Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0180263-76.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeita Municipal de Piquete

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Piquete

 

Ementa:

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 1.974, de 09 de agosto de 2013, do Município de Piquete, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a divulgação na página oficial da Prefeitura Municipal de Piquete na internet, da relação de medicamentos disponíveis na Secretaria de Saúde e Postos de Saúde e dá outras providências.

2)      Limites à cognição judicial no processo objetivo de controle de constitucionalidade das leis. Precedentes do E. STF. A ofensa à legislação infraconstitucional não é suficiente para deflagrar o processo objetivo de controle de constitucionalidade. Ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

3)     Obrigatoriedade imposta a órgão público. Violação dos arts. 5º, 24, § 2º, 2 e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista. Encontra-se na reserva da Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a organização e regulamentação dos serviços públicos.

 

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 1.974, de 09 de agosto de 2013, do Município de Piquete, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a divulgação na página oficial da Prefeitura Municipal de Piquete na internet, da relação de medicamentos disponíveis na Secretaria de Saúde e Postos de Saúde e dá outras providências”.

Sustenta a requerente que a lei é inconstitucional por apresentar vício de iniciativa, violar o princípio da separação dos poderes, invadir esfera de atuação do Poder Executivo e por criar despesas sem previsão de custeio. Daí, a alegação de violação dos arts. 5º e 25 da Constituição Estadual, à Lei Orgânica Municipal e à Lei de Responsabilidade Fiscal.

Foi deferida a liminar para a suspensão da eficácia do ato normativo impugnado (fls. 24/25).

Devidamente notificado (fl. 34), o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações defendendo a validade do ato normativo impugnado (fls. 40/44).

Citado regularmente (fl. 56), o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 36/38).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

1.   Da alegação de violação da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Lei Orgânica Municipal

Inicialmente oportuno consignar que o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste com normas da Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) e da Lei Orgânica Municipal.

Já se consolidou o entendimento, inclusive no Supremo Tribunal Federal que a ofensa reflexa ou indireta ao texto constitucional não viabiliza a instauração da jurisdição constitucional.

Por este motivo, passa-se a análise tão só de eventual contraste dos atos normativos impugnados com a Constituição Estadual.

2.   Das inconstitucionalidades

Procede o pedido

A Lei nº 1.974, de 09 de agosto de 2013, do Município de Piquete, de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a divulgação na página oficial da Prefeitura Municipal de Piquete na internet, da relação de medicamentos disponíveis na Secretaria de Saúde e Postos de Saúde e dá outras providências, foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após rejeição do veto do executivo, com a seguinte redação:

“Artigo 1º - O Poder Executivo deverá divulgar em sua página oficial na internet a relação de medicamentos à disposição da população na Secretaria de Saúde e nos Postos de Saúde do Município.

Parágrafo Único – Além da relação de medicamentos, que será atualizada semanalmente, deverão ser oferecidas informações que esclareçam a população sobre as formas de distribuição dos medicamentos.

Artigo 2º - Deverá também o Poder Executivo divulgar em sua página oficial a relação de medicamentos de “Alto custo” cedido pelo programa de Assistência Farmacêutica da Secretaria Estadual de Saúde do Estado de São Paulo, juntamente com o trâmite necessário para a solicitação dos mesmos.

Artigo 3º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação revogadas as disposições em contrário.”

O ato normativo impugnado é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes, previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

(...)

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

XIX - dispor, mediante decreto, sobre:

a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A matéria disciplinada pela Lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja organização, funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Estaduais ou Municipais.

A escolha e o conteúdo das matérias de divulgação na página oficial na Internet da Prefeitura Municipal, é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

Trata-se de atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode por meio de lei ocupar-se da administração, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da obrigatoriedade em divulgar na página da internet do Município a relação de medicamentos a disposição da população, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade da criação e regulamentação dos serviços em benefício dos cidadãos. Trata-se de atuação administrativa que fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a, e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX, da Constituição Estadual.

Assim, a lei, ao instituir condições da prestação de serviço público, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Por fim, importante ressaltar que não se verifica violação ao art. 25 da Constituição Estadual, uma vez que as providências administrativas criadas pelo ato normativo não geram novas despesas para Administração Pública.

         Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 1.970, de 15 de maio de 2013, do Município de Piquete.

                  São Paulo, 02 de dezembro de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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