Parecer
Processo nº. 0188372-79.2013.8.26.0000
Requerente: Prefeito Municipal de Barretos
Ementa: 1) Lei Orgânica do Município. Necessidade de autorização da Câmara Municipal para elaboração de convênios com entidades públicas e particulares e aplicar e relevar as multas previstas na legislação e nos contratos ou convênios. 2) Violação da regra da separação de poderes (art. 5º, art. 47 II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista). Atos típicos de gestão administrativa, que envolvem o planejamento, a direção, a organização e a execução de medidas de governo. 3) Criação de mecanismo de controle externo não previsto na sistemática constitucional. Violação da simetria que deve existir na matéria, com relação aos modelos constitucionais de controle da Administração. (art. 33, 144 e 150 da Constituição do Estado). 4) Inconstitucionalidade reconhecida.
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Barretos, tendo por objeto, inicialmente, os incisos III, IV, VII, VIII, IX, X, XI, XIII do art. 17 e o art. 73, incs. XIII e XX da Lei Orgânica daquele Município.
Posteriormente, houve desistência homologada com relação aos incisos III, VII, X e XI, do art. 17 (fls. 147/148 e 156, respectivamente).
O pedido de liminar foi parcialmente deferido
(fls. 138/140).
Citado, o Senhor Procurador-Geral do
Estado declinou da defesa do ato normativo (fls. 195/196).
O Presidente da Câmara Municipal prestou informações em defesa da norma impugnada (fls. 154/176), arguindo preliminar de “irregularidade na representação”.
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
Primeiramente, quanto à preliminar suscitada, entendemos que não procede a reclamação trazida a lume.
Ocorre que a legitimidade ativa pertence ao Prefeito do Município (art. 90, II, Constituição Estadual), bem como a capacidade postulatória, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal:
“O Governador do Estado de Pernambuco ajuíza ação direta de inconstitucionalidade, na qual alega que a decisão 123/98 do Tribunal de Contas da União, ao exigir autorização prévia e individual do Senado Federal para as operações de crédito entre os Estados e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, teria afrontado as disposições dos artigos 1º e 52, incisos V e VII, da Constituição Federal.
2. Entende possuir legitimidade para a ação, em face dos reflexos do ato impugnado sobre o Estado.
3. É a síntese do necessário.
4. Decido.
5. Verifico que a ação, embora aparentemente proposta pelo Chefe do Poder Executivo estadual, está apenas assinada pelo Procurador-Geral do Estado. De plano, resulta claro que o signatário da inicial atuou na estrita condição de representante legal do ente federado (CPC, artigo 12, I), e não do Governador, pessoas que não se confundem.
6. A medida constitucional utilizada revela instituto de natureza excepcional, em que se pede ao Supremo Tribunal Federal que examine a lei ou ato normativo federal ou estadual, em tese, para que se proceda ao controle normativo abstrato do ato impugnado em face da Constituição.
7. Com efeito, cuida ela de processo objetivo sujeito à disciplina processual própria, traçada pela Carta Federal e pela legislação específica - Lei 9.896/99. Inaplicáveis, assim, as regras instrumentais destinadas aos procedimentos de natureza subjetiva.
8. O Governador de Estado é detentor de capacidade postulatória intuitu personae para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie (ADI(AgRg)1.797-PE, DJ de 23.2.01; ADI (AgRg) 2.130-SC, Celso de Mello, j. de 3.10.01, Informativo 244; ADI (EMBS.) 1.105-DF, Maurício Corrêa, j. de 23.8.01).
9. Por essa razão, inclusive, reconhece-se à referida autoridade, independentemente de sua formação, aptidão processual plena ordinariamente destinada apenas aos advogados (ADIMC 127-AL, Celso de Mello, DJ 04.12.92), constituindo-se verdadeira hipótese excepcional de jus postulandi.
10. No caso concreto, em que pese a invocação do nome do Governador como sendo autor da ação (fl.2), a alegada representação pelo signatário não restou demonstrada. Indiscutível, é que a medida foi efetivamente ajuizada pelo Estado, na pessoa de seu Procurador-Geral, que nesta condição assinou a peça inicial.
11. Ante essas circunstâncias, com fundamento no artigo 21, § 1º do RISTF, bem como nos artigos 3º, parágrafo único e 4º da Lei 9.868/99, não conheço da ação” (STF, ADI 1814-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 13-11-2001, DJ 12-12-2001, p. 40).
Consoante explica a doutrina, “os legitimados para a ação direta referidos nos itens I a VII do art. 103 da CF dispõem de capacidade postulatória plena, podendo atuar no âmbito da ação direta sem o concurso de advogado” (Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle concentrado de constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2007, 2ª ed., p. 246).
E, no caso, o Prefeito outorgou procuração aos subscritores da inicial “com poderes específicos para ajuizar ação direta de inconstitucionalidade”, afastando qualquer defeito de representação que pudesse ser aventado.
Assim, aguarda-se o desacolhimento da preliminar arguida.
No mérito, anota-se, de antemão, que os dispositivos que merecem
ser afastados por inconstitucionalidade, da Lei Orgânica de Barretos, têm a seguinte redação:
“Art. 17 – Cabe à Câmara Municipal, com a sanção do Prefeito, legislar sobre as matérias de competência do Município, especialmente no que se refere ao seguinte:
(...)
IV – autorizar a celebração de convênios, termos aditivos, acordos ou qualquer instrumento pelo município;
(...)
VIII – concessão de auxílios e subvenções;
(...)
Art. 73 – Compete privativamente ao Prefeito:
XIII – celebrar convênios com entidades públicas ou privadas para a realização de objetivos de interesse do Município, mediante prévia autorização legislativa;
XX – aplicar as multas previstas na legislação e nos contratos ou convênios, bem como relevá-las, quando for o caso, mediante prévia autorização legislativa.”
A
desistência parcial da ação ofende o art. 5º da Lei n. 9.868/99 e, portanto,
não surte efeito, por tratar de matéria de ordem pública, devendo ser reputada
inexistente, motivo pelo qual analisam-se os demais dispositivos.
Quanto
aos incs. III, XI, X, XI, XII e XVIII do art. 17 da LOM, tem-se que são
compatíveis com os incisos II, IV e V do art. 19 da Constituição Estadual,
constitucionais, portanto.
No
que tange ao inciso XI do referido art. 17, sua constitucionalidade é atestada
pela congruência que guarda com o art. 47, XVII da Constituição Estadual e com
o art. 175 e seu parágrafo único da Constituição Federal, aplicável ao
Município por força do art. 144 daquele primeiro texto constitucional.
Assim
posta a questão, a Lei objurgada, com a redação dos dispositivos impugnados, impôs
a necessidade de autorização legislativa para o Chefe do Executivo Municipal
para celebrar convênios com entidades públicas e particulares e para aplicar as
multas previstas na legislação e nos contratos e relevá-las quando for o caso.
Entretanto,
tais dispositivos são verticalmente incompatíveis com nossa ordem
constitucional, face à flagrante violação ao princípio da separação de poderes
(art. 5º c.c. o art.144 da constituição Paulista).
É
ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo
cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de
planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder
Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função
de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e
abstração.
O
legislador municipal, na hipótese analisada, acolheu iniciativa parlamentar,
limitando o exercício, por parte do Chefe do Executivo, da regular
administração do Município.
Referido
diploma, na prática, invadiu a esfera da
gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a
execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de
administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa:
a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa,
convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos,
individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos
segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e
independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao
governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com
usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir
prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou
retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao
princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o
art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p.708 e 712).
Violação da simetria com
relação ao sistema de controle externo.
Também
por outro fundamento se chegará à conclusão de que o dispositivo impugnado é
inconstitucional.
Tanto
a Constituição Federal, como a Estadual, já estabelecem formas de controle
interno e externo, cuja essência deve ser seguida pelo legislador Municipal.
Recorde-se,
a propósito, o art. 31, §1º da CR/88, que prevê que o controle externo da
Câmara Municipal sobre o Executivo será “exercido
com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos
Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver”.
Por
outro lado, o art. 33 da Constituição Paulista prevê que o controle externo
seja exercido pela Assembléia Legislativa, com o auxílio do Tribunal de Contas,
com várias atribuições contidas em seus diversos incisos, que, em linhas
gerais, replicam as atribuições do Tribunal de Contas da União, cf. art. 71 da
CR/88.
Por
seu turno, o art.150 da Carta Paulista reitera a existência de sistemas de
controle interno,
Deste
modo, dentro das sistemáticas de controle interno e externo, previstas tanto no
texto da Constituição Federal, como na Estadual, não se identifica, nem de modo
distante, metodologia de fiscalização que se assemelhe àquela adotada pelo
legislador municipal, nos dispositivos impugnados na presente ação: necessidade
de prévio exame e autorização, pelo Legislativo local, de convênios e contratos
administrativos e para aplicar as multas previstas na legislação e nos
contratos e relevá-las quando for o caso.
A
matéria já foi pacificada pelo E. STF, como se infere dos seguintes
precedentes: ADI 2.911, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em
10-8-06, DJ de 2-2-07; ADI 1.905-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento
em 19-11-98, DJ de 5-11-04; ADI 3.046, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento
em 15-4-04, DJ de 28-5-04; entre outros.
Esse
posicionamento tem, do mesmo modo, sido prestigiado por esse E. Tribunal de
Justiça: ADI 12.345-0, rel. Carlos
Ortiz, j. 15.05.91; ADI 096.538-0, rel. Viseu Júnior, j. 12.02.03, v.u.; ADI
123.145-0/9-00, rel. Aloísio de Toledo César, j.19.04.06 – m.v.; ADI
128.082-0/7-00, rel. Denser de Sá, j. 19.07.06, v.u.
Assim,
os dispositivos impugnados na presente ação, nitidamente: (a) violaram o
necessário equilíbrio e harmonia que devem existir entre os Poderes Legislativo
e Executivo; (b) fizeram-no criando sistemática de controle não prevista na
nossa ordem constitucional; (c) desrespeitaram, dessa forma, o “modelo” traçado
pelo constituinte para exercício do sistema de “freios e contrapesos”.
Deste
modo, quando, a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.
Esse
E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais
de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo
na violação da regra da separação de poderes: ADI 149.044-0/8-00, rel. des.
Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j.
05.03.2008; entre outros.
Anote-se que, no E. STF, é pacífico o entendimento no sentido de que a exigência de autorização legislativa para a celebração de convênios, acordos ou contratos, é inconstitucional, por violar a regra da separação de poderes: ADI 342/PR, rel. Min. SYDNEY SANCHES, j. 06/02/2003, DJ 11-04-2003; ADI 1166/DF, rel. Min. ILMAR GALVÃO, j. 05/09/2002, DJ 25-10-2002; ADI 770/MG, rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 01/07/2002, DJ 20-09-2002; ADI 462/BA, rel. Min. MOREIRA ALVES, j. 20/08/1997, DJ 18-02-2000; entre outros.
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da parcial procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade dos incs. IV, VIII, do art. 17 e incs. XIII e XX, do art. 73, da Lei Orgânica do Município de Barretos.
São Paulo, 14 de fevereiro de 2014.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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