Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0151919-85.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeita Municipal de Guarujá

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Guarujá

 

 

Ementa:

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 3.742 de 09 de março de 2009, do Município de Guarujá, de iniciativa parlamentar, que “Institui na rede municipal de ensino público fundamental, médio e técnico o conteúdo educação Anti-Racista e Antidiscriminatória”.

2)      A instituição de programas e serviços administrativos, por órgãos do Poder Executivo, é matéria da reserva da Administração e da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo, sendo inconstitucional lei de iniciativa parlamentar, maculada ainda pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual).

3)      Norma que, por dispor a respeito do Sistema Municipal de Ensino culmina por violar o disposto no art. 239, § 1º, da CE.

4)      Violação do princípio da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado). Procedência do pedido.

 

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 3.742, de 09 de março de 2009, do Município de Guarujá, de iniciativa parlamentar, que “Institui na rede municipal de ensino público fundamental, médio e técnico o conteúdo educação Anti-Racista e Antidiscriminatória”.

Sustenta a requerente que a lei é inconstitucional por conter vício de iniciativa, violação do princípio da separação dos poderes e por criar despesas sem indicação dos recursos disponíveis. Daí, a afirmação de ofensa ao disposto nos arts. 5º, 24, § 2º, itens 1 e 4, 25, 47, II, XIX, “a”, 144 e 239, § 1º, da Constituição Estadual.

A Lei teve a vigência e eficácia mantidas, uma vez desatendido o pedido de liminar (fl. 69).

Citado regularmente, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 79/80).

Notificado, o Presidente da Câmara Municipal prestou informações, quanto ao processo legislativo e em defesa na norma impugnada (fls. 82/89).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

Procede o pedido.

A Lei nº 3.742, de 09 de março de 2009, do Município de Guarujá, de iniciativa parlamentar, que “Institui na rede municipal de ensino público fundamental, médio e técnico o conteúdo educação Anti-Racista e Antidiscriminatória”, tem a seguinte redação:

“Art. 1º - Fica instituído, na rede municipal de ensino público fundamental e médio e demais níveis de ensino, o conteúdo que trata da "Educação Anti-Racista e Antidiscriminatória" nos termos da Lei.

Art. 2º - Após a elaboração dos conteúdos, estes serão submetidos à apreciação do Conselho Municipal de Educação.

Art. 3º - A Educação Anti-Racista e Antidiscriminatória será oferecida de forma embasada na composição de conteúdo desenvolvido através do debate entre o Conselho Municipal de Educação, Conselho Municipal da Consciência Negra, entidades do movimento negro e por docentes e discentes de todos os níveis de aprendizado, com metodologia apropriada a cada uma delas. Seja no ensino infantil, ensino médio ou técnico, constituído sobre projeto pedagógico, que possibilite observar as relações sociais e as manifestações sobre o tema afim de incluí-las no contexto no decorrer de sua aplicação, e que seja aplicada nas disciplinas compatíveis em cada nível de ensino.

Parágrafo Único - Prevê-se que o conteúdo de Educação Anti-Racista e Antidiscriminatória perpasse os diferentes saberes disciplinares, estando presente em todas as disciplinas e atividades no contexto escolar como tema transversal.

Art. 4º - Na rede municipal de ensino, o conteúdo desenvolver-se-á em oposição de opção sexual, religiosa e de gênero, sob a denominação de Educação Anti-Racista e Antidiscriminatória, caracterizando-se como ação planejada, sistemática, visando o crescimento pessoal e è construção da cidadania a partir dos valores éticos, de compromisso com a coletividade e com o indivíduo, baseados em relacionamentos de respeito às diferenças às suas individualidades, solidariedades, a diversidades e pela igualdade de oportunidade e tratamento, independente de etnia, gênero e classe social a que pertence.

Art. 6º - O desenvolvimento da temática da educação Anti-Racista e Antidiscriminatória nas escolas será construído participativamente, partindo dos interesses das necessidades dos alunos das situações constatadas com suas singularidades, de modo que aqueles guardem correlação com o desenvolvimento cognitivo e de consciência pluralista, com os objetivos primeiros desta Lei, além de outros fatores cuja observância mostre-se necessária.

Art. 7º - O Executivo Municipal regulamentará esta Lei no prazo de 90 (noventa) dias a contar da data de sua publicação.

Art. 8º - As despesas decorrentes da execução orçamentária da presente Lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 9º - Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação.”

Verifica-se que a Lei Municipal impugnada determinou, na verdade, a inclusão no currículo escolar das escolas públicas do município a matéria que tenha como conteúdo educação antirracista e “antidiscriminatória”, disciplinando-a e definindo atribuições a órgãos do Poder Executivo, especificando condições para a sua execução.

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, e o art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Cabe exclusivamente ao Poder Executivo a criação ou instituição de programas e serviços, nas diversas áreas de gestão, envolvendo os órgãos da Administração Pública Municipal e a própria população (não se trata, no entanto de criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na Administração, nem de disposição a respeito dos servidores públicos a que aludem os itens 1 a 4 do § 2º do art. 24 da CE).

Ocupa-se, no entanto, a impugnada Lei de fazer inserir determinada matéria no currículo escolar, o que, de certa forma, acaba também por afrontar o disposto no art. 239, § 1º da Constituição Estadual que dispensa incumbência, ao Poder Público, a organização do Sistema de Ensino do Estado de São Paulo.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei criando novo programa de governo, disciplinando-o, como ocorre, no caso em exame, em função da instituição da cultura antirracista e “antidiscriminatória” nas escolas públicas municipais da cidade de Guarujá, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

Observe-se que o Poder Legislativo não se limitou à criação do Projeto, ao contrário, disciplinou-o de forma específica, impondo inclusive obrigações e atribuições à Administração municipal, regulamentando as atividades do projeto, seu objetivo, servidores e órgãos envolvidos, público alvo, local de realização, conteúdo, etc., interferindo, desta forma, diretamente em órgãos da Administração.

A criação de programas em benefício da população com previsão de novas obrigações aos órgãos municipais é atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade de programas em benefício da população. Trata-se de atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II e XIV, e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo, no caso em análise, representados pela criação de programa destinado à preservação da cultura e culinária brasileiras. A atuação legislativa impugnada, equivale à prática de ato de administração, de sorte a violar a garantia constitucional da separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

É ponto pacífico que “as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.). Como desdobramento particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, 2, iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) para “a criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX”, o que compreende a fixação ou alteração das atribuições dos órgãos da Administração Pública direta.

Também prevê no art. 47 (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), competência privativa do Chefe do Poder Executivo. O dispositivo consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.

A alínea a do inciso XIX desse art. 47, fornece ao Chefe do Poder Executivo a prerrogativa de dispor mediante decreto sobre “organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos”, em preceito semelhante ao art. 84, VI, a, da Constituição Federal. Por sua vez, os incisos II e XIV estabelecem competir-lhe o exercício da direção superior da administração e a prática dos demais atos de administração, nos limites da competência do Poder Executivo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.

Pois, ao instituir programa ou serviço administrativo, de um lado, ela viola o art. 47, II, XIV e XIX, a, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Neste sentido, a jurisprudência:

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.

I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.

II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.

III. - Precedentes do STF.

IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).

“Ação direta de inconstitucionalidade - Ajuizamento pelo Prefeito de São José do Rio Preto - Lei Municipal n°10.241/08 cria o serviço de fisioterapia e terapia ocupacional nas unidades básicas de saúde e determina que as despesas decorrentes 'correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário' - Matéria afeta à administração pública, cuja gestão é de competência do Prefeito - Vício de iniciativa configurado - Criação, ademais, de despesas sem a devida previsão de recursos - Inadmissibilidade - Violação dos artigos 5° e 25, ambos da Constituição Estadual - Inconstitucionalidade da lei configurada - Ação procedente” (ADI 172.331-0/1-00, Órgão Especial, Rel. Des. Walter de Almeida Guilherme, v.u., 22-04-2009).

Além disso, invade a denominada reserva de Administração, como já decidido:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

Diante do exposto, afastada a preliminar, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 3.742 de 09 de março de 2009, do Município de Guarujá, de iniciativa parlamentar, que “Institui na rede municipal de ensino público fundamental, médio e técnico o conteúdo educação Anti-Racista e Antidiscriminatória”.  

São Paulo, 27 de novembro de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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