Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0171509-48.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Iacanga

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Iacanga

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 1369, de 18 de junho de 2013, de Iacanga, fruto de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade da veiculação nas notificações de Auto de Infração de Trânsito, aplicadas pela CIRETRAN de Iacanga, a respeito do constante no artigo 267 da Lei Federal nº 9503/97, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro, e dá outras providências”.

2)      Matéria tipicamente administrativa. Iniciativa parlamentar. Invasão da esfera da gestão administrativa, reservada ao Poder Executivo. Violação ao princípio da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado). “Reserva de Administração”. Precedentes do STF.

3)   Violação do princípio federativo. Lei Municipal que cuida de regular aspecto da atividade de órgão estadual (CIRETRAN – Circunscrição Regional de Trânsito), desrespeitando, portanto, a autonomia de ente federativo (artigos 1º e 144 da Constituição Paulista).

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito Municipal de Iacanga, tendo como alvo a Lei Municipal nº 1369, de 18 de junho de 2013, de Iacanga, fruto de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade da veiculação nas notificações de Auto de Infração de Trânsito, aplicadas pela CIRETRAN de Iacanga, a respeito do constante no artigo 267 da Lei Federal nº 9503/97, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro, e dá outras providências”.

Sustenta o autor a inconstitucionalidade considerada a violação: (a) à regra da separação de poderes (invasão da esfera da gestão administrativa); (b) do princípio federativo (interferência na administração Estadual e Federal).

Aponta o autor, portanto, a violação aos artigos 5º e 47, XIX, “a” da Constituição Paulista, bem como dos arts. 2º, 22, XI e 84 da Constituição Federal.

Foi deferida a liminar, suspendendo-se a eficácia da norma impugnada (fls. 68/69).

A Presidência da Câmara Municipal prestou informações, pugnando pela improcedência da ação (fls. 75/79).

O Senhor Procurador-Geral do Estado, citado, declinou da defesa do ato normativo (fls. 103/104 e 108).

É o relato do essencial.

PRELIMINAR: IMPOSSIBILIDADE DE EXAME DE PARÂMETROS INFRACONSTITUCIONAIS OU CONTIDOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

O exame da inconstitucionalidade apontada na inicial restringe-se, na ação direta estadual, ao confronto entre o texto normativo impugnado e a Constituição do Estado, sendo inviável a utilização de parâmetros, para fins de reconhecimento da inconstitucionalidade apontada, que estejam assentados na Constituição Federal ou na legislação infraconstitucional.

Nesse sentido, confira-se o entendimento assente do STF nos seguintes precedentes, indicados exemplificativamente: ADI 2.551-MC-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 2-4-2003, Plenário, DJ de 20-4-2006; RE 597.165, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 4-4-2011, DJE de 12-4-2011.

A análise a ser aqui realizada, portanto, deve ficar limitada ao exame da existência de incompatibilidade entre a norma impugnada e a Constituição do Estado de São Paulo.

MÉRITO

A Lei Municipal nº 1369, de 18 de junho de 2013, de Iacanga, fruto de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade da veiculação nas notificações de Auto de Infração de Trânsito, aplicadas pela CIRETRAN de Iacanga, a respeito do constante no artigo 267 da Lei Federal nº 9503/97, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro, e dá outras providências”, tem o seguinte teor:

“(...)

Art. 1º. Nas notificações do Auto de Infração de Trânsito aplicadas pela CIRETRAM de Iacanga, deverá constar a seguinte impressão do conteúdo do artigo 267 do Código de Trânsito Brasileiro:

‘Poderá ser imposta a penalidade de advertência por escrito à infração de natureza leve ou média, passível de ser punida com multa, não sendo reincidente o infrator, na mesma infração, nos últimos doze meses, quando a autoridade, considerando o prontuário do infrator, entender esta providencia como mais educativa.’

Parágrafo único. Vinculam-se à impressão, as informações necessárias para que o autuado possa pleitear o exercício de tal direito.

Art. 2º. Esta lei entra em vigor após 30 dias da data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

(...)”

Pois bem.

A ação deve ser julgada procedente, declarando-se a inconstitucionalidade da lei impugnada.

Note-se, inicialmente, que ao prever as informações que devem ser consignadas no documento de notificação por força de infração de trânsito, o Poder Legislativo Municipal pretende regrar atividade que está inserida na esfera da gestão executiva.

Cabe exclusivamente ao Poder Executivo deliberar a respeito de informações adicionais nas comunicações que endereça aos cidadãos, inclusive aquelas que digam respeito à notificação da prática de infração de trânsito.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei adotando deliberação concreta que, a rigor, cumpre exclusivamente ao Poder Executivo adotar, isso significa invasão da esfera de gestão administrativa e, portanto, violação ao princípio da separação de poderes, assentado no art. 5º e no art. 47, II e XIV da Constituição Paulista.

Em suma, cabe nitidamente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema, por tratar-se de hipótese da denominada “reserva de administração”.

Nesse sentido o posicionamento do STF, aplicável à hipótese mutatis mutandis:

“(...)

O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. (...) Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais. (RE 427.574-ED, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 13-12-2011, Segunda Turma, DJE de 13-2-2012.)

(...)

Ofende a denominada reserva de administração, decorrência do conteúdo nuclear do princípio da separação de poderes (CF, art. 2º), a proibição de cobrança de tarifa de assinatura básica no que concerne aos serviços de água e gás, em grande medida submetidos também à incidência de leis federais (CF, art. 22, IV), mormente quando constante de ato normativo emanado do Poder Legislativo fruto de iniciativa parlamentar, porquanto supressora da margem de apreciação do chefe do Poder Executivo Distrital na condução da administração pública, no que se inclui a formulação da política pública remuneratória do serviço público. (ADI 3.343, Rel. p/ o ac. Min. Luiz Fux, julgamento em 1º-9-2011, Plenário, DJE de 22-11-2011.)

(...)

 É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.

Mas não é só.

A CIRETRAN (Circunscrição Regional de Trânsito) é unidade administrativa vinculada ao Governo do Estado e, mais especificamente, ao DETRAN (Departamento Estadual de Trânsito).

Assim, ao editar a lei em questão o legislador municipal pretende regular a prestação de um serviço a cargo do Estado, o que não é possível, sem que se reconheça a evidente violação do princípio federativo, aplicável aos Municípios por força dos artigos 1º e 144 da Constituição Paulista.

Note-se: o art. 1º da Constituição Paulista, como não poderia deixar de ser, assenta a incidência do princípio federativo no âmbito do Estado de São Paulo.

No regime federativo, as entidades federadas (União, Distrito Federal, Estados e Municípios) têm autonomia política e administrativa, exercendo competências próprias.

Não é possível, portanto, que um ente federativo, fora de sua própria esfera de competência, pretenda regular, através de lei, serviço cuja prestação se insere na competência de outro ente federativo.

A relevância do princípio federativo é essencial, visto tratar-se de uma das escolhas fundamentais do legislador constituinte, o que o qualifica como princípio estabelecido, cuja inobservância deve ser objeto de reconhecimento e declaração em sede de ação direta de inconstitucionalidade.

O Col. STF já afirmou que a invasão da esfera de competência de um ente federativo por outro configura violação ao princípio federativo e, consequentemente, ofensa à Constituição.

Confira-se precedente que, mutatis mutandis, aplica-se à hipótese em exame:

“(...)

“Na espécie, cuida-se da autonomia do Estado, base do princípio federativo amparado pela Constituição, inclusive como cláusula pétrea (art. 60, § 4º, I). Na forma da jurisprudência desta Corte, se a majoração da despesa pública estadual ou municipal, com a retribuição dos seus servidores, fica submetida a procedimentos, índices ou atos administrativos de natureza federal, a ofensa à autonomia do ente federado está configurada (RE 145.018/RJ, Rel. Min. Moreira Alves; Rp 1426/RS, Rel. Min. Néri da Silveira; AO 258/SC, Rel. Min. Ilmar Galvão, entre outros)." (ADPF 33-MC, voto do Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 29-10-2003, Segunda Turma, DJ de 6-8-2004.)

(...)

Por último e não menos importante, embora não se trate especificamente de lei sobre trânsito e transporte, subsiste a inconstitucionalidade em decorrência da violação do princípio federativo, os termos acima expostos.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 1369, de 18 de junho de 2013, de Iacanga.

São Paulo, 26 de setembro de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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