificados com a comenda de responsabilidade social e as pessoas físicas ou jurídicas beneficiadas pelos incentivos fiscais, resguardadas aquelas legalmente protegidas pelo sigilo fiscal, serão disponibilizadas, por quaisquer um dos meios de divulgação utilizados pelo poder público, para consulta de qualquer cidadão.

CAPÍTULO IX

DAS DISPOSIÇÕES FINAIS E TRANSITÓRIAS

Art. 19. O mapa social do Município, de que trata o inciso I do art. 7º, no primeiro ano de vigência desta lei, será elaborado em conformidade a Lei nº 9163 de 05 de abril de 2001.

Art. 20. As despesas decorrentes da execução desta lei correrão por conta das dotações próprias consignadas no Orçamento do Município de Ribeirão Preto.

Art. 21. Esta lei entra em vigor na data da sua publicação, passando a gerar seus efeitos a partir do exercício de 2008.”

Após sua aprovação na Câmara Municipal, o projeto foi vetado integralmente pelo Chefe do Executivo, sendo o veto afastado e, finalmente, promulgada a lei.

Eis os dispositivos da Constituição Estadual, segundo o autor, violados pelo ato normativo impugnado: arts. 5º; 24, § 2º; 25; 37; 47 inciso XVII; 174, incs. II, III e § 6º; e 144.

Como se demonstrará, a ação merece acolhimento, na medida em que o ato normativo impugnado é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo.

2) Vício de iniciativa e separação de poderes.

O primeiro aspecto que merece análise diz respeito ao vício de iniciativa, bem como ao princípio da separação dos Poderes, que decorrem do disposto nos arts. 5º, 24, § 2º, 37 e 47, incisos II e XIV, todos da Constituição do Estado de São Paulo, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da referida Carta.

É ponto pacífico na doutrina bem como na jurisprudência que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, deliberação, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

De outra sorte, decorre da sistemática da separação de Poderes que há certas matérias cuja iniciativa legislativa é reservada ao Poder Executivo.

A propósito, a Constituição do Estado prescreve iniciativa privativa do Chefe do Executivo para leis que versem, em síntese, sobre: cargos, funções e empregos públicos na administração direta e indireta e sua remuneração; criação e extinção de órgãos na administração pública; regime jurídico dos servidores públicos; regime dos servidores militares; criação de cartórios notariais e de registros públicos (cf. art. 24, § 2º, n. 1 a 6, da Constituição Estadual). Reitera a Carta Paulista, em linhas gerais, as limitações contidas no art. 61, §1º, inciso II, da Constituição Federal.

De outro lado, a Constituição do Estado de São Paulo também determina que cabe ao Executivo exercer a direção superior da Administração Estadual, bem como a prática de atos de administração (art. 47, incisos II e XIV).

O princípio da independência e da harmonia entre os Poderes, adotado expressamente no ordenamento constitucional brasileiro, não coloca o Executivo em posição de preeminência, e o Legislativo em situação de mera coadjuvação. É indispensável vislumbrar na proporcionalidade de forças na formulação das opções políticas do Estado, decorrente do sistema de separação associado aos freios e contrapesos (checks and balances), que Executivo e Legislativo, atuando em suas respectivas esferas de atribuição, possuem a mesma relevância política.

Assim como o Executivo não deve sofrer indevida interferência em sua primacial função de administrar (planejamento, deliberação, direção, organização e execução das atividades da Administração), o Legislativo não deve ver minimizada sua atividade de legislar. Afinal, em última análise, nosso regime democrático é representativo, e o Poder Legislativo, em sede de elaboração legislativa, reflete a própria voz da vontade popular.

Note-se, de início, que a essência da separação de Poderes, como ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho, é a “proteção da independência de determinado Poder, como ocorre com a de iniciativa em favor do Judiciário, que aliás, procede da inspiração que em Montesquieu sugeria a atribuição de veto ao Executivo, ou a redução das despesas públicas”(Do processo legislativo, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p.147).

Como anota José Afonso da Silva, nos casos de iniciativa reservada aos Chefes do Executivo só estes “estão em condições de saberem quais são esses interesses e como fazerem para resguardá-los” (Processo constitucional de formação das leis, 2ª ed., São Paulo, Malheiros, 2006, p.179).

Deve-se notar também que a regra em nosso regime constitucional é a livre iniciativa legislativa, que decorre do art. 61, caput, da CF, ao passo que as hipóteses de iniciativa reservada são excepcionais. Como tal é curial que regras de exceção sejam interpretadas restritivamente, sem a possibilidade de extensão por integração ou interpretação analógica.

Lembrando o brocardo latino segundo o qual “exceptiones sunt strictissimae interpretanionis”, há muito Carlos Maximiliano anotava que “as disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas jurídicas ou contra o direito comum, por isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente” (Hermenêutica e aplicação do direito, 18ªed., Rio de Janeiro, Revista Forense, 1999, p.227).

O Pretório Excelso já assentou que as hipóteses indicadas pelo texto constitucional como casos de iniciativa legislativa privativa do Executivo, assumindo o caráter de direito excepcional, na expressão de Carlos Maximiliano, devem ser interpretadas de forma restritiva. Confira-se:

"O respeito às atribuições resultantes da divisão funcional do Poder constitui pressuposto de legitimação material das resoluções estatais, notadamente das leis. Prevalece, em nosso sistema jurídico, o princípio geral da legitimação concorrente para instauração do processo legislativo. Não se presume, em conseqüência, a reserva de iniciativa, que deve resultar — em face do seu caráter excepcional — de expressa previsão inscrita no próprio texto da Constituição, que define, de modo taxativo, em numerus clausus, as hipóteses em que essa cláusula de privatividade regerá a instauração do processo de formação das leis. O desrespeito à prerrogativa de iniciar o processo legislativo, quando resultante da usurpação do poder sujeito à cláusula de reserva, traduz hipótese de inconstitucionalidade formal, apta a infirmar, de modo irremissível, a própria integridade do diploma legislativo assim editado, que não se convalida, juridicamente, nem mesmo com a sanção manifestada pelo Chefe do Poder Executivo (...).”(ADI 776-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-10-92, DJ de 15-12-06, g.n.).  

         "A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição — e nele somente —, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima — considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa — se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa." (MS 22.690, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-4-97, DJ de 7-12-06, g.n.).

Tornemos então ao caso em exame.

A Lei 11.272/2007, de Ribeirão Preto, partindo de iniciativa parlamentar, ao instituir sistemática de “Responsabilidade Social” no Município, disciplinou matérias para as quais há iniciativa privativa do Chefe do Executivo.

Além disso, acabou por invadir a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve, como visto, o planejamento, a deliberação, a direção, a organização e a execução de atos de governo e políticas públicas. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos Poderes.

Em síntese, o legislador municipal feriu tanto a reserva de iniciativa em matérias atinentes exclusiva e reservadamente ao Executivo, como ainda adentrou na esfera da gestão governamental, inerente, do mesmo modo, ao Chefe do Executivo Municipal.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ª ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis de efeitos concretos, ou que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que deve existir entre os Poderes.

É oportuno destacar, do ato normativo em exame, ainda que de forma exemplificativa, vários dispositivos que deixaram nítida a violação dos dois princípios acima indicados (reserva de iniciativa e separação de poderes):

a) a lei como um todo, ao tratar de aspecto atinente ao programa de governo, pautando a programação da atuação governamental pela temática da “Responsabilidade Social”, embora com excelente intento, incidiu em esfera de decisão política que se enquadra no conceito de gestão administrativa (planejamento, deliberação, organização, direção e execução de atos de gestão política e administrativa);

b) o art. 5º da Lei nº 11.272/2007 criou nova atribuição para a Secretaria Municipal de Assistência Social, consistente na gestão da Responsabilidade Social, violando a reserva de iniciativa legislativa para tratar de órgãos da Administração;

c) o art. 5º criou parâmetros para o exercício da “gestão pública”, interferindo diretamente na esfera de planejamento e deliberação de cunho político-administrativo, nitidamente atinentes ao Executivo;

d) os arts. 8º e 9º limitam a atuação do Executivo, na medida que determinam matérias que deverão constar obrigatoriamente da Lei de Diretrizes Orçamentárias e do Plano Plurianual, quais sejam, o “Plano de Metas Pluri-Anual Social” e o “Plano de Metas Social Anual”, ferindo tanto a iniciativa reservada em matéria orçamentária, como ainda a ingressando na esfera da gestão administrativa;

e) os arts. 10, 11 e 12 tratam da criação de novo órgão administrativo, denominado “Fórum de Responsabilidade Social”, a ser regulamentado pelo Poder Executivo e composto parcialmente por servidores públicos, com atribuições para interferir diretamente na formulação de políticas públicas no âmbito do Município; ferindo-se aí tanto a iniciativa reservada para criação de órgão, como ainda a esfera de gestão administrativa;

f) o art. 13 interfere diretamente na gestão administrativa, ao criar para o Poder Executivo a obrigação de remessa de informações ao Legislativo sobre o “Balanço Social Municipal”, em nítida quebra do equilíbrio entre os Poderes;

g) os §§ 2º e 3º do art.15 criam outro órgão, a “Comissão de Análise e Fiscalização”, regulada por Decreto do Poder Executivo, com atribuição, entre outras coisas, para expedir “Certificado de Responsabilidade Social”, o importa violação da iniciativa reservada para criação de órgão administrativo, bem como quebra da separação de Poderes, na medida em que o legislador cria para o Executivo a obrigação de adoção de providência administrativa, consistente na emissão do aludido certificado;

h) o art. 17 interfere na esfera da gestão administrativa, que envolve o planejamento, a deliberação, a organização, a direção e a execução, ao prever a concessão de isenções fiscais para empresas que se cadastrarem como “socialmente responsáveis”; conferindo ainda atribuição de aprovação de projetos a Conselhos Municipais e à Secretaria Municipal de Assistência Social;

i) a lei provoca direta ou indiretamente, para sua execução, o aumento de despesas, o que interfere na gestão administrativa.

Ademais, em outra perspectiva, é possível afirmar que a Lei 11.272/2007 de Ribeirão Preto, ao instituir a chamada “Responsabilidade Social”, tem também cunho “autorizativo”, “permitindo” ao Executivo local a implementação de providências que estão estritamente ligadas à sua própria esfera de atuação.

Em trabalho, publicado na Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da Instituição Toledo de Ensino (Bauru, n. 29, ago/nov. 2000, pp. 259-267), disponível também na internet (Endereço eletrônico: www.srbarros.com.br), sustenta o Professor Sérgio Resende de Barros:

         “Em 17 de março de 1982 – ainda sob a Constituição (Emenda Constitucional nº 1/69) anterior à atual – o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou representação (nº 993-9) por inconstitucionalidade de uma lei estadual (Lei nº 174, de 8/12/77, do Estado do Rio de Janeiro) que autorizava o Chefe do Poder Executivo a praticar ato que já era de sua competência constitucional privativa. Nesse julgamento, decidiu, textualmente: O só fato de ser autorizativa a lei não modifica o juízo de sua invalidade por falta de legítima iniciativa. Não obstante a clareza do acórdão (Diário da Justiça de 8/10/82, p. 10187, Ementário nº 1.270-1, RTJ 104/46), persistiu por toda a Federação brasileira, nos níveis estadual e municipal, a prática de "leis" autorizativas (....).

Insistente na prática legislativa brasileira, a "lei" autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de "leis" passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu "lei" autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente. Autorizativa é a "lei" que – por não poder determinar – limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da "lei" começa por uma expressão que se tornou padrão: "Fica o Poder Executivo autorizado a...". O objeto da autorização – por já ser de competência constitucional do Executivo – não poderia ser "determinado", mas é apenas "autorizado" pelo Legislativo. Tais "leis", óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente.

 (...)

         Pelo que, se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei é inconstitucional. Não é só inócua ou rebarbativa. É inconstitucional, porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir, ferindo a Constituição por ele estatuída. O fato de ser mera autorização não elide o efeito de dispor, ainda que de forma não determinativa, sobre matéria de iniciativa alheia aos parlamentares. Vale dizer, a natureza teleológica da lei – o fim: seja determinar, seja autorizar – não inibe o vício de iniciativa. A inocuidade da lei não lhe retira a inconstitucionalidade. A iniciativa da lei, mesmo sendo só para autorizar, invade competência constitucional privativa.

 (...)

Em suma, as "leis" autorizativas são inconstitucionais:

a.       por vício formal de iniciativa, invadindo campos em que compete privativamente ao Chefe do Executivo iniciar o processo legislativo;       

b.       por usurparem a competência material do Poder Executivo, disposta na Constituição, nada importando se a finalidade é apenas autorizar;      

c.       por ferirem o princípio constitucional da separação de poderes, tradicional e atual na ordenação constitucional brasileira.”

Esse entendimento já foi adotado pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

         “A lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo, portanto inconstitucional”. (ADIN n. 593099377 – rel. Des. Maria Berenice Dias – j. 7.8.00).

Na prática, a lei em exame criou obrigação para o Poder Executivo Municipal, no sentido de realizar o programa de “Responsabilidade Social” pública e privada.

         Mutatis mutandis, já proclamou esse Egrégio Plenário que:

 

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adi n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

Cumpre recordar, por oportuno, que em casos como o presente, esse E. Tribunal de Justiça tem também reconhecido a inconstitucionalidade de leis por violação ao art. 25 da Constituição Estadual, em razão da ausência de indicação de recursos disponíveis para o pagamento da despesa criada (ADIs ns. 18.628-0, 13.796-0, 38.249-0, 36.805.0/2, 38.977.0/0).

3) Reserva de iniciativa em matéria orçamentária.

Apenas para conferir destaque a outro fundamento para o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei em exame, já mencionado anteriormente, deve-se lembrar que ela fere a iniciativa reservada do Poder Executivo para matéria orçamentária.

Como visto anteriormente, a Lei 11.272/2007 determina que sejam incluídos na Lei Orçamentária Anual e na Lei do Plano Plurianual, o “Plano de Metas Pluri-Anual Social” e o “Plano de Metas Social Anual”.

A hipótese encontra-se prevista no art. 174 da Constituição do Estado, que, reproduzindo o que está contido no art. 165 da Constituição Federal, determina caber exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo a iniciativa legislativa em matéria orçamentária.

Como salienta Régis Fernandes de Oliveira, “a Constituição estabeleceu a competência exclusiva do Presidente da República para iniciar a tramitação dos projetos orçamentários. Em segundo lugar, os projetos são eminentemente técnicos, pressupondo informações sobre a arrecadação de recursos e estabelecendo prioridades inseridas nas competências do Chefe do Executivo” (Curso de direito financeiro, São Paulo, RT, 2006, p.338/339).

Na mesma senda, pondera Ricardo Lobo Torres, a respeito da unidade orçamentária, que ganhou ênfase na Constituição de 1988, que este princípio “sinaliza que todas as despesas e fundos da mesma pessoa jurídica devem se unificar finalisticamente no mesmo orçamento. (...) A unificação dos orçamentos teve o mérito de permitir o controle da utilização de recursos do orçamento fiscal e da seguridade social para suprir necessidade ou cobrir déficit de empresas, fundações e fundos (art.167 VIII, CF)” (Tratado de direito constitucional financeiro e tributário, vol V, Rio de Janeiro, Renovar, 2000, p.79).

Basicamente, assim, duas ordens de motivos justificam a adstrição da matéria ao Poder Executivo: (a) as questões técnicas do orçamento devem ser resolvidas por órgãos técnicos, e o Poder Executivo é que se encontra, inegavelmente, mais estruturado para fazê-lo; (b) como encarregado do planejamento e execução orçamentária, é natural que o Executivo tenha total controle a respeito dessa matéria, seja na fase da elaboração da proposta legislativa, como ulteriormente, em sede de cumprimento da legislação orçamentária; (c) contraria esta lógica em impingir ao Executivo a obrigação de incluir determinada matéria na legislação orçamentária.

Além da expressa previsão constitucional a respeito do tema, o próprio Pretório Excelso há muito pacificou a questão:

"Competência exclusiva do Poder Executivo iniciar o processo legislativo das matérias pertinentes ao Plano Plurianual, às Diretrizes Orçamentárias e aos Orçamentos Anuais. Precedentes: ADI 103 e ADI 550." (ADI 1.759-MC, Rel. Min. Néri da Silveira, julgamento em 12-3-98, DJ de 6-4-01).

Daí ser correto o acolhimento do argumento no sentido da existência de vício formal da lei em exame: tratando-se de matéria cuja iniciativa é reservada ao Executivo, não pode a lei municipal determinar o que deverá ou não constar da legislação orçamentária.

4) Conclusão.

Pelos motivos expostos, aguarda-se a procedência da presente ação, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei 11.272, de 22 de junho de 2007, do Município de Ribeirão Preto.

 

São Paulo, 4 de novembro de 2013.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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