Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0156655-49.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de São José do Rio Preto

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de São José do Rio Preto

 

Ementa:

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 11.260, de 24 de setembro de 2012, do Município de São José do Rio Preto, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a implantação de farmácias públicas de distribuição de medicamentos – 24 - horas no Pronto Socorro Municipal e nas Unidades de Pronto Atendimento (U.P.A) 24 horas da rede pública de saúde.”

2)      Preliminar. Irregularidade na representação processual. O chefe do Executivo, detentor de legitimidade ativa “ad causam” e de capacidade postulatória para o ajuizamento de ação direta, não subscreveu a petição inicial nem outorgou o instrumento procuratório com poderes específicos.

3)      Limites à cognição judicial no processo objetivo de controle de constitucionalidade das leis. Precedentes do E. STF. A ofensa à legislação infraconstitucional não é suficiente para deflagrar o processo objetivo de controle de constitucionalidade. Ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

4)     Criação de serviço público em órgãos da administração. Violação dos arts. 5º; 24, § 2º, 2 e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista. Encontra-se na reserva da administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a criação, organização e regulamentação dos serviços públicos, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para cobertura da adequação do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão (arts. 25 e 176, I, da Constituição Estadual).

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 11.260, de 24 de setembro de 2012, do Município de São José do Rio Preto, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a implantação de farmácias públicas de distribuição de medicamentos – 24 horas – no Pronto Socorro Municipal e nas Unidades de Pronto Atendimento (U.P.A) 24 horas da rede pública de saúde.”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por apresentar vício de iniciativa, por invadir esfera de atuação do Poder Executivo, violar o princípio da separação e independência dos poderes, infração à lei de responsabilidade fiscal e por possibilidade de caracterização de improbidade administrativa. Daí a alegação de violação dos arts. 5º e 25 da Constituição Estadual, da Lei Complementar nº 101/2000 e da Lei Orgânica Municipal.

Foi deferida a liminar para a suspensão da eficácia do ato normativo impugnado (fls. 36/37).

Devidamente notificado (fl. 43), o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações a fls. 45/48.

Citado regularmente (fl. 75), o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 77/78).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

PRELIMINARMENTE

1.   Irregularidade na representação processual

A petição inicial é subscrita apenas por Procuradora do Município (fl. 15), com mandato sem poderes especiais outorgado pelo Prefeito Municipal (fl. 16).

A legitimidade ativa pertence ao Prefeito do Município (art. 90, II, Constituição Estadual), bem como a capacidade postulatória, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal:

“O Governador de Estado é detentor de capacidade postulatória intuitu personae para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie” (ADI(AgRg)1.797-PE, DJ de 23.2.01; ADI (AgRg) 2.130-SC, Celso de Mello, j. de 3.10.01, Informativo 244; ADI (EMBS.) 1.105-DF, Maurício Corrêa, j. de 23.8.01; ADI 1814-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 13-11-2001, DJ 12-12-2001).

Consoante explica a doutrina, “os legitimados para a ação direta referidos nos itens I a VII do art. 103 da CF dispõem de capacidade postulatória plena, podendo atuar no âmbito da ação direta sem o concurso de advogado” (Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle concentrado de constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2007, 2ª ed., p. 246).

Logo, considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de poderes especiais, ou, no mínimo, subscrição conjunta da petição inicial.

Ademais, há decisão registrando que:

“É de exigir-se, em ação direta de inconstitucionalidade, a apresentação, pelo proponente, de instrumento de procuração ao advogado subscritor da inicial, com poderes específicos para atacar a norma impugnada” (STF, ADI-QO 2187-BA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Octavio Gallotti, 24-05-2000, m.v., DJ 12-12-2003, p. 62).

Esse Colendo Órgão Especial em decisão recente sufragou este entendimento, conforme se verifica pela seguinte ementa:

“Ação direta objetivando a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar Municipal n. 2.220, de 20 de outubro de 2011. O chefe do Executivo, detentor de legitimidade ativa ‘ad causam’ e de capacidade postulatória para o ajuizamento de ação direta, não subscreveu a petição inicial nem outorgou o instrumento procuratório. Irregularidade da representação. Ocorrência. Precedentes deste Colendo Órgão Especial. Julga-se extinta a ADIN sem resolução do mérito com fundamento no artigo 267, IV do Código de Processo Civil, ficando revogada a liminar concedida anteriormente” (ADIN nº 0030396-43.2012.8.26.000, Rel. Des. Guerrieri Resende, j. 17 de outubro de 2012).

No caso dos autos, figurou no polo ativo o Prefeito Municipal, porém a inicial foi assinada pela Procuradora do Município com mandato sem poderes especiais para a propositura da ação direta, que não pode ser suprida por mera autorização administrativa.

Assim, requeiro que seja o autor intimado para regularização de sua representação processual ou subscrição da petição inicial, no prazo legal, sob pena de indeferimento, aviando, desde já, nas hipóteses de inércia ou recusa, a extinção sem resolução do mérito.

DO MÉRITO

1.   Da alegação de violação da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Lei Orgânica Municipal

Inicialmente oportuno consignar que o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste com normas da Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) e da Lei Orgânica Municipal.

Já se consolidou o entendimento, inclusive no Supremo Tribunal Federal que a ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

Por este motivo, passa-se a análise tão só de eventual contraste dos atos normativos impugnados com a Constituição Estadual.

2.   Das inconstitucionalidades

Procede o pedido.

A Lei nº 11.260, de 24 de setembro de 2012, do Município de São José do Rio Preto, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a implantação de farmácias públicas de distribuição de medicamentos – 24 horas – no Pronto Socorro Municipal e nas Unidades de Pronto Atendimento (U.P.A) 24 horas da rede pública de saúde”, foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do executivo, com a seguinte redação:

“Art. 1º - Fica instituída a implantação da FARMÁCIA DE DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS 24 HORAS com funcionamento no Pronto Socorro Municipal e nas Unidades de Pronto Atendimento (U.P.A) 24 horas da rede pública de saúde.

Art. 2º - A FARMÁCIA DE DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS 24 HORAS terá funcionamento 24 horas (vinte e quatro horas) para distribuição de medicamentos, inclusive nos finais de semana e feriados.

Art. 3º - Ficam mantidas as demais farmácias de distribuição municipal durante o período de atendimento normal das unidades de saúde.

Art. 4º - As despesas decorrentes da aplicação desta Lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 5º – O Executivo regulamentará esta Lei no prazo de 90 (noventa) dias, contados da data de sua publicação.

Art. 6° - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”    

Deixa-se de analisar a alegação de violação à Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) e à Lei Orgânica Municipal, pois a ofensa à legislação infraconstitucional não é suficiente para deflagrar o processo objetivo de controle de constitucionalidade.

Já se consolidou o entendimento, inclusive no Supremo Tribunal Federal, de que a ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

O ato normativo impugnado é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A matéria disciplinada pela Lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Estaduais ou Municipais.

A implantação de serviço de distribuição de medicamentos por 24 horas, através de farmácias de gestão municipal no âmbito das unidades de saúde no município de São José do Rio Preto, é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

Trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da criação de serviço de distribuição de medicamentos por 24 horas nas unidades de saúde, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade da criação e regulamentação dos serviços em benefício dos cidadãos. Trata-se de atuação administrativa que fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a, e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a Lei, ao instituir condições da prestação de serviço público, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

         De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte do Município, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.

A norma combatida ao impor ao Município o funcionamento de farmácias nas unidades de saúde para distribuição de medicamentos, não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cuja instalação e desenvolvimento demandam meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a dotações orçamentárias próprias de determinada secretaria.

Isso implica contrariedade ao disposto nos art. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 11.260, de 24 de setembro de 2012, do Município de São José do Rio Preto.

 

              São Paulo, 30 de outubro de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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