Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0185378-78.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Guarulhos

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Guarulhos

 

 

Ementa:

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 7º, III, da Lei nº 7.138, de 20 de junho de 2013, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que destina ao Fundo Municipal de Segurança Pública os recursos proveniente das multas oriundas das infrações ao Código Brasileiro de Trânsito, aplicadas pelos Guardas Civis Municipais.

2)      A organização, funcionamento, estruturação dos órgãos e serviços administrativos é matéria da reserva da Administração e da iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo, sendo inconstitucional lei de iniciativa parlamentar, maculada ainda pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual). Violação do princípio da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado).

3)      Usurpação da competência legislativa privativa da União (art. 22, XI, da CF), com violação do princípio federativo (CE, art. 1º). Não é o Município competente para disciplinar destinação dos recursos provenientes das multas de trânsito.

4)      Procedência do pedido.

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo o art. 7º, III, da Lei nº 7.138, de 20 de junho de 2013, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que destina ao Fundo Municipal de Segurança Pública os recursos proveniente das multas oriundas das infrações ao Código Brasileiro de Trânsito, aplicadas pelos Guardas Civis Municipais.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por conter vício de iniciativa, violar prerrogativa de auto-organização do Poder Executivo, promover aumento de despesa, por legislar sobre matéria da competência privativa da União, violar o princípio da separação dos poderes, da proporcionalidade e da razoabilidade. Daí, a afirmação de ofensa ao disposto nos arts. 5º, 24, § 2º, 1 e 2,  25, 47, II e XIV, 111, 144, 167, 174, XVII e 176, da Constituição Estadual.

Foi deferido o pedido de liminar para suspender, com eficácia ex nunc, a vigência do ato normativo impugnado (fls. 108/109).

Citado regularmente (fl. 118), o Senhor Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 120/12269).

Notificado (fl. 115), o Presidente da Câmara Municipal prestou informações, defendendo a validade do ato normativo impugnado, (fls. 125/135).

Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

Procede o pedido.

O art. 7º, III, da Lei nº 7.138, de 20 de junho de 2013, do Município de Guarulhos, de iniciativa parlamentar, que Cria o Fundo Municipal de Segurança Pública no âmbito do Município e dá outras providências, promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal, após escoamento do prazo para deliberação do executivo, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 7º Os recursos do Fundo obrigatoriamente serão:

(...)

III - recurso proveniente das multas oriundas das infrações ao Código de Trânsito Brasileiro aplicadas pelos Guardas Civis Municipais, sendo que a destinação dos referidos valores deverão obrigatoriamente seguir as regras do Código de Trânsito Brasileiro;

(...)”

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, e no art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Embora a inconstitucionalidade atinja toda a Lei Municipal, não há como reconhecê-la, haja vista a limitação imposta pelo pedido.

A inconstitucionalidade não reside na violação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade que devem nortear a Administração Pública e a atividade legislativa e tem assento no art. 111 da Constituição do Estado, aplicável aos municípios por força do art. 144 da mesma Carta.

Há na verdade inconstitucionalidade formal, decorrente do vício de iniciativa, na violação da reserva da administração e do princípio federativo.

A matéria disciplinada pela Lei encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja direção superior cabe ao Prefeito Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.

A destinação dos recursos provenientes das multas de trânsito ao Fundo Municipal de Segurança Pública criado por iniciativa parlamentar, é atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e inserida na esfera do poder discricionário da administração.

Não se trata, evidentemente, de atividade sujeita a disciplina legislativa. O poder Legislativo não pode através de lei ocupar-se da administração para gerir a aplicação dos recursos públicos, sob pena de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder Executivo.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre, no caso em exame, em função da vinculação de recursos público obtidos com as multas oriundas das infrações de trânsito, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade da destinação dos recursos públicos. Trata-se de atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

A matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da administração, que reúne as competências próprias de administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144), por serem privativas do Chefe do Poder Executivo.

Ainda que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder Executivo, quando ele mesmo não pudesse discipliná-la por decreto nos termos do art. 47, XIX da Constituição Estadual.

Assim, a Lei, ao determinar providência administrativa, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.

Em caso semelhante esse C. Órgão Especial decidiu que:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei municipal n° 11.229. Diploma que dispõe sobre destinação de 100% dos valores arrecadados com aplicação de multas de trânsito para a TRANSERP e para o 9º Agrupamento de incêndio (Bombeiros). Vicio de iniciativa. Lei promulgada pela Câmara após veto do Prefeito. Inconstitucionalidade por violação ao princípio da separação, independência e harmonia entre os Poderes (arts. 5o e 144 da CE). Competência privativa do chefe do Executivo para a iniciativa de lei sobre organização e funcionamento da Administração, inclusive as que importem em aumento de despesa. Ação procedente.” (ADIN nº 158.599-0/0-00,Rel. Des. Passos de Freitas, julgado em 04 de junho de 2008)

Importante ainda consignar que a matéria objeto do dispositivo legal impugnado está relacionada à destinação dos recursos advindos das multas de trânsito.

As regras de trânsito no âmbito municipal a este respeito, atendidas as regras gerais do Código de Trânsito Brasileiro, encontram-se na gestão administrativa da Cidade, privativa do Poder Executivo, a quem cabe decidir a forma pela qual serão aplicados e geridos as receitas provenientes das multas de trânsito.

Nos termos do art. 21 do Código de Trânsito Brasileiro, compete aos órgãos e entidades executivos rodoviários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição atividades de fiscalização, planejamento, sinalização, engenharia de tráfego, autuação, arrecadação das multas, promoção de programas de educação e segurança etc.

Evidente que se trata de atribuição conferida a órgão do Poder Executivo, pela própria dicção do termo utilizado “órgão executivo de trânsito”, portanto, inviável sua regulamentação por iniciativa do Poder Legislativo.

Os problemas decorrentes do trânsito nas cidades exigem estudo e planejamento para a adequada solução dos transtornos que podem provocar aos munícipes, atividades relacionadas à gestão administrativa.

Por este motivo, cabe essencialmente ao Poder Executivo, e não ao legislador, deliberar a respeito da destinação e forma pela qual serão empregadas as receitas provenientes das multas decorrentes das infrações de trânsito.

De outro lado, o dispositivo legal impugnado viola o princípio federativo que se manifesta na repartição constitucional de competências (arts. 1º e 144, da Constituição Paulista).

O esquema de repartição de competências entre os entes federados – expressão do princípio federativo – conferiu à União, sem espaço para os Estados e aos Municípios, a competência privativa para legislar sobre trânsito (art. 21, XI Constituição Federal).

O estado de probabilidade (prevenção) ou de incerteza (precaução) de riscos, perigos ou danos decorrentes do trânsito é unitariamente concebível e estimável para qualquer Estado ou Município da Federação, motivo que inspira a uniformidade e a centralidade normativa, pois os efeitos serão os mesmos em bens e pessoas situados no território nacional.

Assim, sobre a matéria, a União no uso de sua competência privativa de legislar (CF, art. 22, XI), editou a Lei nº 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), onde estabelece que o trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito, dando prioridade em suas ações à defesa da vida, nela incluída a preservação da saúde e do meio-ambiente. Para tal propósito, necessária uma disciplina normativa uniforme para todo território nacional e aplicável a todas as coisas e pessoas físicas ou jurídicas.

Por este motivo a Lei nº 9.503/97, além de estabelecer regras gerais para todo o país, mesmo porque o trânsito não é matéria de predominância local, determinou no art. 320 que A receita arrecadada com a cobrança das multas de trânsito será aplicada, exclusivamente, em sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação de trânsito.

Desta forma, a União com o escopo de priorizar as ações dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito à defesa da vida, nela incluída a preservação da saúde e do meio-ambiente, vinculou a aplicação das receitas advindas das multas de trânsito a atividades preventivas relacionadas a sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação de trânsito.

Nem se alegue a existência de interesse local ou autonomia municipal para simples disciplina da destinação dos recursos advindos das multas de trânsito. A questão, como exposta, demonstra a inocorrência da predominância – chave-mestra para delimitação da autonomia local – na medida em que não se cinge às peculiaridades de cada comuna o desenvolvimento de medidas preventivas no trânsito relacionadas à sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação.

Se a União no exercício de sua competência privativa para legislar sobre trânsito disciplinou a destinação dos recursos obtidos com as multas de trânsito, não resta qualquer campo para a atividade legislativa complementar estadual ou municipal sobre a matéria.

Não pode o legislador municipal, contudo, a pretexto de legislar concorrentemente ou suplementar a legislação federal, invadir a competência legislativa deste ente federativo superior (RE 313.060, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 29-11-2005, Segunda Turma, DJ de 24-2-2006).

Ainda que assim não fosse, o assunto, em termos acadêmicos, foi bem examinado por Fernanda Menezes Dias de Almeida assentando que a colisão de competências resolve-se pela prevalência das “determinações emanadas do titular da competência legislativa privativa” (Competências na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 2ª ed., p. 159).

A autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias. Trata-se de um dos pontos caracterizadores e asseguradores da existência e de harmonia do Estado Federal.

A base do conceito do Estado Federal reside exatamente na repartição de poderes autônomos, que, na concepção tridimensional do Estado Federal Brasileiro, se dá entre a União, os Estado e os Municípios. É através desta distribuição de competências que a Constituição Federal garante o princípio federativo. O respeito à autonomia dos entes federativos é imprescindível para a manutenção do Estado Federal.

Dessa forma, no conflito normativo aqui analisado, conclui-se que o art. 7º, III, da Lei nº 7.138, de 20 de junho de 2013, do Município de Guarulhos, violou o princípio da repartição constitucional de competências, que é a manifestação mais contundente do princípio federativo, operando, por consequência, desrespeito a princípios constitucionais estabelecidos.

Essa é a razão pela qual restou configurada também, no caso, a ofensa ao disposto nos arts. 1º, 5º e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.

De outro lado, e não menos importante, o dispositivo legal impugnado colide frontalmente com o art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo.

A norma combatida não indicou de forma adequada os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto promove alteração na destinação de verbas públicas sem precisar os recursos necessários para a respectiva compensação.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade do art. 7º, III, da Lei nº 7.138, de 20 de junho de 2013, do Município de Guarulhos.  

São Paulo, 12 de dezembro de 2013.

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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