Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0171115-41.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Vargem Grande Paulista

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Vargem Grande Paulista

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 730, de 07 de agosto de 2013, fruto de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre a implantação de farmácias públicas de distribuição de medicamentos 24 horas e dá outras”.

2)      Preliminar. Irregularidade na representação processual. O Chefe do Executivo, detentor de legitimidade ativa 'ad causam' e de capacidade postulatória para o ajuizamento de ação direta, não subscreveu a petição inicial nem outorgou o instrumento procuratório com poderes específicos.

3)      Mérito. Diploma resultante de iniciativa parlamentar que disciplina programa de governo. Invasão da esfera da gestão administrativa. Contrariedade aos artigos 5º, 24, § 2º, 47, II e XIV e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

4)      Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Vargem Grande Paulista, tendo como alvo a Lei Municipal nº 730, de 07 de agosto de 2013, fruto de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre a implantação de farmácias públicas de distribuição de medicamentos 24 horas e dá outras”.

Sustenta o requerente a contrariedade aos artigos 24, § 2º e 144 da Constituição do Estado, bem como a vários dispositivos da Constituição Federal e da Lei Orgânica do Município, afirmando que teria ocorrido violação da iniciativa reservada do Poder Executivo, bem como quebra ao princípio da separação de poderes.

Foi deferida liminar para suspender a eficácia do ato normativo impugnado (fl. 33).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou da possibilidade de oferecer defesa relativamente ao ato normativo (fls. 40/41, 43/45).

A Presidência da Câmara Municipal deixou de prestar informações, embora tenha sido notificada a fazê-lo (fls. 38 e 46).

É o relato do essencial.

PRELIMINARMENTE

A petição inicial é subscrita apenas por procurador do município (fl. 21), com mandato outorgado pelo Município de Vargem Grande Paulista (fl. 26).

A legitimidade ativa pertence ao Prefeito do Município (art. 90, II, Constituição Estadual), bem como a capacidade postulatória, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal:

“(...)

O Governador de Estado é detentor de capacidade postulatória intuitu personae para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie (ADI(AgRg)1.797-PE, DJ de 23.2.01; ADI (AgRg) 2.130-SC, Celso de Mello, j. de 3.10.01, Informativo 244; ADI (EMBS.) 1.105-DF, Maurício Corrêa, j. de 23.8.01; ADI 1814-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 13-11-2001, DJ 12-12-2001).

(...)”

Consoante explica a doutrina, “os legitimados para a ação direta referidos nos itens I a VII do art. 103 da CF dispõem de capacidade postulatória plena, podendo atuar no âmbito da ação direta sem o concurso de advogado” (Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle concentrado de constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2007, 2. ed., p. 246).

Esse Colendo Órgão Especial em decisão recente sufragou este entendimento, conforme se verifica pela seguinte ementa:

“(...)

Ação direta objetivando a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar Municipal n. 2.220, de 20 de outubro de 2011. O chefe do Executivo, detentor de legitimidade ativa ‘ad causam’ e de capacidade postulatória para o ajuizamento de ação direta, não subscreveu a petição inicial nem outorgou o instrumento procuratório. Irregularidade da representação. Ocorrência. Precedentes deste Colendo Órgão Especial. Julga-se extinta a ADIN sem resolução do mérito com fundamento no artigo 267, IV do Código de Processo Civil, ficando revogada a liminar concedida anteriormente (ADIN nº 0030396-43.2012.8.26.000, Rel. Des. Guerrieri Resende, j. 17 de outubro de 2012)

(...)”

No caso dos autos, figurou no polo ativo o Prefeito Municipal, porém a inicial foi assinada por procurador, com poderes outorgados pelo Município.

Assim sendo, requer-se a intimação do autor para regularização de sua representação processual ou ratificação da petição inicial, no prazo legal, sob pena de extinção do feito sem resolução do mérito.

PRELIMINAR

Tratando-se de ação direta de inconstitucionalidade estadual, o limite de cognição do tribunal, a respeito da alegação de inconstitucionalidade, restringe-se aos parâmetros contidos na Constituição do Estado, não sendo possível, portanto, o exame das alegações de contrariedade à Constituição Federal, ou mesmo à legislação infraconstitucional.

O exame do mérito, dessa forma, fica restrito à análise da existência ou não de conflito entre a lei e a Constituição Paulista.

MÉRITO

A Lei Municipal nº 730, de 07 de agosto de 2013, fruto de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre a implantação de farmácias públicas de distribuição de medicamentos 24 horas e dá outras”, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. Fica criada a implantação da FARMÁRIA DE DISTRIBUIÇÃO DE EMDICAMENTOS 24 HORAS no P.A. – Pronto Atendimento da rede pública de saúde.

Art. 2º. A FARMÁCIA DE DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS 24 HORAS terá funcionamento 24 horas (vinte e quatro horas) para distribuição de medicamentos, inclusive nos finais de semana e feriados.

Art. 3º. Para melhor controle e segurança, a FARMÁCIA DE DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS 24 HORAS será a única responsável pela distribuição de medicamentos distribuídos pela rede municipal de saúde.

Art. 4º. Ficam mantidas as demais farmácias de distribuição municipal durante o período de atendimento normal das unidades de saúde.

Art. 5º. As despesas decorrentes da aplicação desta lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 6º. Esta lei será regulamentada no prazo de 90 (noventa) dias, contados da data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

(...)”

Embora não se trate de caso em que haja reserva de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, o que afasta a alegação de contrariedade ao art. 24, § 2º, da Constituição Estadual, não há dúvida de que o ato normativo impugnado interfere, indisfarçavelmente, no modo como será realizado um programa de governo, tangenciando, portanto, a esfera reservada à gestão administrativa. Isso permite o reconhecimento da sua inconstitucionalidade com fundamento nos artigos 5º, 47, II e XIV e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

Quando a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes, pois há incursão, pelo Legislativo, na denominada “reserva de administração”.

Criar determinado programa governamental, determinar o modo como ele será realizado ou mesmo impor providências singelas inseridas no âmbito da atividade administrativa é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Confira-se, a propósito, a célebre doutrina de Hely Lopes Meirelles, (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Observe-se, ademais, os inúmeros precedentes do Tribunal de Justiça nesse tema, reconhecendo a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, especialmente no que se refere à realização de programas de governo, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Nesse mesmo sentido o entendimento do Col. STF, colhido em julgados que, mutatis mutandis, aplicam-se à hipótese em exame:

“(...)

“O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. (...) Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais.” (RE 427.574-ED, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 13-12-2011, Segunda Turma, DJE de 13-2-2012.)

(...)”

Diante do exposto, superada a preliminar, e considerando que seja regularizada a representação processual do autor, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 730, de 07 de agosto de 2013, de Vargem Grande Paulista.

São Paulo, 16 de dezembro de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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