Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0184381-95.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Braúna

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Braúna

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 1.853, de 13 de setembro de 2013, de Braúna, fruto de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a isenção do pagamento da contribuição recolhida em favor do Fundo de Amparo ao Transporte de Trabalhadores e Estudantes do Município de Braúna – FATTEMB e dá outras providências.

2)      Preliminar. Irregularidade na representação processual. O Chefe do Executivo, detentor de legitimidade ativa “ad causam” e de capacidade postulatória para o ajuizamento de ação direta, não subscreveu a petição inicial nem outorgou o instrumento procuratório com poderes específicos.

3)      Mérito. Diploma resultante de iniciativa parlamentar que disciplina programa de governo. Invasão da esfera da gestão administrativa. Contrariedade aos artigos 5º, 47, II e XIV e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

4)      Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Vargem Grande Paulista, tendo como alvo a Lei Municipal nº 1.853, de 13 de setembro de 2013, de Braúna, fruto de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a isenção do pagamento da contribuição recolhida em favor do Fundo de Amparo ao Transporte de Trabalhadores e Estudantes do Município de Braúna – FATTEMB e dá outras providências.

Sustenta o requerente a contrariedade aos artigos 5º, 25, 176, II e 144 da Constituição do Estado, alegando, em suma, que: (a) houve violação ao princípio da separação de poderes; (b) não há indicação específica das receitas necessárias para fazer frente ao benefício fiscal concedido pela lei impugnada.

Foi deferida liminar para suspender a eficácia do ato normativo impugnado (fls. 56/60).

Citado, o Procurador Geral do Estado declinou da possibilidade de oferecer defesa relativamente ao ato normativo (fls. 69 e 77/78).

A Presidência da Câmara Municipal prestou informações (fls. 71/74).

É o relato do essencial.

 

PRELIMINARMENTE

A petição inicial é subscrita apenas por advogado (fl. 20), com mandato outorgado pelo Município de Braúna (fl. 21).

Ocorre que a legitimidade ativa, para fins de ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade, assim como a capacidade postulatória, são do Prefeito, e não do Município (art. 90, II da Constituição do Estado de São Paulo).

Nesse particular, já decidiu o decidido pelo Supremo Tribunal Federal:

“(...)

O Governador de Estado é detentor de capacidade postulatória intuitu personae para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie (ADI(AgRg)1.797-PE, DJ de 23.2.01; ADI (AgRg) 2.130-SC, Celso de Mello, j. de 3.10.01, Informativo 244; ADI (EMBS.) 1.105-DF, Maurício Corrêa, j. de 23.8.01; ADI 1814-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 13-11-2001, DJ 12-12-2001).

(...)”

Consoante explica a doutrina, “os legitimados para a ação direta referidos nos itens I a VII do art. 103 da CF dispõem de capacidade postulatória plena, podendo atuar no âmbito da ação direta sem o concurso de advogado” (Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle concentrado de constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2007, 2. ed., p. 246).

Este Colendo Órgão Especial já sufragou este entendimento, conforme se verifica pela seguinte ementa:

“(...)

Ação direta objetivando a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar Municipal n. 2.220, de 20 de outubro de 2011. O chefe do Executivo, detentor de legitimidade ativa ‘ad causam’ e de capacidade postulatória para o ajuizamento de ação direta, não subscreveu a petição inicial nem outorgou o instrumento procuratório. Irregularidade da representação. Ocorrência. Precedentes deste Colendo Órgão Especial. Julga-se extinta a ADIN sem resolução do mérito com fundamento no artigo 267, IV do Código de Processo Civil, ficando revogada a liminar concedida anteriormente (ADIN nº 0030396-43.2012.8.26.000, Rel. Des. Guerrieri Resende, j. 17 de outubro de 2012)

(...)”

No caso dos autos, figurou no polo ativo o Prefeito Municipal, porém a inicial foi assinada por procurador, com poderes outorgados pelo Município.

Assim sendo, requer-se a intimação do autor para a regularização de sua representação processual ou ratificação da petição inicial, no prazo legal, sob pena de extinção do feito sem resolução do mérito.

MÉRITO

A Lei Municipal nº 1.853, de 13 de setembro de 2013, de Braúna, fruto de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre a isenção do pagamento da contribuição recolhida em favor do Fundo de Amparo ao Transporte de Trabalhadores e Estudantes do Município de Braúna – FATTEMB e dá outras providências, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. Os trabalhadores e estudantes que utilizam o transporte social do Município de Braúna ficam isentos do pagamento da Contribuição recolhida em favor do Fundo de Amparo ao Transporte de Trabalhadores e Estudantes do Município de Braúna – FATTEMB.

Art. 2º. As despesas com a execução da presente lei correrão pelas verbas próprias consignadas no orçamento em vigor, autorizada eventual alteração para adequação desta finalidade o PPA e a LDO.

Art. 3º. Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogando-se especificamente a disposição prevista no artigo 2º, VIII, da Lei Municipal nº 1321/05 e as disposições em contrário.

(...)”

(...)”

Pois bem.

Verifica-se, de plano, que a lei impugnada não dispõe sobre matéria tributária, mas, sim, sobre a isenção de determinado grupo de pessoas (trabalhadores e estudantes) relativamente ao recolhimento de taxa pelo uso de serviço público de transporte, cuja receita seria destinada ao denominado “Fundo de Amparo ao Transporte de Trabalhadores e Estudantes do Município de Braúna – FATTEMB”.

Embora não se trate de caso em que haja reserva de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, o que afasta a alegação de contrariedade ao art. 24, § 2º, da Constituição Estadual, não há dúvida de que o ato normativo impugnado interfere, indisfarçavelmente, no modo como será realizado um programa de governo – fornecimento de transporte coletivo aos munícipes -, tangenciando, portanto, a esfera reservada à gestão administrativa.

Isso permite o reconhecimento da sua inconstitucionalidade com fundamento nos artigos 5º, 47, II e XIV e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

Quando a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes, pois há incursão, pelo Legislativo, na denominada “reserva de administração”.

Criar determinado programa governamental, determinar o modo como ele será realizado ou mesmo impor providências singelas inseridas no âmbito da atividade administrativa é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Confira-se, a propósito, a célebre doutrina de Hely Lopes Meirelles, (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Observem-se, ademais, os inúmeros precedentes do Tribunal de Justiça nesse tema, reconhecendo a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, especialmente no que se refere à realização de programas de governo, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Nesse mesmo sentido o entendimento do Col. STF, colhido em julgados que, mutatis mutandis, aplicam-se à hipótese em exame:

“(...)

“O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. (...) Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais.” (RE 427.574-ED, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 13-12-2011, Segunda Turma, DJE de 13-2-2012.)

(...)”

Não é o caso de adotar-se como fundamento para a declaração de inconstitucionalidade a ausência de indicação específica de receitas, pois, como já decidiu o STF, a inadequação orçamentária não é parâmetro para a declaração de inconstitucionalidade da lei, mas sim para eventual postergação, quanto a seu cumprimento, para exercício financeiro subsequente.

Confira-se:

“(...)

A ausência de dotação orçamentária prévia em legislação específica não autoriza a declaração de inconstitucionalidade da lei, impedindo tão-somente a sua aplicação naquele exercício financeiro. 8. Ação direta não conhecida pelo argumento da violação do art. 169, § 1º, da Carta Magna. Precedentes : ADI 1585-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, unânime, DJ 3.4.98; ADI 2339-SC, Rel. Min. Ilmar Galvão, unânime, DJ 1.6.2001; ADI 2343-SC, Rel. Min. Nelson Jobim, maioria, DJ 13.6.2003. 9. Ação direta de inconstitucionalidade parcialmente conhecida e, na parte conhecida, julgada improcedente (RTJ 202/569).

(...)”

Diante do exposto, superada a preliminar, e considerando que seja regularizada a representação processual do autor, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 1853, de 13 de setembro de 2013, de Braúna.

São Paulo, 18 de dezembro de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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