Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0175320-16.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeita Municipal de Sumaré

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Sumaré

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 5.485, de 10 de maio de 2013, de Sumaré, de iniciativa parlamentar, que suspende a expedição de diretrizes e aprovação de loteamentos urbanos particulares até a conclusão da elaboração e aprovação da revisão do Plano Diretor do Município.

2)      Lei de iniciativa parlamentar que trata da ocupação e uso do solo. Encontra-se na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo dispor acerca do uso e ocupação do solo, uma vez que se trata de matéria subordinada a planejamento prévio, típica atividade administrativa, e participação comunitária. A suspensão de atividade administrativa é matéria inserida na reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo. Violação da separação de poderes, bem como das diretrizes constitucionais que determinam a necessidade de planejamento e participação popular na legislação relacionada ao tema (arts. 5º, 47, II e XIV, 144, 180, II, e 181, § 1º, da Constituição Estadual).

3)      Parecer no sentido da procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Desembargador Relator:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Prefeita Municipal de Sumaré, tendo como alvo a Lei nº 5.485, de 10 de maio de 2013, daquela urbe, de iniciativa parlamentar, que suspende a expedição de diretrizes e aprovação de loteamentos urbanos particulares até a conclusão da elaboração e aprovação da revisão do Plano Diretor do Município.

Sustenta a requerente, em síntese, a inconstitucionalidade em razão do vício de iniciativa, a usurpação de competência e a violação do princípio da independência e autonomia dos poderes. Daí, a afirmação de violação dos arts. 5º, §§ 1º e 2º, 180 e 183 da Constituição Estadual.

Foi indeferida a liminar (fl. 37).

Citado (fl. 46), o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa para o ato normativo (fls. 205/206).

Devidamente notificado (fl. 43), o Presidente da Câmara Municipal de Sumaré apresentou informações a fls. 48/50.

Nestas condições vieram os autos para manifestação final.

É o relato do essencial.

Procede o pedido.

A Lei nº 5.485, de 10 de maio de 2013, do Município de Sumaré, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do executivo, tem a seguinte redação:

“Art. 1º - Fica suspensa a expedição de diretrizes e aprovação de loteamentos urbanos particulares até a conclusão da elaboração e aprovação da revisão do Plano Diretor do Município de Sumaré

Art. 2º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 3º Revogam-se as disposições em contrário.”

O ato normativo impugnado é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II e XIV, 180, II, e 181, § 1º, da Constituição do Estado, aplicáveis aos municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

 (...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

(...)

Art.180. No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:

(...)

II – a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, plano, programas e projetos que lhes sejam concernentes;

(...)

Art.181. Lei municipal estabelecerá em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes.

§1º. Os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão considerar a totalidade de seu território municipal. (g.n.)

O ato normativo impugnado, fruto de iniciativa parlamentar, ao suspender a expedição de diretrizes e a aprovação de loteamentos urbanos particulares, interfere no âmbito das atividades do Poder Executivo relativas ao uso e ocupação do solo.

Não bastasse a indevida e inconstitucional ingerência em seara alheia, subordina-se a prática daqueles atos administrativos ao exercício de iniciativa legislativa do Poder Executivo voltada a elaboração e aprovação da revisão do Plano Diretor do Município.

Duplamente o legislativo municipal invade esfera privativa do Poder Executivo, ao obstar a prática de ato administrativo e a obrigar indiretamente que seja exercida iniciativa legislativa.

A matéria disciplinada pela Lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa do município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A expedição de diretrizes para futuros projetos de parcelamento do solo e a aprovação de loteamentos, é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, referente ao ordenamento urbanístico, a cargo do Chefe do Executivo. De outro lado, incumbe também ao Poder Executivo a iniciativa de projetos de lei referente a elaboração e revisão de Plano Diretor, haja vista envolver planejamento prévio, atividade tipicamente administrativa.

Tanto a expedição de diretrizes para o parcelamento do solo, quanto decisão acerca de suspensão da aprovação de loteamentos são  atividades nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode por meio de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da proibição de expedição de diretrizes e aprovação de loteamentos, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

 De outro lado, em face do crescente número de loteamento em curso no Município, por julgar oportuno rever o Plano Diretor, acabou obrigando o Poder Executivo ao exercício desta iniciativa legislativa privativa.

A revisão do Plano Diretor cabe privativamente ao Poder Executivo haja vista envolver atividades de planejamento típica da administração e informações de que só ela detém.

Tendo sido o Plano Diretor do Município de Sumaré aprovado em 2006, somente em 2016 é que o Poder Executivo ficará obrigado a promover sua revisão. Antes desta data, o exercício de sua iniciativa legislativa fica condicionada a critérios de conveniência e oportunidade, não podendo ser obrigado a exercê-la.

Desta forma, até 2016, cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da necessidade de revisão do plano diretor. Trata-se de atuação administrativa que fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade decorre da violação da regra da separação de poderes e da gestão do ordenamento urbanístico municipal, previstas na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV, 144, 180, II, e 181, § 1º).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da Administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo.

Assim, a Lei, ao suspender a expedição de diretrizes e aprovação de loteamentos até a revisão do plano diretor, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Cabe ainda ressaltar que o ato normativo foi editado sem qualquer estudo ou planejamento prévio, nem mesmo participação comunitária que pudesse lhe conferir legitimidade.

Nos termos dos art. 180, II e 181 § 1º, da Constituição Estadual, pode-se extrair que planejamento é indispensável à validade e legitimidade constitucional da legislação relacionada o uso do solo.

Todo e qualquer regramento relativo ao uso e ocupação do solo seja ele geral ou individualizado (autorização para construção em determinado imóvel, alteração do uso do solo para determinada via, área ou bairro, etc.) deve levar em consideração a cidade em sua dimensão integral, dentro de um sistema de ordenamento urbanístico, razão pela qual a exigência de planejamento e estudos técnicos.

O art. 182, caput, da CF disciplina que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

O inciso VIII do art. 30 da Constituição Federal prevê ainda a competência dos Municípios para “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano”.

Em decorrência dos dispositivos acima apontados pode-se concluir que: (a) a adequada política de ocupação e uso do solo é valor que conta com assento constitucional (federal e estadual); (b) a política de ocupação e uso adequado do solo se faz mediante planejamento e estabelecimento de diretrizes através de lei; (c) as diretrizes para o planejamento, ocupação e uso do solo devem constar do respectivo plano diretor, cuja elaboração depende de avaliação concreta das peculiaridades de cada Município; (d) a legislação específica sobre uso e ocupação do solo deve pautar-se por adequado planejamento e participação popular.

A norma urbanística é, por sua natureza uma disciplina, um modo, um método de transformação da realidade, de superposição daquilo que será a realidade do futuro àquilo que é a realidade atual.

Para que a norma urbanística tenha legitimidade e validade deve decorrer de um planejamento que é um processo técnico instrumentalizado para transformar a realidade existente no sentido de objetivos previamente estabelecidos. Não pode decorrer da simples vontade do administrador, mas de estudos técnicos que visem assegurar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade (habitar, trabalhar, circular e recrear) e garantir o bem-estar de seus habitantes.

O planejamento não é mais um processo discricionário e dependente da mera vontade dos administradores. Não é um simples fenômeno técnico, mas um verdadeiro processo de criação de normas jurídicas, que ocorre em duas fases: uma preparatória, que se manifesta em planos gerais normativos, e outra vinculante, que se realiza mediante planos de atuação concreta, de natureza executiva.

Previsto e exigido pela Constituição (art. 48, IV, art. 182  da CF e art. 180, II, da CE), tornou imposição jurídica a obrigação de elaborar planos, estudos quando se trate da elaboração normativa relativa ao estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano.

A ordenação do uso e ocupação do solo é um dos aspectos substanciais do planejamento urbanístico. Preconiza uma estrutura orgânica para a cidade, mediante aplicação de instrumentos legais como o do zoneamento e de outras restrições urbanísticas que, como manifestação concreta do planejamento urbanístico, tem por objetivo regular o uso da propriedade do solo e dos edifícios em áreas homogêneas no interesse do bem-estar da população, conformando-os ao princípio da função social.

A sistemática constitucional - relativa à necessidade de planejamento, diretrizes, e ordenação global da ocupação e uso do solo - evidencia que o casuísmo, nessa matéria, não é em hipótese alguma admissível.

Não se admite, nesse quadro, modificações individualizadas, pontuais, casuísticas e dissociadas da estrutura sistêmica da utilização de todo o solo urbano. Caso contrário, tornaria inócuo e sem qualquer validade todo o planejamento e estudos realizados pelo Poder Executivo, para fins de elaboração e aprovação do Plano Diretor e da Lei do Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo Urbano, pois qualquer iniciativa parlamentar poderia redundar na completa alteração de tudo o quanto planejado e decidido até então.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.

Tratando-se de matéria atinente a gestão da cidade, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A competência que disciplina a gestão administrativo-patrimonial é privativa do Chefe do Poder Executivo, assim a iniciativa do Legislativo importa em violação frontal ao texto constitucional que consagra a separação dos poderes estatais.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido de acolhimento da presente ação, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 5.485, de 10 de maio de 2013, de Sumaré.

 

São Paulo, 25 de outubro de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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