Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0171510-33.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Iacanga

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Iacanga

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 1.371, de 18 de julho de 2013, de Iacanga, fruto de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre as normas para aquisição de casas populares no âmbito do Município de Iacanga e dá outras providências”.

2)      Diploma resultante de iniciativa parlamentar que disciplina programa de governo. Invasão da esfera da gestão administrativa. Contrariedade aos artigos 5º, 47, II e XIV e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

3)      Diploma que disciplina atividade realizada pelo Governo Estadual, por meio da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU). Violação da autonomia da Administração estadual e, consequentemente, do princípio federativo. Contrariedade aos artigos 1º e 144 da Constituição Paulista.

4)      Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito Municipal de Iacanga, tendo como alvo a Lei Municipal nº 1.371, de 18 de julho de 2013, de Iacanga, fruto de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre as normas para aquisição de casas populares no âmbito do Município de Iacanga e dá outras providências”.

Foi deferida liminar para suspender a eficácia do ato normativo impugnado (fls. 73/74).

Citado, o Procurador Geral do Estado declinou da possibilidade de oferecer defesa relativamente ao ato normativo (fls. 114, 117/118).

A Presidência da Câmara Municipal prestou informações (fls. 81/85), sustentando a constitucionalidade da lei.

É o relato do essencial.

A Lei Municipal nº 1.371, de 18 de julho de 2013, de Iacanga, fruto de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre as normas para aquisição de casas populares no âmbito do Município de Iacanga e dá outras providências” (cuja cópia, em inteiro teor, foi juntada às fls. 14/15), fixa parâmetros e procedimentos relativos a aspectos da realização de programa governamental relacionado à construção e distribuição de casas populares, ao tratar, particularmente, dos critérios para que os munícipes tenham acesso às referidas habitações.

Desse modo, interfere indisfarçavelmente no modo como será realizado um programa de governo, tangenciando, portanto, a esfera reservada à gestão administrativa. Isso permite o reconhecimento da sua inconstitucionalidade com fundamento nos artigos 5º, 47, II e XIV e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

Quando a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes, pois há incursão, pelo Legislativo, na denominada “reserva de administração”.

Criar determinado programa governamental, determinar o modo como ele será realizado ou mesmo impor providências singelas inseridas no âmbito da atividade administrativa é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Confira-se, a propósito, a célebre doutrina de Hely Lopes Meirelles, (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Observem-se, ademais, os inúmeros precedentes do Tribunal de Justiça nesse tema, reconhecendo a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, especialmente no que se refere à realização de programas de governo, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Nesse mesmo sentido o entendimento do Col. STF, colhido em julgados que, mutatis mutandis, aplicam-se à hipótese em exame:

“(...)

O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. (...) Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais.” (RE 427.574-ED, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 13-12-2011, Segunda Turma, DJE de 13-2-2012.)

(...)”

Mas não é só.

A lei municipal glosada nesta ação direta disciplina o exercício de atividade realizada pelo Governo Estadual, por meio da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU).

Tanto é assim que o seu art. 7º chega a prever o que segue:

“(...)

Art. 7º. Poderá o mutuário transferir direitos e obrigações decorrentes do contrato de financiamento de imóvel adquirido da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo – CDHU, decorrido o prazo de 10 (dez) anos de assinatura do respectivo contrato, consoante alínea ‘b’ do artigo 7º, sendo que o novo adquirente terá que atender todos os requisitos constantes desta lei.

(...)”

Ao disciplinar, de modo inequívoco, aspecto da atividade realizada pela Administração Pública direta e indireta do Estado de São Paulo, o legislador municipal invade parcela da autonomia da entidade estadual e viola, consequentemente, o princípio federativo, que é elemento fundamental, verdadeiro princípio estabelecido na ordem constitucional brasileira.

Restam violados, portanto, os artigos 1º e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

Note-se que o STF já examinou esse tema, embora em perspectiva invertida, reconhecendo a inconstitucionalidade da norma estadual que impõe condutas ao Poder Legislativo ou ao Poder Executivo do Município, precisamente por violação à autonomia da entidade federativa inferior. Confiram-se, a título de exemplificação, os seguintes precedentes:

“(...)

O art. 30 impõe aos Municípios ao encargo de transportar da zona rural para a sede do Município, ou Distrito mais próximo, alunos carentes matriculados a partir da 5º série do ensino fundamental. Há aqui indevida ingerência na prestação de serviço público municipal, com reflexos diretos nas finanças locais. O preceito afronta francamente a autonomia municipal. Também em virtude de agressão à autonomia municipal tenho como inconstitucional o § 3º do art. 35 da Constituição estadual: ‘as Câmaras Municipais funcionarão em prédio próprio ou público, independentemente da sede do Poder Executivo’. Isso é amplamente evidente. (...) Por fim, é ainda inconstitucional o § 3º do art. 38 da CE, já que os limites a serem observados pela Câmara Municipal na fixação dos subsídios do Prefeito e do Vice-Prefeito estão definidos no inciso V do art. 29 da Constituição de 1988, não cabendo à Constituição estadual sobre eles dispor. Há, aqui, afronta à autonomia municipal." (ADI 307, voto do Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 13-2-2008, Plenário, DJE de 1º-7-2009.)

(...)

 “Constituição estadual e autonomia do Município. A Constituição estadual não pode impor, ao Prefeito municipal, o dever de comparecimento perante a Câmara de Vereadores, pois semelhante prescrição normativa, além de provocar estado de submissão institucional do chefe do Executivo ao Poder Legislativo municipal (sem qualquer correspondência com o modelo positivado na Constituição da República), transgredindo, desse modo, o postulado da separação de poderes, também ofende a autonomia municipal, que se qualifica como pedra angular da organização político-jurídica da Federação brasileira. Precedentes. Infrações político-administrativas: incompetência legislativa do Estado-membro. O Estado-membro não dispõe de competência para instituir, mesmo em sua própria Constituição, cláusulas tipificadoras de ilícitos político-administrativos, ainda mais se as normas estaduais definidoras de tais infrações tiverem por finalidade viabilizar a responsabilização política de agentes e autoridades municipais. Precedentes.” (ADI 687, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 2-2-1995, Plenário, DJ de 10-2-2006.)

(...)”

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 1.371, de 18 de julho de 2013, de Iacanga.

São Paulo, 24 de outubro de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

rbl