Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº.  0177817-03.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de São José do Rio Preto

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de São José do Rio Preto

Objeto: Lei nº 11.358, de 26 de julho de 2013, do Município de São José do Rio Preto

 

Ementa:

 

1.      Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei nº 11.358, de 26 de julho de 2013, do Município de São José do Rio Preto, que “Institui feriado municipal o ‘Dia Municipal da Consciência Negra’.

 

2.      A Instituição de feriado em homenagem ao dia da Consciência Negra não constitui matéria de iniciativa reservada ao poder executivo e nem mesmo de competência privativa da União.   Iniciativa concorrente para a deflagração do processo legislativo.  Interesse local presente.   Constitucionalidade da norma constatada.  Parecer pela improcedência da ação.

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador-Presidente:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei nº 11.358, de 26 de julho de 2013, do Município de São José do Rio Preto, de iniciativa parlamentar, que Institui feriado municipal o ‘Dia Municipal da Consciência Negra’.

Sustenta o requerente que o referido diploma legal estaria maculado pelo vício de iniciativa, já que o projeto é oriundo do Poder Legislativo. Alega, ainda, que a Lei viola o princípio da separação dos poderes. Aponta, por fim, a inconstitucionalidade material da norma, pois compete à União, de forma privativa, legislar sobre Direito Civil e do Trabalho.

A liminar foi indeferida (fls. 25), porque não se vislumbrou a presença "indispensável do requisito fumus boni iuris".

O Prefeito do Município de São José do Rio Preto interpôs agravo regimental (fls. 31/42), o qual foi improvido, por meio do v. acórdão de fls. 47/50.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa da norma questionada, consignando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 57/58).

A Câmara Municipal prestou informações às fls. 60/63, apenas quanto ao processo legislativo.

É o relato do essencial.

Assim dispõe a impugnada norma:

“Artigo 1º - Institui no calendário oficial de feriados do Município de São José do Rio Preto, a ser comemorado, anualmente, o dia 20 de novembro como o “Dia Municipal da Consciência Negra”.

Artigo 2º - O Poder Executivo Municipal poderá divulgar e realizar eventos comemorativos, no dia 20 de novembro de cada ano, em homenagem aos afros descendentes do Município de São José do Rio Preto.

Artigo 3º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação oficial."

Quanto ao alegado vício formal, pode-se afirmar que a matéria versada na lei impugnada não é de iniciativa legislativa reservada ao Executivo, pois não está contemplada no rol do art. 24, § 2º, 1 a 6, da Constituição Paulista, inexistindo, por esse aspecto, qualquer inconstitucionalidade a ser declarada em razão do impulso parlamentar dado ao projeto que culminou com a edição do ato normativo em epígrafe.

De outro lado, não há, também, violação ao postulado constitucional da independência e harmonia entre os Poderes.

A Constituição do Estado prescreve iniciativa privativa do Chefe do Executivo para leis que versem, em síntese, sobre: cargos, funções e empregos públicos na administração direta e indireta e sua remuneração; criação e extinção de órgãos na administração pública; regime jurídico dos servidores públicos (cf. art.24, §2º, n. 1 a 6 da Constituição Estadual). Reitera a Carta Paulista, em linhas gerais, as limitações contidas no art.61, §1º, inciso II da Constituição Federal.

De outro lado, a Constituição do Estado de São Paulo também determina que cabe ao Executivo exercer a direção superior da Administração Estadual, bem como a prática de atos de administração (art.47, incisos II e XIV).

O princípio da independência e harmonia entre os Poderes, adotado expressamente no ordenamento constitucional brasileiro, não coloca o Executivo em posição de preeminência, e o Legislativo em situação de mera coadjuvação. É indispensável vislumbrar a proporcionalidade de forças na formulação das opções políticas do Estado, decorrente do sistema de separação associado aos freios e contrapesos (checks and balances), que Executivo e Legislativo, atuando em suas respectivas esferas de atribuição, possuem a mesma relevância política.

Assim como o Executivo não deve sofrer indevida interferência em sua primacial função de administrar (planejamento, direção, organização e execução das atividades da Administração), o Legislativo não deve ver minimizada sua atividade de legislar. Afinal, em última análise, nosso regime democrático é representativo, e o Poder Legislativo, em sede de elaboração legislativa, reflete a própria voz da vontade popular.

Entendimento diverso significa admitir, como perfil do Estado Democrático brasileiro, numa imagem representativa, uma balança deslocada para um lado de maior importância e prestígio: o lado do Poder Executivo. Um Executivo hipertrofiado em suas atribuições e poderes, ladeado por um Legislativo que se limitará a chancelar iniciativas daquele.

Não parece ter sido esta a opção do Constituinte.

Note-se, de início, que a essência da separação de Poderes, como ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho, é a “proteção da independência de determinado Poder, como ocorre com a de iniciativa em favor do Judiciário, que aliás, procede da inspiração que em Montesquieu sugeria a atribuição de veto ao Executivo, ou a redução das despesas públicas" (Do processo legislativo, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p.147).

Como anota José Afonso da Silva, nos casos de iniciativa reservada aos Chefes do Executivo só estes “estão em condições de saberem quais são esses interesses e como fazerem para resguardá-los” (Processo constitucional de formação das leis, 2ªed., São Paulo, Malheiros, 2006, p.179).

Deve-se notar, entretanto, que a regra em nosso regime constitucional é a livre iniciativa legislativa, que decorre do art. 61, caput da CF, ao passo que as hipóteses de iniciativa reservada são excepcionais. Como tal é curial que regras de exceção sejam interpretadas restritivamente, sem a possibilidade de extensão por integração ou interpretação analógica.

Lembrando o brocardo latino segundo o qual “exceptiones sunt strictissimae interpretanionis”, há muito Carlos Maximiliano anotava que “as disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas jurídicas ou contra o direito comum, por isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente” (Hermenêutica e aplicação do direito, 18ªed., Rio de Janeiro, Revista Forense, 1999, p.227).

O Pretório Excelso já assentou que as hipóteses indicadas pelo texto constitucional como casos de iniciativa legislativa privativa do Executivo, assumindo o caráter de direito excepcional, na expressão de Carlos Maximiliano, devem ser interpretadas de forma restritiva. Confira-se:

"O respeito às atribuições resultantes da divisão funcional do Poder constitui pressuposto de legitimação material das resoluções estatais, notadamente das leis. Prevalece, em nosso sistema jurídico, o princípio geral da legitimação concorrente para instauração do processo legislativo. Não se presume, em conseqüência, a reserva de iniciativa, que deve resultar — em face do seu caráter excepcional — de expressa previsão inscrita no próprio texto da Constituição, que define, de modo taxativo, em numerus clausus, as hipóteses em que essa cláusula de privatividade regerá a instauração do processo de formação das leis. O desrespeito à prerrogativa de iniciar o processo legislativo, quando resultante da usurpação do poder sujeito à cláusula de reserva, traduz hipótese de inconstitucionalidade formal, apta a infirmar, de modo irremissível, a própria integridade do diploma legislativo assim editado, que não se convalida, juridicamente, nem mesmo com a sanção manifestada pelo Chefe do Poder Executivo (...).”    (ADI 776-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-10-92, DJ de 15-12-06, g.n.).

"A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição — e nele somente —, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima — considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa — se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa." (MS 22.690, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-4-97, DJ de 7-12-06, g.n.).

Também não se caracteriza, na hipótese, prática de ato de administração pelo legislativo, o que poderia amparar o reconhecimento da tese da quebra do princípio da separação de poderes. Note-se que a lei aqui analisada reveste-se de todos os pressupostos necessários à sua configuração como ato normativo: generalidade, impessoalidade, e abstração.

Não se constata, ainda, inconstitucionalidade material, em razão de invasão da esfera de competência legislativa privativa da União (art. 22, I, da CF).

No tocante a feriados, dispõe a Lei federal n. 9.093, de 12 de setembro de 1995:

“Art. 1º- São feriados civis:

I- os declarados em lei federal;

II- a data magna do Estado fixada em lei federal;

III- os dias do início e do término do ano do centenário de fundação do Município, fixados em lei municipal;

Art. 2º- São feriados religiosos os dias de guarda, declarados em lei municipal, de acordo com a tradição local e em número não superior a quatro, neste incluída a Sexta-feira da Paixão.

Art. 3º- Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 4º- Revogam-se as disposições em contrário, especialmente o art. 11 da Lei nº 605, de 5 de janeiro de 1949.”

Diante do que dispõe esse diploma, seria possível argumentar que, se o legislador federal disciplinou o tema em todo o território nacional, o assunto não se restringiria exclusivamente ao interesse local, transcendendo aos interesses meramente municipais, de forma que o feriado da “Consciência Negra”, de natureza civil, não se enquadraria na hipótese do art. 1º, inciso III, da norma transcrita.

Todavia, o confronto com a legislação federal não é admissível nesta sede, uma vez que o único parâmetro de controle aqui admitido é a Constituição do Estado, conforme esta dispõe em seu art. 90 (em consonância, aliás, com o previsto no art. 125, § 2º. da Carta da República).

A esse respeito, ensina o Ministro Gilmar Mendes:

“não se pode, no sistema brasileiro, invocar o direito federal como parâmetro do controle abstrato de normas. A legislação ordinária federal pode assumir relevância, porém, na aferição de constitucionalidade de leis estaduais, editadas com fundamento na competência concorrente (CF, art. 24, §§ 3º e 4º). É que, existindo lei federal sobre as matérias elencadas no art. 24 (incisos I – XVI), não pode o Estado-Membro fazer uso da competência legislativa plena que lhe é assegurada em caso de ‘vácuo-legislativo’. A norma federal ordinária limita e condiciona essa faculdade.”[1]

De outro lado, a Constituição Federal atribuiu competência aos Municípios para legislar sobre assuntos de interesse local, como, por exemplo, a instituição de feriados de relevância local (art. 30, I, da CF).

Em julgamento realizado por esse Egrégio Órgão Especial, em outra ação direta de inconstitucionalidade versando tema idêntico (instituição do feriado da “Consciência Negra” pelo município de Santa Bárbara d´Oeste) foi assinalado:

“A Constituição da República, ademais, não veda aos municípios, desde que respeitados os limites da razoabilidade, fixar datas de feriados segundo as suas próprias tradições (art. 30, I). Diante, pois, da necessidade de análise de legislação infraconstitucional e de ausência, na Constituição do Estado, de dispositivos que impeçam os Municípios de legislar sobre feriados, a lei que se busca impugnar não pode ser tachada de inconstitucional por esta E. Corte de Justiça.” (Adin 99.484.0/7-00, Rel. Des. Jarbas Mazzoni, j. em 10/9/2003)

Acerca do tema já decidiu o Colendo Supremo Tribunal Federal, ao examinar a alegada inconstitucionalidade de lei de mesmo teor do município do Rio de Janeiro: 

O Município do Rio de Janeiro legislou sobre assunto que pode ser tido como de interesse local, muito embora não se mostre peculiar, específico, exclusivo ao campo de atuação. Esse predicado é dispensável, porquanto não há antinomia entre a noção de interesses locais e interesses gerais. Quanto ao inciso II, já foi dito que a suplementação diz respeito à legitimação concorrente. Em suma, acabou-se por julgar procedente a representação não considerados os parâmetros, em si, da Carta do Estado do Rio de Janeiro, mas os limites da legislação federal. Ao assim se proceder, adotou-se entendimento distanciado das balizas ditadas pelo artigo 125, § 2º, da Constituição Federal, além de invadir-se, no julgamento de fundo, área reservada ao Município.” (RE 251.470-5 RJ, relator Min. Marco Aurélio, j. em 24/5/2000.)

Portanto, a instituição de feriados municipais insere-se no âmbito da competência legislativa municipal, afeta ao interesse local (art. 30, I, da CF), razão pela qual não há afronta ao art. 22, I, da Constituição Federal, e, consequentemente, ao art. 144 da Constituição Estadual, como alegado pelo requerente.

Diante do exposto, aguarda-se a improcedência da presente ação direta, reconhecendo-se a constitucionalidade da Lei Municipal nº 11.358, de 26 de julho de 2013, do Município de São José do Rio Preto.

 

 São Paulo, 13 de fevereiro de 2014.

 

 

       Nilo Spinola Salgado Filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

      Jurídico

 

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[1] Jurisdição Constitucional, São Paulo: Saraiva, 5ª ed., 2005, p. 239.