Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0182060-87.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de São José do Rio Preto

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de São José do Rio Preto

 

 

Ementa:

1)      Preliminarmente. Necessidade de regularizar a representação. Na ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal, legitimado ativo é o Prefeito do Município (art. 90, II, CE/89), e considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de, no mínimo, poderes específicos e subscrição conjunta da petição inicial e consequente inadmissibilidade da forma isolada pelo procurador.

2)      Ação direta de inconstitucionalidade. Emenda nº 048 à Lei Orgânica do Município de São José do Rio Preto, de 8 de maio de 2013, fruto de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre normas para aquisição de casas populares no âmbito daquele Município.

3)      Diploma resultante de iniciativa parlamentar que disciplina programa de governo. Invasão da esfera da gestão administrativa. Contrariedade aos artigos 5º, 47, II e XIV e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

4)      A proteção das famílias que “tenham mulher como seu sustentáculo” viola os arts. 111 e 144, CE/89, por falta de razoabilidade e afronta ao princípio da isonomia.

5)      Inconstitucionalidade reconhecida.

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito Municipal de São José do Rio Preto, tendo como alvo a Emenda nº 048 à Lei Orgânica do Município de São José do Rio Preto, fruto de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre normas para aquisição de casas populares no âmbito daquele Município.

Foi deferida liminar para suspender a eficácia do ato normativo impugnado (fls. 91/93).

Citado, o Procurador Geral do Estado declinou da possibilidade de oferecer defesa relativamente ao ato normativo (fls. 142/143).

A Presidência da Câmara Municipal prestou informações (fls. 103/106), atendo-se ao processo legislativo.

É o relato do essencial.

Preliminarmente, a petição inicial é subscrita apenas por douto Procurador Municipal (fl. 11), sem poderes específicos para a propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade tendo por objeto a impugnada norma.

A legitimidade ativa pertence ao Prefeito do Município (art. 90, II, Constituição Estadual), bem como a capacidade postulatória, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal:

“O Governador do Estado de Pernambuco ajuíza ação direta de inconstitucionalidade, na qual alega que a decisão 123/98 do Tribunal de Contas da União, ao exigir autorização prévia e individual do Senado Federal para as operações de crédito entre os Estados e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, teria afrontado as disposições dos artigos 1º e 52, incisos V e VII, da Constituição Federal.

2.      Entende possuir legitimidade para a ação, em face dos reflexos do ato impugnado sobre o Estado.

3.      É a síntese do necessário.

4.      Decido.

5.        Verifico que a ação, embora aparentemente proposta pelo Chefe do Poder Executivo estadual, está apenas assinada pelo Procurador-Geral do Estado. De plano, resulta claro que o signatário da inicial atuou na estrita condição de representante legal do ente federado (CPC, artigo 12, I), e não do Governador, pessoas que não se confundem.

6.      A medida constitucional utilizada revela instituto de natureza excepcional, em que se pede ao Supremo Tribunal Federal que examine a lei ou ato normativo federal ou estadual, em tese, para que se proceda ao controle normativo abstrato do ato impugnado em face da Constituição.

7.      Com efeito, cuida ela de processo objetivo sujeito à disciplina processual própria, traçada pela Carta Federal e pela legislação específica - Lei 9.896/99. Inaplicáveis, assim, as regras instrumentais destinadas aos procedimentos de natureza subjetiva.

8.      O Governador de Estado é detentor de capacidade postulatória intuitu personae para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie (ADI(AgRg)1.797-PE, DJ de 23.2.01; ADI (AgRg) 2.130-SC, Celso de Mello, j. de 3.10.01, Informativo 244; ADI (EMBS.) 1.105-DF, Maurício Corrêa, j. de 23.8.01).

9.     Por essa razão, inclusive, reconhece-se à referida autoridade, independentemente de sua formação, aptidão processual plena ordinariamente destinada apenas aos advogados (ADIMC 127-AL, Celso de Mello, DJ 04.12.92), constituindo-se verdadeira hipótese excepcional de jus postulandi.

10.     No caso concreto, em que pese a invocação do nome do Governador como sendo autor da ação (fl.2), a alegada representação pelo signatário não restou demonstrada. Indiscutível, é que a medida foi efetivamente ajuizada pelo Estado, na pessoa de seu Procurador-Geral, que nesta condição assinou a peça inicial.

11.     Ante essas circunstâncias, com fundamento no artigo 21, § 1º do RISTF, bem como nos artigos 3º, parágrafo único e 4º da Lei 9.868/99, não conheço da ação” (STF, ADI 1814-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 13-11-2001, DJ 12-12-2001, p. 40).

Consoante explica a doutrina, “os legitimados para a ação direta referidos nos itens I a VII do art. 103 da CF dispõem de capacidade postulatória plena, podendo atuar no âmbito da ação direta sem o concurso de advogado” (Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle concentrado de constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2007, 2ª ed., p. 246).

Logo, considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de, no mínimo, subscrição conjunta da petição inicial e consequente inadmissibilidade da forma isolada pelo advogado.

Ademais, há decisão registrando que:

“É de exigir-se, em ação direta de inconstitucionalidade, a apresentação, pelo proponente, de instrumento de procuração ao advogado subscritor da inicial, com poderes específicos para atacar a norma impugnada” (STF, ADI-QO 2187-BA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Octavio Gallotti, 24-05-2000, m.v., DJ 12-12-2003, p. 62).

Esse entendimento foi direcionado também para os integrantes da advocacia pública.

Assim sendo, opino, preliminarmente, pela intimação do autor para subscrição da petição inicial e regularização da representação processual (mandato com poderes específicos), no prazo legal, sob pena de indeferimento, aviando, desde já, nas hipóteses de inércia ou recusa, a extinção sem resolução do mérito.

Vencida a preliminar, no que se refere à questão de fundo, a Emenda nº 048 à Lei Orgânica do Município de São José do Rio Preto, fruto de iniciativa parlamentar, que “Acresce o parágrafo único ao artigo 186 da Lei Orgânica do Município de São José do Rio Preto”, dispõe sobre normas para aquisição de casas populares no âmbito daquele Município (cuja cópia, em inteiro teor, foi juntada à fl. 19), fixa parâmetros relativos a aspectos da realização de programa governamental relacionado à construção e distribuição de casas populares, ao tratar, particularmente, dos critérios para que os munícipes tenham acesso às referidas habitações. Encontra-se assim redigida:

         “Art. 1º - O artigo 186 da Lei Orgânica do Município passa a vigorar acrescido, do parágrafo 5º, com a seguinte redação:

         ‘Art. 186 – (...)

         § 5º - Às famílias que tenham mulher como seu sustentáculo é garantido um mínimo de 30% (trinta por cento) das vagas advindas de projetos ou programas habitacionais implementados no Município.

         Art. 2º - Esta Emenda à Lei Orgânica do Município entra em vigor na data de sua publicação.”

Desse modo, interfere indisfarçavelmente no modo como será realizado um programa de governo, tangenciando, portanto, a esfera reservada à gestão administrativa. Isso permite o reconhecimento da sua inconstitucionalidade com fundamento nos artigos 5º, 47, II e XIV e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

Quando a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes, pois há incursão, pelo Legislativo, na denominada “reserva de administração”.

Criar determinado programa governamental, determinar o modo como ele será realizado ou mesmo impor providências singelas inseridas no âmbito da atividade administrativa é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Confira-se, a propósito, a célebre doutrina de Hely Lopes Meirelles, (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Observem-se, ademais, os inúmeros precedentes do Tribunal de Justiça nesse tema, reconhecendo a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, especialmente no que se refere à realização de programas de governo, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Nesse mesmo sentido o entendimento do Col. STF, colhido em julgados que, mutatis mutandis, aplicam-se à hipótese em exame:

“(...)

O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. (...) Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais.” (RE 427.574-ED, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 13-12-2011, Segunda Turma, DJE de 13-2-2012.)

(...)”

Por outro lado, a lei local impugnada ofende os arts. 111 e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

O art. 144 da Constituição Estadual, que determina a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010). Daí decorre a possibilidade de contraste de lei ou ato normativo local com o art. 144 da Constituição Estadual por sua remissão à Constituição Federal e a seu art. 5º “caput” e seu parágrafo I.

A lei local não é compatível com o princípio da razoabilidade, inscrito no art. 111 da Constituição Estadual, e que exige dos atos normativos padrões como justiça, bom senso, racionalidade, logicidade, coerência, proporcionalidade, e isonomia, interditando medidas arbitrárias e destituídas de interesse público e pautando a igualdade na lei, consistente na proibição de normas discriminatórias desarrazoadas, como reflexo da cláusula do substantive due process of law.

A Constituição de 1988 consagra o devido processo legal nos aspectos substantivo e processual nos incisos LIV e LV do art. 5º, respectivamente. Em sua evolução histórica, o princípio do due process of law dilatou sua compreensão processual ou adjetiva (garantia de um procedimento judicial justo, com direito de defesa) para, a latere, uma conceituação substantiva ou material no direito norte-americano, como limitação do mérito das ações estatais, exigente da elaboração normativa com justiça, reasonableness (razoabilidade) e racionality (racionalidade), devendo ostentar real e substancial nexo com o objetivo que se quer atingir. No direito germânico, o princípio da proporcionalidade (proibição do excesso) impõe a avaliação da compatibilidade entre meios e fins, de modo a evitar restrições desnecessárias ou abusivas contra os direitos fundamentais. No fundo, entrosam-se tais conceitos com a dimensão da igualdade na lei (proibição de normas discriminatórias desarrazoadas) e perante a lei (vedação da execução da norma com tratamento discriminatório desarrazoado).

Por força desse princípio é necessário que a norma passe pelo denominado “teste de razoabilidade”, de maneira que preencha os seguintes elementos: adequação (aptidão a produção do resultado desejado), necessidade (infungibilidade por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcionalidade em sentido estrito (relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto).

Ora, não há na lei enfocada qualquer elemento razoável para se arquitetar a discriminação nela contida. Ao Município compete, a disciplina dos programas habitacionais. Mas, o manejo de sua competência normativa não admite a inscrição de discriminações gratuitas e sem respaldo nos valores gizados na ordem jurídica constitucional. Como se sabe, as diferenciações devem ter justificativa racional que as sustente e suporte na Constituição.

A proteção à família demanda razoabilidade, não se podendo admitir proteção maior “às famílias que tenha mulher como seu sustentáculo”, porque tal providência fere o princípio da isonomia entre homens e mulheres que sejam o arrimo da família.

A proteção demanda a existência de relação entre o fator ou elemento discriminante, o discrímen e a finalidade da discriminação, ou seja, impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo(Celso Antonio Bandeira de Mello. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 49).

A diferenciação feita pelo legislador só será possível quando, objetivamente, constatar-se um fator de discrímen que dê razoabilidade à diferenciação de tratamento contida na lei, pois a igualdade pressupõe um juízo de valor e um critério justo de valoração, proibindo o arbítrio, que ocorrerá “quando a disciplina legal não se basear num: (i) fundamento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável” (J. J. Gomes Canotilho. Direito constitucional e teoria da constituição, Coimbra: Almedina, 3ª ed., 1998, pp. 400-401).

O estabelecimento de garantia de “um mínimo de 30% das vagas advindas de projetos ou programas habitacionais implementadas pelo Município” “às famílias que tenham mulher como seu sustentáculo” é ato que não possui razoabilidade, porque não se detecta objetivamente razão alguma para aquelas famílias que possuam o homem como “seu sustentáculo”.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Emenda nº 048 à Lei Orgânica do Município de São José do Rio Preto, caso atendido o pedido de regularização da representação processual.

São Paulo, 18 de dezembro de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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