Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0177003-88.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Lucélia

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Lucélia

 

 

Ementa:

1)     Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 4.288, de 19 de março de 2012, do Município de Lucélia, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre o direito de uma folga anual para todos os servidores públicos municipais do Executivo e do Legislativo do município de Lucélia, no dia do seu aniversário, sem perda de vencimentos nas condições que especifica e outras providências.”

2)     A ampliação de direitos e vantagens dos servidores público é matéria inserida na reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo. Violação dos arts. 5º, 24, § 2º, 4, 128 e art. 144, da Constituição do Estado. Procedência do pedido.

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 4.288, de 19 de março de 2012, do Município de Lucélia, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre o direito de uma folga anual para todos os servidores públicos municipais do Executivo e do Legislativo do município de Lucélia, no dia do seu aniversário, sem perda de vencimentos nas condições que especifica e dá outras providências”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional em relação aos servidores vinculados ao Poder Executivo, por apresentar vício de iniciativa e violar o princípio da separação dos poderes. Daí a afirmação de ofensa ao disposto nos arts. 5º e 24, § 2º, IV, da Constituição Estadual.

Após regularizada a inicial, foi deferido o pedido de liminar para suspensão da vigência e eficácia da Lei nº 4.288, de 19 de março de 2012, do Município de Lucélia, no que se refere aos servidores do Poder Executivo (fls. 30/31).

Citado regularmente (fl. 43), o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 45/46).

Devidamente notificado (fl. 40), o Presidente da Câmara Municipal prestou informações às fls. 48/49.

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

Procede o pedido.

A Lei nº 4.288, de 19 de março de 2012, do Município de Lucélia, de iniciativa parlamentar, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após inércia do Poder Executivo, tem a seguinte redação:

“Art. 1º - Fica concedido nos termos da presente Lei a todos os servidores públicos municipais do Executivo e do Legislativo do município de Lucélia, o direito a uma folga anual no dia do seu aniversário, sem perda de vencimentos.

Art. 2º - Para obter o direito de que trata apresente Lei, o servidor público municipal deverá informar a data à chefia imediata, com antecedência mínima de 15 (quinze) dias.

Art. 3º - Terá direito ao benefício o servidor que obedecer o seguinte:

I - O servidor público municipal não deverá ter nenhuma advertência escrita no último ano;

II - Nenhuma suspensão no último ano;

III – Não ter mais que 03 (três) faltas não justificadas no período de um ano, entradas tardias e saídas antecipadas sem causa justificada;

IV – O servidor não poderá transferir a dispensa para outra data, nem utiliza-la para compensar ausências.

Art. 4º - Caso a data do aniversário coincida com dias nos quais não haja expediente na referida área do funcionário, o benefício deverá ser gozado no dia imediatamente posterior.

§ 1º - Havendo muitos aniversariantes na mesma data, o responsável pela secretaria, departamento ou setor, poderá agendar a folga em dias diferentes.

§ 2º - Farão jus ao benefício de que trata esta Lei, todos os servidores públicos municipais do quadro efetivo ou comissionado.

Art. 5º - Excetuam-se da presente Lei os direitos previstos no Estatuto dos Servidores Públicos Municipais, onde estão especificados os casos de faltas justificadas por lei.  

Art. 6º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação.”

O ato normativo impugnado apresenta vício de inconstitucionalidade formal por violar a reserva de iniciativa do Poder Executivo e o princípio da separação de poderes, previstos nos arts. 5º, 24, § 2º, II e XIV e 128, aplicáveis aos municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 - criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

(...)

4 - servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

(...)

Art. 128 - As vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço.

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Verifica-se que a lei municipal impugnada ao conceder ao servidor público do Poder Executivo direito a folga no dia de seu aniversário, tratou de matéria relativa ao regime jurídico do funcionalismo público.

Desta forma, a lei de iniciativa parlamentar revela-se invasiva da esfera da iniciativa privativa do Poder Executivo.

O regime de todos os servidores públicos do Município, sejam eles do Legislativo, ou do Executivo, é da iniciativa reservada do Chefe do Executivo.

O processo legislativo, compreendido o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e harmonia dos Poderes.

O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República, conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo, difuso ou concentrado, por parte do Poder Judiciário.

A iniciativa, o ato que deflagra o processo legislativo, pode ser geral ou reservada (ou privativa).

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, cuidou de matéria relativa a requisitos de escolaridade para acesso a cargo público disciplinando aspectos integrantes de seu regime jurídico, cuja iniciativa cabe ao Chefe do Poder Executivo.

A propósito, a Constituição Estadual estabelece que cabe exclusivamente ao Governador a iniciativa das leis que disponham sobre fixação da remuneração aos cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como sobre servidores públicos e seu regime jurídico (CE, art. 24, § 2°, 4).

Tal regramento deve ser observado pelos municípios por força do princípio da simetria previsto no art. 144 da Constituição Paulista.

Assim, quando o Poder Legislativo do município edita lei disciplinando matéria relativa ao regime jurídico dos servidores públicos do Poder Executivo, como ocorre, no caso em exame, em função da criação do direito a folga do servidor no dia do seu aniversário, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos municípios (arts. 24, § 2°, 1 e 4; 144).

Neste sentido, é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, senão vejamos:

“INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Lei nº 740/2003, do Estado do Amapá. Competência legislativa. Servidor Público. Regime jurídico. Vencimentos. Acréscimo de vantagem pecuniária. Adicional de Desempenho a certa classe de servidores. Inadmissibilidade. Matéria de iniciativa exclusiva do Governador do Estado, Chefe do Poder Executivo. Usurpação caracterizada. Inconstitucionalidade formal reconhecida. Ofensa ao art. 61, § 1º, II, alínea ‘a’, da CF, aplicáveis aos estados. Ação julgada procedente. Precedentes. É inconstitucional a lei que, de iniciativa parlamentar, conceda ou autorize conceder vantagem pecuniária a certa classe de servidores públicos” (STF, ADI 3.176-AP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, 30-06-2011, v.u., DJe 05-08-2011).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. CONCESSÃO DE VANTAGENS PECUNIÁRIAS A SERVIDORES PÚBLICOS. SIMETRIA. VÍCIO DE INICIATIVA. 1. As regras de processo legislativo previstas na Carta Federal aplicam-se aos Estados-membros, inclusive para criar ou revisar as respectivas Constituições. Incidência do princípio da simetria a limitar o Poder Constituinte Estadual decorrente. 2. Compete exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo a iniciativa de leis, lato sensu, que cuidem do regime jurídico e da remuneração dos servidores públicos (CF artigo 61, § 1º, II, ‘a’ e ‘c’ c/c artigos 2º e 25). Precedentes. Inconstitucionalidade do § 4º do artigo 28 da Constituição do Estado do Rio Grande do Norte. Ação procedente” (STF, ADI 1.353-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, 20-03-2003, v.u., DJ 16-05-2003, p. 89).

A propósito, convém destacar as seguintes decisões desse Colendo Órgão Especial:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. VICIO DE INICIATIVA. Lei municipal de  autoria de membro do Poder  Legislativo que  dispõe sobre a concessão de  auxílio-alimentação  aos servidores. Matéria  inserida na reserva de iniciativa do Chefe do  Executivo.  Separação dos Poderes. Ofensa aos art. 5º, "caput", da CESP, e  a 2° da CF/88. Caracterização de vício de iniciativa. Inconstitucionalidade formal subjetiva. Ação julgada procedente.” (ADI nº 0269127-61.2011.8.26.0000, Rel. Des. Roberto Mac Cracken, j. 21 de março de 2012)

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei do Município de Ituverava, de iniciativa parlamentar, que concede aos servidores municipais 1/30 (um trinta avós) de seus vencimentos mensais, por dia de férias, após vinte anos de efetivo exercício. Invasão da competência reservada ao Chefe do Poder Executivo. Ingerência na Administração do Município. Vício de iniciativa configurado. Violação ao Princípio da Separação de Poderes. Criação de despesas sem a indicação da fonte de custeio. Violação dos artigos 5o, 24, §2°, 1 e 4, 25, 47, II e XIV, 111, 128 e 144, da Constituição do Estado. Precedentes. Inconstitucionalidade reconhecida. Modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Art. 27, da Lei n° 9.868/99. Ação procedente, com modulação dos efeitos.” (ADI nº 0022157-16.2013.8.26.0000, Rel. Des. Caetano Lagrasta, j. 24 de julho de 2013)

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Emenda n° 37, de 7 de março de 2012, que deu nova redação ao parágrafo único do art. 88 da Lei Orgânica do Município de Ituverava, editada a partir de proposta parlamentar, que dispôs acerca dos requisitos para incorporação de vencimentos percebidos no exercício transitório de cargos de remuneração superior por servidores públicos municipais - Legislação que versa questão atinente ao regime jurídico do funcionalismo local, afeta à competência privativa do Chefe do Poder Executivo local - Inobservância da iniciativa reservada conferida ao Prefeito que acabou por implicar em afronta ao princípio da separação dos poderes - Previsão legal, ademais, que acarreta o evidente incremento das despesas do Município com o pagamento dos servidores, sem que se tivesse declinado a respectiva fonte de custeio - Vícios de inconstitucionalidade aduzidos na exordial que, destarte, ficaram evidenciados na espécie, por afronta aos preceitos contidos nos artigos 5o, 24, § 2o, "4", 25 e 144, todos da Constituição do Estado de São Paulo - Precedentes desta Corte - Servidores públicos beneficiados com a disposição legal questionada que perceberam as vantagens ali previstas de boa-fé, não se mostrando razoável impor-se a repetição daqueles valores ~ Presença, destarte, de relevante interesse social na espécie, que recomenda a modulação dos efeitos da presente declaração de inconstitucionalidade, a partir da concessão da medida liminar nestes autos, por aplicação da regra contida no art. 27 da Lei Federal n° 9868/99 - Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente, com modulação dos efeitos.” (ADI nº 0022160-68.2013.8.26.0000, Rel. Des. Paulo Dimas Mascaretti, j. 24 de julho de 2013)

Ampliar direitos e garantias do servidor público – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

De outro lado, a vantagem criada, previsão de folga no dia do aniversário do servidor, destoa dos princípios de moralidade, impessoalidade, razoabilidade e do interesse público constantes do art. 111 da Constituição Estadual que reproduz o art. 37 da Constituição Federal.

Enquanto a razoabilidade serve como parâmetro no controle da legitimidade substancial dos atos normativos, requerente de compatibilidade aos conceitos de racionalidade, justiça, bom senso, proporcionalidade etc., interditando discriminações injustificáveis e, por isso, desarrazoadas, a moralidade se presta à mensuração da conformidade do ato estatal com valores superiores (ética, boa fé, finalidade, boa administração etc.), vedando atuação da Administração Pública pautada por móveis ou desideratos alheios ao interesse público (primário) – ou seja, censura o desvio de poder que também tem a potencialidade de incidência nos atos normativos.

Por sua vez, a impessoalidade proíbe discriminações e privilégios destituídos de relação lógica entre o elemento discriminante e a finalidade da discriminação para além daquelas consignadas na Constituição, se imbricando ao interesse público (finalidade) de maneira a guiar a Administração Pública para satisfação do bem comum e não para distribuição de regalias, privilégios ou mordomias.

Importante ressaltar que o art. 128 da Constituição Estadual, inspirado pelos princípios constitucionais anteriormente mencionados, impede a outorga de vantagens pecuniárias aos servidores públicos que não atendam as necessidades do serviço além do interesse público. Na hipótese dos autos não se vislumbra razoabilidade e nem necessidade de conceder ao servidor folga no dia do seu aniversário.

A concessão de folga ao servidor no dia do seu aniversário não se conforma com a moral administrativa e com o interesse público.

A necessidade de verificar se o direito criado atende efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço, está motivada pela sobriedade e prudência que os municípios devem ter em relação à gestão da coisa pública.

Como ressaltado, a criação do direito de folga no dia do aniversário do servidor não atende a nenhum interesse público, e tampouco às exigências do serviço, servindo apenas como mecanismo destinado a beneficiar interesses exclusivamente privados dos agentes públicos.

A vantagem concedida não passa pelo denominado “teste” de razoabilidade, ou seja, que ela seja: (a) necessária (a partir da perspectiva dos anseios da Administração Pública); (b) adequada (considerando os fins públicos que com a norma se pretende alcançar); e (c) proporcional em sentido estrito (que as restrições, imposições ou ônus dela decorrentes não sejam excessivos ou incompatíveis com os resultados a alcançar).

O direito de folga no dia do aniversário não passa por nenhum dos critérios do teste de razoabilidade: (a) não atende a nenhuma necessidade da Administração Pública, vindo em benefício exclusivamente da conveniência dos servidores públicos beneficiados; (b) é, por consequência, inadequada na perspectiva do interesse público; (c) é desproporcional em sentido estrito, pois pode criar problemas na prestação do serviço público, sem qualquer benefício para a Administração Pública.

A ofensa ao princípio da razoabilidade tem servido, em julgados desse C. Órgão Especial, ao reconhecimento da inconstitucionalidade de leis que criam ônus excessivos e desnecessários para seus destinatários ou para o próprio Poder Público. Confira-se: ADI 0136976-34.2011.8.26.0000, Rel. Des. Renato Nalini, j. 16 de novembro de 2011, ADI 152.442-0/1-00, j. 07.05.08, v.u., rel. des. Penteado Navarro; ADI 150.574-0/9-00, j. 07.05.08, v.u., rel; des. Debatin Cardoso.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade total do art. 1º Lei nº 4.288, de 19 de março de 2012, do Município de Lucélia.  

                  São Paulo, 16 de dezembro de 2013.

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

 

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