Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº 0151732-14.2012.8.26.0000

Requerente: Governador do Estado de São Paulo

 

 

Ementa:

1)      Lei Municipal n. 2.799, de 24 de junho de 2009, de Mairinque, que veda a construção e ou instalação de Presídios, Casa de Detenção, Cadeia Pública, Presídios Provisórios ou Centros de Detenção Provisória (CDP), Centros de Ressocialização e outros estabelecimentos prisionais, no território do município.

2)      Princípio federativo. Competências estaduais. Direito penitenciário. Segurança pública. Matérias afetas aos Estados-Membros. Interesse local. Inexistência. Princípio da proibição do excesso. Inconstitucionalidade reconhecida.

3)      Parecer pela procedência.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

O Excelentíssimo Senhor Governador do Estado de São Paulo formulou a presente ação direta objetivando a declaração de inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 2.799, de 24 de junho de 2009, de Mairinque, que veda a construção e ou instalação de Presídios, Casa de Detenção, Cadeia Pública, Presídios Provisórios ou Centros de Detenção Provisória (CDP), Centros de Ressocialização e outros estabelecimentos prisionais, no território do município. Entende o autor ser o ato normativo contrário à Constituição do Estado de São Paulo.

A liminar foi concedida (fls. 14), tendo a Municipalidade fornecido suas informações às fls. 59. A Câmara Municipal manifestou-se às fls. 24/26.

A Procuradoria-Geral do Estado não foi citada.

É o breve relato.

Preliminarmente, requer-se a citação do Senhor Procurador-Geral do Estado, a fim de defender o ato normativo impugnado, nos termos do art. 90, § 2º, da Constituição Estadual.

No mérito, entendo ser a ação procedente.

Ocorre que a norma impugnada é inconstitucional por malferir os artigos 1.º, 111, 143 e 144, da Constituição do Estado de São Paulo, este último a repetir – de modo sintético – o conteúdo dos artigos 21, XII, “a” e 22, IV, da Constituição da República, expressão do princípio federativo.  De fato, assim dispõem as referidas normas constitucionais:

“Art. 1º - O Estado de São Paulo, integrante da República Federativa do Brasil, exerce as competências que não lhe são vedadas pela Constituição Federal.”

“Art. 139 - A Segurança Pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e incolumidade das pessoas e do patrimônio.”

“Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Os parâmetros da Constituição da República referidos pela Constituição do Estado são os seguintes:

“Art. 1.º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos (...)”

“Art. 24 - Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico (...)”

REINHOLD ZIPPELIUS, sobre a estrutura do Estado Federal, escreveu: "O Estado Federal é pois também uma reunião de Estados, mas organizada de tal maneira que o seu conjunto constitui igualmente um Estado em si mesmo. Esse conjunto das respectivas competências estatais no Estado Federal acha-se de tal modo distribuído entre os órgãos do Estado Federal e os dos diferentes países que o constituem, que o problema da hierarquia dessas competências fica sempre como que suspenso e em aberto. Por via de regra, as atribuições exclusivas dos Estados são repartidas segundo o critério das diferentes matérias. Assim, serão geralmente cometidas aos órgãos centrais as questões da política externa e aos Estados membros as questões de segurança e ordem pública interior. A competência legislativa pode também pertencer, segundo a índole das matérias de que se trata, já aos órgãos do poder central, já aos dos diversos países ou Estados. Ambos podem, porém, colaborar também na feitura das leis, ficando aos órgãos centrais a promulgação e aos outros, os das regiões, a execução delas” (Apud BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil, Saraiva, São Paulo, 1990, 3.º vol. Tomo I, p. 107).

O mesmo autor, relativamente à distribuição de competências entre os entes federados, ensina: “A competência de um Estado para determinar as competências subordinadas, tambem pode ser exercida comummente por uma pluralidade de órgãos estaduais. As competências internas, sobretudo, podem estar de tal modo repartidas pelos órgãos superiores do Estado, que exista entre elas um sistema de contraprtova e equilíbrio (Divisão dos poderes, § 20 I), dentro do qual os poderes isolados não podem ser entendidos como se fossem absolutos, mas meramente como factores que se encontram numa coordenação jurídica e funcional entre eles. E pode suceder num Estado federal que a questão da soberania fique por resolver entre a federação e os federados; que subsista uma dualidade de centros de decisão tal que o conjunto das competências venha a ser exercido em parte pelos Estados federados e noutra parte pelos ógãos do Estado federal (IV)” (ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do estado. 2ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian. Trad. da 3ª ed. de António Cabral de Moncada, 1971, pág. 61).

Diferentemente, no particular, do federalismo alemão, que também inspirou os constituintes pátrios, em que a ordem federal central edita leis sobre quase todos os temas, mas quem as executa são os estados, no Brasil, quem executa as leis advindas da competência legislativa privativa é o próprio ente que a detém, salvo exceções oriundas de convênios etc. Não pode utilizar-se o Município do precedente do art. 30 da Constituição da República, que menciona o “interesse local”, ausente na espécie ora examinada.

Para HELY LOPES MEIRELLES o tema é assim tratado: “(...) estabelecida essa premissa é que se deve partir em busca dos assuntos da competência municipal, a fim de sclecionar os que são e os que não são de seu interesse local, isto é, aqueles que predominantemente interessam à atividade local. Seria fastidiosa -- e inútil, por incompleta --  a apresentação de um elenco casuístico de assuntos de interesse local do Município, porque a atividade municipal, embora restrita ao território da Comuna, é multifária nos seus aspectos e variável na sua apresentação, em cada localidade. Acresce, ainda, notar a existência de matérias que se sujeitam simultaneamente à regulamentação pelas três ordens estatais, dada sua repercussão no âmbito federal, estadual e municipal. Exemplos típicos dessa categoria são o trânsito e a saúde pública, sobre os quais dispõem a União (regras gerais),: Código Nacional de Trânsito, Código Nacional de Saúde Pública), os Estados (regulamentação: Regulamento Geral de Trânsito, Código Sanitário Estadual) e o Município (serviços locais: estacionamento, circulação, sinalização etc.; regulamentos sanitários municipais). Isso porque sobre cada faceta do assunto ha um interesse predominante de uma das três entidades governamentais. Quando essa predominância toca ao Município a ele cabe regulamentar a matéria, como assunto de seu interesse local. Dentre os assuntos vedados ao Município, por não se enquadrarem no conceito de interesse local,  é de se assinalar, a título exemplificativo, a atividade jurídica, a segurança nacional, o serviço postal, a energia em geral, a informática, o sistema monetário, a telecomunicação e outros mais, que, por sua própria natureza e fins, transcendem o âmbito local” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.  p. 135,  Malheiros, pág. 135).

Com efeito, poderiam os autores da Constituição do Estado, no exercício do Poder Constituinte Decorrente, repetir, enfadonhamente, as normas de reprodução obrigatória da Constituição da República, mas preferiram, acertadamente diga-se, fórmula sintética do art. 144, determinando, como não poderia deixar de ser, que os princípios estabelecidos na Constituição Federal (somente princípios, não regras) devessem ser observados obrigatoriamente pelos Municípios.  Não foi outra a saída encontrada pelos Constituintes nacionais, por exemplo, com o art. 25 da Constituição da República, a determinar que os Estados se organizem segundo os princípios da Constituição da República, sem explicitá-los, também enfadonhamente.

Veja-se a correspondência do art. 25 da Carta Maior com o art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo (“Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”).

Há que se indagar se alguém poderia dizer que, pelo fato de não se ter repetido, um a um, na Constituição da República, os princípios que devem ser observados pelos constituintes dos estados, não seriam estes aplicáveis às Constituições dos Estados-membros. Ora, sabe-se que o princípio federativo, adotado no art. 1.º da Constituição do Estado de São Paulo, é: “...a rigor, um grande sistema de repartição de competências', sendo esta 'a chave da estrutura do poder federal' ou 'a grande questão do federalismo', e ainda 'um problema tipicamente do estado federal'.” (RAUL MACHADO HORTA E DURAND, citados por FERNANDA DIAS MENEZES DE ALMEIDA).

Para KLAUS STERN: “La Ley Fundamental, contiene, sin embargo, si no Derecho del Estado de los Länder, si Derecho del Estado para los Länder; por ejemplo, en los arts. 20, 21, 28, 31, 33 y 35 LFB.  El Derecho del Estado Federal es, ademas también, Derecho del Estado Total, es decir, de Ia Federación y de los Länder, que conjuntamente constituyen la República Federal de Alemania. La Constitución de los Estados miembros no está fijada exclusivamente en sus textos constitucionales. Sobre ellas inciden determinaciones de la Constitución Federal. «Ambos elementos conjuntamente forman la Constitución del Land». Esta particularidad se basa en el principio federal. Este entrecruzamiento encuentra su expresión más clara en la Confianza federal” (STERN, Klaus. Derecho Del Estado de la Republica Federal Alemana. Madrid: CEC, 1987, pág. 120).

A doutrina já resolveu a questão dos princípios que devem os Estados observar (o que obviamente aplica-se aos Municípios, já agora por força do art. 144 da Constituição do Estado).  Ao comentar sobre o conteúdo do art. 25 da Constituição da República, a direcionar as competências dos Estados (como o art. 144 da Constituição do Estado condiciona as competências dos Municípios), MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO refere-se à existência das “regras de preordenação institucional”, “regras de extensão normativa” e “regras de subordinação normativa”, inseridas na Constituição da República, vinculantes para os demais entes políticos, nestes termos: “(...) Ainda cerceiam a autonomia dos Estados regras de subordinação normativa. São estas as que, presentes na própria Constituição Federal e direcionadas por ela a todos os entes federativos (União, Estados, Municípios), predefinem o conteúdo da legislação que será editada por eles. E isto, ou orientando positivamente tal conteúdo (mandando que siga determinada linha), ou negativamente (proibindo que adote certas normas ou soluções). Exemplo de tais regras de subordinação normativa é o que decorre do art. 37 da Constituição brasileira, que preside à atuação da administração pública direta ou indireta. Da mesma forma, o art. 39 da Constituição direciona diretamente a legislação dos Estados (bem como do Distrito Federal e dos Municípios) quanto aos servidores públicos. Observe-se que esta subordinação normativa pode ser direta ou indireta. Ela é direta (e imediata) quando deflui, sem intermediário, da Constituição Federal e obriga desde logo o legislador. É indireta (e mediata) quando se faz por meio da legislação federal obrigatória para os Estados. Esta "subordinação normativa indireta" ocorre no campo da competência legislativa concorrente da União e dos Estados (bem como do Distrito Federal), que enuncia o art. 24 da Constituição brasileira. Com efeito, este artigo confere à União a competência de "estabelecer normas gerais" (art. 24, § 1.°). Conseqüentemente, a estas normas gerais se subordinam as que os Estados editarem em vista de suas peculiaridades (art. 24, §§ 2.°, 3.° e 4.°)” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988.  São Paulo: Saraiva, 1997, v. I, pág. 197). 

Claro que, apenas por não repetir explicitamente os princípios da Constituição da República, não significa que os Municípios fiquem livres para - em uma curiosa situação então - dispor de mais poderes constituintes que o Estado (já que não se discute que, quanto a este, seu Poder Constituinte Decorrente é limitado).

Trata-se o artigo 144 da Constituição do Estado de norma de repetição obrigatória, vale dizer: “...as normas centrais da Constituição Federal, tenham elas natureza de princípios constitucionais, de princípios estabelecidos ou de normas de preordenação, afetam a liberdade criadora do Poder Constituinte Estadual e acentuam o caráter derivado desse poder. Como consequência da subordinação à Constituição Federal, que é a matriz do ordenamento jurídico parcial dos Estados-membros, a atividade do constituinte estadual se exaure, em grande parte, na elaboração de normas de reprodução, mediante as quais faz o transporte da Constituição Federal para a Constituição do Estado das normas centrais, especialmente as situadas no campo das normas de preordenação  A tarefa do constituinte limita-se a inserir aquelas normas no ordenamento constitucional do estado, por um processo de transplantação. A norma de reprodução não é, para os fins da autonomia do Estado-membro, simples norma de imitação, frequentemente encontrada na elaboração constitucional. As normas de imitação exprimem a cópia de técnicas ou de institutos, por influência da sugestão exercida pelo modelo superior. As normas de reprodução decorrem do caráter compulsório da norma constitucional superior, enquanto a norma de imitação traduz a adesão voluntária do constituinte a uma determinada disposição constitucional.” (Raul Machado Horta, Poder constituinte do estado-membro, RDP, 88/5).

A repartição de competências é a “chave de abóbada” do sistema federal; conspurcada aquela conspurca-se  este. É o que ocorre no caso dos autos, com a violação, pelo Município, de princípios constitucionais.

Ademais, malfere a proporcionalidade a lei local atacada.  Entende-se que a proporcionalidade em sentido lato (“Verhältnismäßigkeitprinzip”) implica em um controle em três fases: a) o primeiro é o da idoneidade, pela qual os meios empregados devem ser idôneos a perseguir o fim fixado pela lei; b) o segundo é a necessidade, ou seja, a Administração, entre várias escolhas idôneas a alcançar o fim perseguido, deve escolher o que gera menor sacrifício aos interesses em conflito, o juiz é chamado a verificar o terreno dos fatos; e c) o terceiro, a proporcionalidade em sentido estrito, que requer um balanceamento entre os interesses em jogo, ou seja, entre as vantagens de buscar o fim público em relação aos prejuízos causados aos interesses privados.

Através desses padrões ou técnicas como a proibição de excesso (=proporcionalidade), é possível constranger a Administração (e, de um modo geral, os poderes públicos) a um plano menos indevassável. No que concerne ao requisito da idoneidade e proporcionalidade em sentido estrito, a legislação municipal não subsiste.

Ocorre que, como se pode observar, a matéria sobre a qual se legislou naquele Município relaciona-se diretamente com a segurança pública e com a instalação e manutenção de construção e ou instalação de Presídios, Casa de Detenção, Cadeia Pública, Presídios Provisórios ou Centros de Detenção Provisória (CDP), Centros de Ressocialização e outros estabelecimentos prisionais – atividades que são da responsabilidade do Estado, por força de expressas previsões constitucionais (Constituição dos Estado, artigos 139 e 278, inciso VI).

A segurança pública é definida como o afastamento por meio de organizações próprias, de todo perigo, ou de todo mal, que possa afetar a ordem pública, em prejuízo da vida, da liberdade, ou dos direitos de propriedade do cidadão (cf. De Plácido e Silva, in “ Vocabulário Jurídico”, volume IV, Editora Forense, Rio de Janeiro, p.188).  

Quanto a esse primeiro aspecto, releva notar que a Constituição de 1988 não atribuiu aos Municípios nenhuma responsabilidade no campo da segurança pública, apenas admitindo a possibilidade de constituição de guardas municipais com a finalidade específica de proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei (art. 144, parágrafo 8°).

Ao tratar da organização da segurança pública, José Afonso da Silva preleciona que: “Há uma repartição de competências nessa matéria entre a União e os Estados, de tal sorte que o princípio que rege é o de que o problema da segurança pública é de competência e responsabilidade de cada unidade da Federação, tendo em vista as peculiaridades regionais e o fortalecimento do princípio federativo, como, alias, é da tradição do sistema brasileiro”.

Quando a Constituição atribui às policiais federais competência na matéria, logo se vê que são atribuições em campo e questões delimitadas e devida e estritamente enumeradas, de maneira que, afastadas essas áreas especificadas, a segurança pública é de competência da organização policial dos Estados, na forma prevista no art. 144, §§4º, 5º e 6º.

Cabe, pois, aos Estados organizar a segurança pública. Tanto é de sua responsabilidade primária o exercício dessa atividade que, se não a cumprir devidamente, poderá haver ocasião de intervenção federal “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública” (cf. Curso de Direito Constitucional positivo, Malheiros, 8ª ed., p. 659).

A competência atribuída ao Estado para organizar a segurança pública, expressamente definida na Constituição, pressupõe necessariamente a outorga de poderes para a implantação da política de defesa social, de modo a assegurar a preservação da ordem pública e resguardar a integridade física e mental dos custodiados.

Nesse caso, verifica-se que, a pretexto de tratar de assunto de interesse local (art. 30, inciso I), o Município de Mairinque exorbitou, e muito, no exercício de sua competência legislativa, cerceando a atuação do Estado de São Paulo no campo da segurança pública, ao editar lei que proíbe a construção e ou instalação de Presídios, Casa de Detenção, Cadeia Pública, Presídios Provisórios ou Centros de Detenção Provisória (CDP), Centros de Ressocialização e outros estabelecimentos prisionais, em área de seu território.

Posto isso, aguardo o julgamento de procedência da presente ação direta a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei n. 2.799, de 24 de junho de 2009, do Município de Mairinque.

São Paulo, 7 de janeiro de 2013.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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