Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0151917-18.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Guarujá

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Guarujá

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal n. 3.988, de 27 de novembro de 2.012, do Município de Guarujá, de iniciativa parlamentar, que “Institui e inclui no Calendário Oficial de Eventos e de Programação do Município, a Virada Esportiva”.

2)      Inconstitucionalidade formal subjetiva pelo vício de iniciativa e pela ofensa ao Princípio da Separação e da Harmonia entre os Poderes (art. 5º, caput, da Constituição do Estado) e ao art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo.

3)      Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeita, tendo por objeto a Lei n.º 3.988, de 27 de novembro de 2012, do Município de Guarujá, que “Institui e inclui no Calendário Oficial de Eventos e de Programação do Município, a Virada Esportiva”.

O autor argumenta que a lei nasceu na Câmara Municipal e que, determinando à Administração que patrocine e divulgue eventos comemorativos, gera despesas para as quais não foram indicados recursos orçamentários. Diz que o ato normativo é incompatível com os arts. 5º, 25, 47, II e XIV, e 144, todos da Constituição do Estado de São Paulo.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas, atendendo-se ao pedido liminar (fl. 48).

O Presidente da Câmara Municipal deixou de prestar informações (fl. 61).

A Procuradoria Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 58/60).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A Lei nº 3.988, de 27 de novembro de 2012, do Município de Guarujá, tem a seguinte redação:

“LEI Nº 3988/2012

INSTITUI E INCLUI NO CALENDÁRIO OFICIAL DE EVENTOS E DE PROGRAMAÇÃO DO MUNICÍPIO, A ‘VIRADA ESPORTIVA’ E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS.

Eu, José Carlos Rodriguez, Presidente da Câmara Municipal de Guarujá, faço saber que o Legislativo, em Sessão Ordinária realizada em 18 de setembro de 2012, APROVOU o Projeto de Lei nº 100/2012, que gerou o Autógrafo de Lei nº 073/2012 e eu promulgo, nos termos do parágrafo único do Artigo 55 da Lei Orgânica do Município de Guarujá, a seguinte LEI:

Art. 1º Fica instituída e incluída no calendário oficial do Município de Guarujá, a "Virada Esportiva", que será realizada anualmente, a ser determinada no segundo final de semana do mês de setembro.

Parágrafo Único - A "Virada Esportiva" tem por objetivo estimular a vida ativa e saudável da população, mediante a adoção de medidas de combate ao sedentarismo.

Art. 2º A "Virada Esportiva" terá duração de no mínimo 24 (vinte e quatro) horas ininterruptas, e consiste em uma maratona de atividades e eventos de caráter esportivo e lazer para todas as idades.

Art. 3º A Prefeitura através das suas Secretarias, com a colaboração da Câmara Municipal, das empresas privadas e outras entidades civis, poderão promover neste evento, a realização de caminhadas nos parques, nos bairros, bem como, passeios ciclísticos, a promoção de eventos culturais com música e dança para a população e apoio às atividades físicas nas ruas e centros esportivos.

Art. 4º O suporte técnico, administrativo e financeiro necessário para a realização da "Virada Esportiva" poderá ser por órgãos da administração pública municipal, e o caráter, a natureza e as condições em que será prestado, poderão ser definidos por norma reguladora a ser expedida pelo Poder Executivo.

Art. 5º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Câmara Municipal de Guarujá, em 27 de novembro de 2012.

José Carlos Rodriguez

Presidente

Registrado no livro competente.

Secretaria da Câmara Municipal de Guarujá, em 27 de novembro de 2012.

Carlos Antonio de Sousa

Secretário Geral

(Projeto de Lei nº 100/2012)

(Vereador Válter Suman)”.

A Lei Municipal impugnada pela presente ação direta é, realmente, inconstitucional, pois acaba por afrontar o princípio da separação de poderes.

Por isso, há violação do disposto no art. 144 da Constituição Paulista, que tem a seguinte redação:

“Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

À evidência que a lei municipal questionada, embora contenha proposta louvável, invade competência privativa do chefe do Poder Executivo municipal.

Assim, apenas o Prefeito Municipal tem iniciativa para deflagrar processo legislativo para aprovação de lei com o conteúdo da que se pretende ver declarada como inconstitucional, sob pena de indevida interferência de um Poder sobre o outro.

Postulado básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual, e que assim dispõe: “São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na ideia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro. Todavia, o exercício dessas atribuições nem sempre é fragmentado e estanque, pois observa a doutrina que “o princípio da separação dos poderes (ou divisão, ou distribuição, conforme a terminologia adotada) significa, portanto, entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho harmônico e independente das respectivas funções, e ainda que cada órgão (poder), ao lado de suas funções principais, correspondentes à sua natureza, em caráter secundário colabora com os demais órgãos de diferente natureza, ou pratica certos atos que, teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de competência” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 585).

Como consequência do princípio da separação dos poderes, a Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas da função administrativa, como, por exemplo, dispor sobre a sua organização e seu funcionamento. Em essência, a separação ou divisão de poderes “consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).

Também por decorrência do citado princípio da separação de poderes, e à vista dos mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e disfunções, a Constituição Estadual cuidou de precisar a participação do Poder Executivo no processo legislativo. Como observa a doutrina: “É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers)”.

A distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

 Assim, se em princípio a competência normativa é do domínio do Poder Legislativo, certas matérias por tangenciarem assuntos de natureza eminentemente administrativa e, concomitantemente, direitos de terceiros ou o próprio exercício dos poderes estatais, são reservadas à iniciativa legislativa do Poder Executivo.

Esse desenho normativo de status constitucional – aplicável aos Municípios por obra do art. 144 da Constituição Estadual - permite assentar as seguintes conclusões: a) a iniciativa legislativa não é ampla nem livre, só podendo ser exercida por sujeito a quem a Constituição entregou uma determinada competência; b) ao Chefe do Poder Executivo, a Constituição prescreve iniciativa legislativa reservada em matérias inerentes à Administração Pública; c) há matérias administrativas que, todavia, escapam à dimensão do princípio da legalidade consistente na reserva de lei em virtude do estabelecimento de reserva de norma do Poder Executivo. A propósito, frisa Hely Lopes Meirelles a linha divisória da iniciativa legislativa: “Leis de iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores são todas as que a lei orgânica municipal não reserva, expressa e privativamente à iniciativa do prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias previstas nos arts. 61, § 1º, e 165 da CF, as que se inserem no âmbito da competência municipal” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1997, 9ª ed., p. 431).

Portanto, irradia-se do princípio da separação de poderes a própria técnica jurídica de freios e contrapesos com a previsão de iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo em matéria administrativa.

Desta feita, ao instituir a “Virada Esportiva” e impor que ela seja realizada anualmente, na data que especifica, bem como ao estabelecer o prazo de duração e as atribuições do Município e dos Órgãos Municipais, a Câmara Municipal invadiu seara alheia – da administração pública – violando a prerrogativa do Prefeito de analisar a conveniência e oportunidade dessas providências.

Razão assiste ao promovente, ademais, quando diz que o dispositivo impugnado viola o art. 25 da Constituição do Estado.

Com efeito, o patrocínio de eventos e outras atividades que envolvam a sociedade geram despesas. E a lei, como visto, não contém a indicação dos recursos necessários para suportá-las, cumprindo anotar que, na dicção desse Sodalício, não basta que o gasto seja imputado à conta “de verbas próprias do orçamento vigente”. Confiram-se, a título de exemplificação, as seguintes decisões: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.; ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.; ADI 135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.

Posto isso, aguardo a procedência da presente ação direta, a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 3.988, de 27 de novembro de 2012, do Município de Guarujá.

São Paulo, 07 de novembro de 2013.

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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