Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0151911-11.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeita do Município de Guarujá

Requerida: Câmara Municipal de Guarujá

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade.  Lei n. 3.703, de 28 de novembro de 2008, do Município de Guarujá. Funcionamento de creches em horário noturno. Iniciativa Parlamentar. Separação de poderes. Reserva de iniciativa legislativa. Reserva da Administração. Procedência da ação. 1.

É insubsistente a alegação de falta de receita para cobertura de gastos decorrente de lei (art. 25, CE/89) posto que sua ausência apenas compromete a eficácia da lei no exercício financeiro de sua vigência. 2. A iniciativa parlamentar de lei local, que institui horário noturno de funcionamento de creches, é incompatível com o princípio da separação de poderes pela invasão da reserva da Administração e da iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo (arts. 5º, 24, § 2º, 2, e 47, II, XIV, e XIX, a, CE/89). 3. Procedência da ação.

 

 

 

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

 

 

 

 

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Prefeita do Município de Guarujá impugnando a Lei n. 3.703, de 28 de novembro de 2008, do Município de Guarujá, que institui horário noturno para funcionamento de creches, de iniciativa parlamentar, suscitando sua incompatibilidade com os arts. 5º, 24, 25, 37, 47, II e XIV, da Constituição Estadual (fls. 02/14).

2.                Negada a liminar (fls. 40/41), a douta Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa da lei vergastada (fls. 51/53) e a Câmara Municipal de Guarujá manifestou-se por sua constitucionalidade (fls. 55/59).

3.                É o relatório.

4.                A ação é procedente.

5.                É insubsistente a alegação de falta de receita própria (art. 25, Constituição Estadual) posto que sua ausência apenas compromete a eficácia da lei no exercício financeiro de sua vigência.

6.                Com efeito, “inclina-se a jurisprudência no STF no sentido de que a inobservância por determinada lei das mencionadas restrições constitucionais não induz à sua inconstitucionalidade, impedindo apenas a sua execução no exercício financeiro respectivo” (STF, ADI 1.585-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-12-1997, v.u., DJ 03-04-1998, p. 01). Neste sentido:

        Vale registrar, ainda, quanto à discussão sobre a necessidade de previsão orçamentária, a seguinte passagem do voto da eminente Ministra CÁRMEN LÚCIA, proferido por ocasião do julgamento plenário da ADI 3.768/DF, de que ela própria foi Relatora:

    ‘A constitucionalidade da garantia não ficará comprometida, em qualquer caso, pois o idoso tem, estampado na Constituição, o direito ao transporte coletivo urbano gratuito. Quem assume o ônus financeiro não é questão que se resolve pela inconstitucionalidade da norma que repete o quanto constitucionalmente garantido.’ (grifei)

    Cumpre ressaltar, por relevante, que esse entendimento foi reafirmado no julgamento proferido no âmbito desta Corte a propósito de questão similar à que ora se examina nesta sede recursal (RE 573.040/SP, Rel. Min. DIAS TOFFOLI)” (STF, RE 702.848-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 29-04-2013, DJe 14-05-2013).

7.                Como assinala José Maurício Conti ao comentar a inexistência de reserva de iniciativa para leis que criam ou aumentam despesa pública, diferentemente do ordenamento constitucional anterior:  

“não havendo mais a expressa disposição no texto constitucional de que é iniciativa privativa do Presidente da República as leis que disponham sobre matéria financeira, tal reserva não mais subsiste, não sendo cabível interpretação ampliativa na hipótese, conforme entende inclusive nossa Suprema Corte” (Iniciativa legislativa em matéria financeira, in Orçamentos Públicos e Direito Financeiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pp. 283-307, coordenação José Maurício Conti e Fernando Facury Scaff).

8.                Porém, a inconstitucionalidade decorre da iniciativa parlamentar, agressiva da separação de poderes, porque seu objeto é típico ato de administração ordinária, reservado exclusivamente ao Poder Executivo e imune da interferência do Poder Legislativo, como se capta dos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual.

9.                Postulado básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual.

10.              Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na ideia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro.

11.              A Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas e ordinárias da função administrativa. Em essência, a separação ou divisão de poderes:

“consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).

12.              Se, em princípio, a competência normativa é do domínio do Poder Legislativo, certas matérias por caracterizarem assuntos de natureza eminentemente administrativa são reservadas ao Poder Executivo (arts. 47, II, XIV e XIX, a, Constituição Estadual) em espaço que é denominado reserva da Administração. Neste sentido, enuncia a jurisprudência:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

13.              No caso, foi violentada a reserva da Administração Pública, pois, compete ao Poder Executivo o exercício de sua direção superior, a prática de atos de administração típica e ordinária, a edição de normas e a disciplina de sua organização e de seu funcionamento, imune a qualquer ingerência do Poder Legislativo (art. 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual).

14.              A decisão sobre o horário de funcionamento de creches municipais é da inerência da típica gestão ordinária da administração, cujas linhas mestras são reservadas privativamente ao Chefe do Poder Executivo, alforriado da interferência do Poder Legislativo, no espectro de sua atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo.

15.               Não bastasse, ainda que a matéria demandasse lei formal, também padeceria de inconstitucionalidade a lei local por sua iniciativa parlamentar.

16.              Em se tratando de processo legislativo é princípio que as normas do modelo federal são aplicáveis e extensíveis por simetria às demais órbitas federativas. Neste sentido pronuncia a jurisprudência:

“as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

“(...) I. - As regras básicas do processo legislativo federal são de observância obrigatória pelos Estados-membros e Municípios. (...)” (STF, ADI 2.731-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 02-03-2003, v.u., DJ 25-04-2003, p. 33).

“(...) 2. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno --- artigo 25, caput ---, impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo. O legislador estadual não pode usurpar a iniciativa legislativa do Chefe do Executivo, dispondo sobre as matérias reservadas a essa iniciativa privativa. (...)” (STF, ADI 1.594-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 04-06-2008, v.u., DJe 22-08-2008).

“(...) I. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que as regras básicas do processo legislativo da Constituição Federal, entre as quais as que estabelecem reserva de iniciativa legislativa, são de observância obrigatória pelos estados-membros. (...)” (RT 850/180).

“(...) 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno (artigo 25, caput), impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. (...)” (RTJ 193/832).

17.             Decorre do mencionado princípio da separação de poderes, e à vista dos mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e disfunções, a participação do Poder Executivo no processo legislativo. Como observa a doutrina:

“É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers)” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

18.              A reserva de iniciativa legislativa se inclui nestes mecanismos, em especial para organização e funcionamento da Administração (entidades e órgãos do Poder Executivo), e outorga de respectivas atribuições, quando houver criação ou extinção de órgãos públicos ou aumento de despesa, segundo se colhe da leitura conjugada dos arts. 24, § 2º, 2 e 47, XIX, a, da Constituição do Estado. Neste sentido:

“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).

“À luz do princípio da simetria, são de iniciativa do Chefe do Poder Executivo estadual as leis que versem sobre a organização administrativa do Estado, podendo a questão referente à organização e funcionamento da Administração Estadual, quando não importar aumento de despesa, ser regulamentada por meio de Decreto do Chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º, II, e e art. 84, VI, a da Constituição federal)” (STF, ADI 2.857-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 30-08-2007, v.u., DJe 30-11-2007).

19.              É notável que o funcionamento noturno de creche pública implica sobrecarga de ônus financeiro, o que demandaria a observância da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo, como já decidido:  

“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).

“(...) À luz do princípio da simetria, são de iniciativa do Chefe do Poder Executivo estadual as leis que versem sobre a organização administrativa do Estado, podendo a questão referente à organização e funcionamento da Administração Estadual, quando não importar aumento de despesa, ser regulamentada por meio de Decreto do Chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º, II, e e art. 84, VI, a da Constituição federal). Inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa da lei ora atacada” (STF, ADI 2.857-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 30-08-2007, v.u., DJe 30-11-2007).

20.              Face ao exposto, opino pela procedência da ação para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 3.703, de 28 de novembro de 2008, do Município de Guarujá, por sua incompatibilidade com os arts. 5º, 24, § 2º, 2, e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado de São Paulo.

                   São Paulo, 07 de outubro de 2013.

 

 

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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