Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade
Processo n. 0189321-06.2013.8.26.0000
Requerente: Prefeito do Município de São José do Rio Preto
Requerida: Câmara Municipal de São José do Rio Preto
Ementa: Constitucional. Urbanístico. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 11.271, de 10 de abril de 2013, de iniciativa parlamentar, do Município de São José do Rio Preto. Lei urbanística. Ocupação do solo urbano. Ampliação da taxa de ocupação. Isenção de tributo incidente. Permissão de regularização de obras. Separação de poderes. Inexistência de reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo salvo no tocante a atribuição a órgãos públicos. Geração de despesa pública. Restrição à eficácia da lei no exercício de sua vigência. Causa de pedir aberta. Necessidade de compatibilidade com o Plano Diretor e as normas urbanísticas. Procedência da ação. 1. À lei local, de iniciativa parlamentar, permissiva de tópica ampliação da taxa de ocupação de terrenos em determinada zona de seu território com isenção das taxas incidentes e permissão de regularização das obras, é improcedente a alegação de ofensa ao princípio da separação de poderes em virtude da iniciativa legislativa comum ou concorrente para tema contemplado no art. 30, VIII, CF/88, sendo aplicável o art. 61, § 1º, II, b, CF/88, exclusivamente aos Territórios. 2. Sendo a matéria dependente de lei, é excepcional a iniciativa legislativa reservada, demandando expressa previsão constitucional, que não se presume, não havendo reserva de iniciativa legislativa para lei que cria despesa pública nem para isenção tributária. 3. O contencioso de constitucionalidade de lei municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, CF/88), sendo inadmissível seu contraste com a Lei Orgânica Municipal e o direito infraconstitucional. 4. A conferência de atribuição a órgãos do Poder Executivo, todavia, é assunto da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo (arts. 5º e 24, § 2º, 2, CE/89): inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 1º da Lei n. 11.171/12 que determina ao Poder Executivo a oferta de modelos de planta popular para livre escolha pelos proprietários. 5. Inerência da causa de pedir aberta ao contencioso de constitucionalidade. 6. Lei urbanística obrigatoriamente deve manter compatibilidade com o plano diretor e as demais normas urbanísticas (arts. 180, V e 181, CE/89). 7. Procedência da ação.
Egrégio Tribunal:
1. Trata-se de ação direta de
inconstitucionalidade promovida pelo Prefeito do Município de São José do Rio Preto
impugnando a Lei n. 11.171, de 10 de abril de 2012, do Município de São José do
Rio Preto, de iniciativa parlamentar, que amplia a taxa de ocupação do
potencial construtivo de imóveis situados no Parque Nova Esperança,
determinando a oferta de modelos de plantas populares aos interessados,
isentando as taxas pertinentes e permitindo a regularização de obras,
suscitando contrariedade aos arts. 5º e 25 da Constituição do Estado, aos arts.
2º e 61, § 1º, II, b, da Constituição
Federal, à Lei Orgânica do Município e à Lei de Responsabilidade Fiscal (fls.
02/15).
2. Concedida liminar (fl. 37), a douta
Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa da norma impugnada (fls. 48/49),
e a Câmara Municipal de São José do Rio Preto prestou informações (fls. 51/54)
acostando cópia do processo legislativo respectivo (fls. 55/86).
3. É o relatório.
4. O
contencioso de constitucionalidade de lei municipal tem como exclusivo
parâmetro a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal), sendo
inadmissível seu contraste com a Lei Orgânica Municipal e o direito
infraconstitucional.
5. Embora
as normas constitucionais centrais sejam de observância obrigatória (RT
850/180; RTJ 193/832), é impossível invocar-se como parâmetro o art. 61, § 1º,
II, b, da Constituição da República,
por ser norma específica destinada exclusivamente à organização administrativa,
serviços públicos e matéria tributária e orçamentária dos Territórios. Neste
sentido, pronuncia o Supremo Tribunal Federal que:
“(...) a
reserva de lei de iniciativa do chefe do Executivo, prevista no art. 61, § 1º,
II, b,
da Constituição, somente se aplica aos Territórios federais (...)” (STF, ADI 2.447-MG,
Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 04-03-2009, v.u., DJe 04-12-2009).
6. Não houve ofensa ao princípio da
separação de poderes e, mormente, à reserva de iniciativa legislativa do Chefe
do Poder Executivo na extensão almejada pelo autor.
7. Trata-se de norma urbanística e tributária
benéfica.
8. A orientação do Supremo Tribunal Federal enuncia que matéria
tributária não se inclui dentre as reservadas à iniciativa legislativa do Chefe
do Poder Executivo (STF, ADI 2.464-AP,
Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 11-04-2007, v.u., DJe 24-05-2007; STF,
ADI 3.205-MS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-10-2006, v.u.,
DJ 17-11-2006, p. 41; STF, ADI 3.809-5-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min.
Eros Grau, 14-06-2007, v.u., DJ 14-09-2007, p. 30; STF, RE 371.887-SP, Rel.
Min. Carmén Lúcia, 29-06-2009, DJe 04-08-2009; STF, RE 357.581-SP, Rel.
Min. Eros Grau, 16-12-2008, DJe 03-02-2009), como se pode constatar da transcrição dos seguintes julgados:
“6. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que a competência para iniciar processo legislativo sobre matéria tributária não é privativa do Poder Executivo” (STF, AI 805.338-MG, Rel. Min. Cármen Lúcia, 29-06-2010, DJe 04-08-2010).
“PROCESSO LEGISLATIVO. MATÉRIA TRIBUTÁRIA. INEXISTÊNCIA DE RESERVA DE INICIATIVA. PREVALÊNCIA DA REGRA GERAL DA INICIATIVA CONCORRENTE QUANTO À INSTAURAÇÃO DO PROCESSO DE FORMAÇÃO DAS LEIS. LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA INICIATIVA PARLAMENTAR. RE CONHECIDO E PROVIDO.
- Sob a égide da Constituição republicana de 1988, também o membro do Poder Legislativo dispõe de legitimidade ativa para iniciar o processo de formação das leis, quando se tratar de matéria de índole tributária, não mais subsistindo, em conseqüência, a restrição que prevaleceu ao longo da Carta Federal de 1969. Precedentes” (STF, RE 556.885-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 17-06-2010, DJe 05-08-2010).
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. É CONCORRENTE A COMPETÊNCIA LEGISLATIVA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA. CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ESTADUAL. ACÓRDÃO DIVERGENTE DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. POSSIBILIDADE DE JULGAMENTO PELO RELATOR. RECURSO PROVIDO” (STF, RE 541.273-SP, Rel. Min. Cármen Lúcia, 08-06-2010, DJe 22-06-2010).
9. Não se tratando de lei
orçamentária, e sim de lei tributária, é descabida a arguição de ofensa ao art.
165, III, § 6º, da Constituição Federal. Neste sentido:
“EMBARGOS DE
DECLARAÇÃO OPOSTOS DE DECISÃO MONOCRÁTICA. CONVERSÃO EM AGRAVO REGIMENTAL.
PROCESSO LEGISLATIVO. NORMAS SOBRE DIREITO TRIBUTÁRIO. INICIATIVA CONCORRENTE
ENTRE O CHEFE DO PODER EXECUTIVO E OS MEMBROS DO LEGISLATIVO. POSSIBILIDADE DE
LEI QUE VERSE SOBRE O TEMA REPERCUTIR NO ORÇAMENTO DO ENTE FEDERADO.
IRRELEVÂNCIA PARA FINS DE DEFINIÇÃO DOS LEGITIMADOS PARA A INSTAURAÇÃO DO PROCESSO
LEGISLATIVO. AGRAVO IMPROVIDO. I – A iniciativa de leis que versem sobre
matéria tributária é concorrente entre o chefe do poder executivo e os membros
do legislativo. II – A circunstância de as leis que versem sobre matéria
tributária poderem repercutir no orçamento do ente federado não conduz à
conclusão de que sua iniciativa é privativa do chefe do executivo. III – Agravo
Regimental improvido” (STF, ED-RE 590.697-MG, 2ª Turma, Rel. Min. Ricardo
Lewandowski, 23-08-2011, v.u., DJe 06-09-2011).
10. Norma de ocupação do solo urbano é
matéria própria da autonomia municipal conforme previsto no inciso VIII do art.
30 e no art. 182 da Constituição Federal que realçam o planejamento urbano, encontrando
condicionamentos na Constituição Federal e na Constituição Estadual por força
de seus respectivos arts. 29, caput,
e 144.
11. Comungo da orientação devotada pela
Suprema Corte que, in casu, a
iniciativa legislativa é comum ou concorrente, como se colhe do seguinte
julgado:
“Recurso
extraordinário. Ação direta de inconstitucionalidade contra lei municipal,
dispondo sobre matéria tida como tema contemplado no art. 30, VIII, da
Constituição Federal, da competência dos Municípios. 2. Inexiste norma que
confira a Chefe do Poder Executivo municipal a exclusividade de iniciativa
relativamente à matéria objeto do diploma legal impugnado. Matéria de
competência concorrente. Inexistência de invasão da esfera de atribuições do
Executivo municipal. 3. Recurso extraordinário não conhecido” (STF, RE
218.110-SP, 2ª Turma, Rel. Min. Néri da Silveira, 02-04-2002, v.u., DJ
17-05-2002, p. 73).
12. Ademais, a matéria não se encontra
arrolada no § 2º do art. 24 da Constituição Estadual que reproduz o art. 61, §
1º, II, da Constituição Federal.
13. Nem se alegue que lei que crie despesa
pública ou renuncie a receita pública é da iniciativa reservada do Chefe do
Poder Executivo.
14. Como assinala José Maurício Conti
ao comentar a inexistência de reserva de iniciativa para leis que criam ou
aumentam despesa pública, diferentemente do ordenamento constitucional
anterior, “não havendo mais a expressa disposição no texto constitucional de
que é iniciativa privativa do Presidente da República as leis que disponham
sobre matéria financeira, tal reserva não mais subsiste, não sendo cabível
interpretação ampliativa na hipótese, conforme entende inclusive nossa Suprema
Corte” (Iniciativa legislativa em matéria financeira, in Orçamentos Públicos e Direito Financeiro, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011, pp. 283-307, coordenação José Maurício Conti e Fernando Facury
Scaff).
15. É conveniente assentar que se trata
de verdadeiro sofisma a alegação de que toda e qualquer lei que gere despesa só
possa advir de projeto de autoria do Executivo. O Supremo Tribunal
Federal tem estimado que:
“(...) não
procede a alegação de que qualquer projeto de lei que crie despesa só poderá
ser proposto pelo Chefe do Executivo. As hipóteses de limitação da iniciativa
parlamentar estão previstas, em numerus
clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao
funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a
servidores e órgãos do Poder Executivo (...)” (RT 866/112).
16. A iniciativa legislativa reservada
é matéria de direito excepcional, sendo impositiva sua interpretação restritiva
que não permite dilatação nem presunção.
17.
Regra é a iniciativa
legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva
a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se
presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de
iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando
que:
“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
18. Fixadas
estas premissas, as reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes,
entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser
interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do
processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus
membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:
“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).
“As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).
“A disciplina
jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente
constitucional, pois residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os
princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles
que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do
processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis,
adverte que esta somente se legitima - considerada a qualificação eminentemente
constitucional do poder de agir em sede legislativa - se houver, no texto da
própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em
conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito
positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao
Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa”
(STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u.,
DJ 07-12-2006, p. 36).
19. Postulado
básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes,
constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de
observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma
Carta Estadual.
20. Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito
assentado na ideia de que as funções estatais são divididas e entregues a
órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando
interferências indevidas de um sobre o outro. Todavia, o exercício dessas
atribuições nem sempre é fragmentado e estanque, pois, observa a doutrina que:
“O princípio da separação dos poderes (ou divisão, ou distribuição, conforme a terminologia adotada) significa, portanto, entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho harmônico e independente das respectivas funções, e ainda que cada órgão (poder), ao lado de suas funções principais, correspondentes à sua natureza, em caráter secundário colabora com os demais órgãos de diferente natureza, ou pratica certos atos que, teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de competência” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 585).
21. Como consequência
do princípio da separação dos poderes, a Constituição Estadual, perfilhando as
diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias,
insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas
atribuições típicas da função administrativa, como, por exemplo, dispor sobre a
sua organização e seu funcionamento. Em essência, a separação ou divisão de
poderes:
“consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).
22. Também por
decorrência do citado princípio da separação de poderes, e à vista dos
mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e
disfunções, a Constituição Estadual cuidou de precisar a participação do Poder
Executivo no processo legislativo. Como observa a doutrina:
“É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers).
(...)
A distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
23. Assim, se em
princípio a competência normativa é do domínio do Poder Legislativo, certas
matérias por tangenciarem assuntos de natureza eminentemente administrativa e,
concomitantemente, direitos de terceiros ou o próprio exercício dos poderes
estatais, são reservadas à iniciativa legislativa do Poder Executivo (arts. 24,
§ 2º, 2, 47, II, XIV e XIX, a).
24. Esse desenho
normativo de status constitucional –
aplicável aos Municípios por obra do art. 144 da Constituição Estadual -
permite assentar as seguintes conclusões: (a) a iniciativa legislativa não é
ampla nem livre, só podendo ser exercida por sujeito a quem a Constituição entregou
uma determinada competência; (b) ao Chefe do Poder Executivo a Constituição
prescreve iniciativa legislativa reservada em matérias inerentes à
Administração Pública; (c) há matérias administrativas que, todavia, escapam à
dimensão do princípio da legalidade consistente na reserva de lei em virtude do
estabelecimento de reserva de norma do Poder Executivo. A propósito, frisa Hely
Lopes Meirelles a linha divisória da iniciativa legislativa:
“Leis de
iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores são todas as que
a lei orgânica municipal não reserva, expressa e privativamente à iniciativa do
prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias
previstas nos arts. 61, § 1º, e 165 da CF, as que se inserem no âmbito da competência
municipal” (Direito Municipal Brasileiro,
São Paulo: Malheiros, 1997, 9ª ed., p. 431).
25. A criação de órgãos públicos
do Poder Executivo, adicionada à respectiva conferência de atribuições e competências, é matéria da
reserva de iniciativa legislativa de seu Chefe, como proclama pacífica jurisprudência:
“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.
I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.
II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.
III. - Precedentes do STF.
IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).
“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 6.835/2001 DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. INCLUSÃO DOS NOMES DE PESSOAS FÍSICAS E JURÍDICAS INADIMPLENTES NO SERASA, CADIN E SPC. ATRIBUIÇÕES DA SECRETARIA DE ESTADO DA FAZENDA. INICIATIVA DA MESA DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. A lei 6.835/2001, de iniciativa da Mesa da Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo, cria nova atribuição à Secretaria de Fazenda Estadual, órgão integrante do Poder Executivo daquele Estado. À luz do princípio da simetria, são de iniciativa do Chefe do Poder Executivo estadual as leis que versem sobre a organização administrativa do Estado, podendo a questão referente à organização e funcionamento da Administração Estadual, quando não importar aumento de despesa, ser regulamentada por meio de Decreto do Chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º, II, e e art. 84, VI, a da Constituição federal). Inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa da lei ora atacada” (STF, ADI 2.857-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 30-08-2007, v.u., DJe 30-11-2007).
“III - Independência e Separação dos Poderes: processo legislativo: iniciativa das leis: competência privativa do Chefe do Executivo. Plausibilidade da alegação de inconstitucionalidade de expressões e dispositivos da lei estadual questionada, de iniciativa parlamentar, que dispõem sobre criação, estruturação e atribuições de órgãos específicos da Administração Pública, criação de cargos e funções públicos e estabelecimento de rotinas e procedimentos administrativos, que são de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo (CF, art. 61, § 1º, II, e), bem como dos que invadem competência privativa do Chefe do Executivo (CF, art. 84, II)” (STF, ADI-MC 2.405-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Britto, 06-11-2002, DJ 17-02-2006, p. 54).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DE ORIGEM PARLAMENTAR. ORGANIZAÇÃO DA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO. VÍCIO FORMAL DE INICIATIVA. As regras previstas na Constituição Federal para o processo legislativo aplicam-se aos Estados-membros. Compete exclusivamente ao Governador a iniciativa de leis que cuidem da estruturação e funcionamento de órgãos vinculados ao Poder Executivo (CF, artigos 61, § 1º, II, ‘e’; e 144, § 6º). Precedentes. Inconstitucionalidade da Lei 10890/01, do Estado de São Paulo. Ação julgada procedente” (STF, ADI 2646-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, 20-03-2003, v.u., DJ 23-05-2003, p. 30).
“CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE - LIMINAR. Há o sinal do bom direito e o risco de manter-se com plena eficácia o quadro quando o diploma atacado resultou de iniciativa parlamentar e veio a disciplinar programa de desenvolvimento estadual - submetendo-o à Secretaria de Estado - a dispor sobre a estrutura funcional pertinente. Segundo a Carta da República, incumbe ao chefe do Poder Executivo deflagrar o processo legislativo que envolva órgão da Administração Pública - alínea ‘e’ do § 1º do artigo 61 da Constituição Federal” (STF, ADI-MC 2.799-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, 01-04-2004, v.u., DJ 21-05-2004, p. 31).
“CONSTITUCIONAL. PROCESSO LEGISLATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. CRIAÇÃO DE ÓRGÃOS PÚBLICOS. INICIATIVA LEGISLATIVA RESERVADA. C.F., art. 61, § 1º, II, a, c e e, art. 63, I; Lei 13.145/2001, do Ceará, art. 4º; Lei 13.155/2001, do Ceará, artigos 6º, 8º e 9º, Anexo V, referido no art. 1º. I. - As regras do processo legislativo, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros. Precedentes do STF. II. - Leis relativas à remuneração do servidor público, que digam respeito ao regime jurídico destes, que criam ou extingam órgãos da administração pública, são de iniciativa privativa do Chefe do Executivo. C.F., art. 61, § 1º, II, a, c e e. III. - Matéria de iniciativa reservada: as restrições ao poder de emenda - C.F., art. 63, I - ficam reduzidas à proibição de aumento de despesa e à hipótese de impertinência de emenda ao tema do projeto. Precedentes do STF. IV - ADI julgada procedente” (STF, ADI 2.569-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 19-03-2003, v.u., DJ 02-05-2003, p. 26).
26.
Ora, reproduzindo o art. 61,
§ 1º, II, e, da Constituição Federal,
o art. 24, § 2º, 2, da Constituição Estadual, confere exclusiva iniciativa
legislativa ao Chefe do Poder Executivo para criação de órgãos da Administração
Pública, compreendendo a descrição de suas atribuições e competências.
27.
Esse preceito, que decorre do
art. 5º da Constituição Estadual, foi violado.
28.
Além dele, foi violentada a
própria reserva da Administração Pública, pois, compete ao Poder Executivo o
exercício de sua direção superior, a prática de atos de administração típica e
ordinária e a disciplina de sua organização e de seu funcionamento (art. 47,
II, XIV e XIX, a, da Constituição
Estadual).
29.
A instituição de programas
destinados à execução de políticas públicas e a disciplina da prestação dos
serviços públicos, executados direta ou indiretamente pelo poder público
situa-se no domínio da reserva da Administração, espaço conferido com
exclusividade ao Chefe do Poder Executivo no âmbito de seu poder normativo
imune a interferências do Poder Legislativo, e que se radica na gestão
ordinária dos negócios públicos, como se infere dos arts. 5º e 47, II, XIV e
XIX, a, da Constituição Estadual,
aplicável na esfera municipal por força de seu art. 144 e do art. 29 caput da Constituição Federal.
30. Também como decorrência da
separação de poderes, incorporada no art. 5º, a Constituição Paulista prevê no
art. 47 competência privativa do Chefe do Poder Executivo. O dispositivo
consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas
competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada
reserva de Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva,
imunes à interferência do Poder Legislativo.
31.
A alínea a do inciso XIX desse art. 47 fornece ao Chefe do Poder Executivo a
prerrogativa de dispor mediante decreto sobre “organização e funcionamento da
administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou
extinção de órgãos públicos”, em preceito semelhante ao art. 84, VI, a, da Constituição Federal. Por sua vez,
os incisos II e XIV estabelecem competir-lhe o exercício da direção superior da
administração e a prática dos demais atos de administração, nos limites da
competência do Poder Executivo, enraizando-se no art. 84, II, da Constituição
de 1988.
32.
Esses assuntos são privativos
do poder normativo do Chefe do Poder Executivo, como já se decidiu:
“(...) 2. As restrições impostas ao exercício das competências constitucionais conferidas ao Poder Executivo, entre elas a fixação de políticas públicas, importam em contrariedade ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes (...)” (STF, ADI-MC-REF 4.102-RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cármen Lúcia, 26-05-2010, v.u., DJe 24-09-2010).
“(...) O
princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência
normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência
administrativa do Poder Executivo. (...)” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal
Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).
33. No caso em exame, a disposição do
parágrafo único de seu art. 1º que obriga o Poder Executivo à oferta de modelos
de plantas populares aos interessados é inconstitucional por violação dos arts.
5º, 24, § 2º, 2, e 47, II, XIV e XIX, a,
da Constituição do Estado de São Paulo.
34. De qualquer maneira, a lei é
totalmente inconstitucional.
35.
Não se trata de prestigiar a
alegação de ofensa ao art. 25 da Constituição Estadual. A ausência de recursos
específicos para atendimento de novas despesas apenas compromete a eficácia da
lei no exercício financeiro de sua vigência.
36.
Com efeito, “inclina-se a
jurisprudência no STF no sentido de que a inobservância por determinada lei das
mencionadas restrições constitucionais não induz à sua inconstitucionalidade,
impedindo apenas a sua execução no exercício financeiro respectivo” (STF, ADI
1.585-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-12-1997, v.u., DJ
03-04-1998, p. 01).
37.
Mas, o conceito de causa de
pedir aberta inerente à sindicância objetiva de constitucionalidade de lei ou
ato normativo (RTJ 200/91) torna possível o contraste da norma
contestada com outros preceitos da Constituição Estadual que não foram
suscitados na petição inicial.
38. A Constituição do Estado de São Paulo tem as seguintes disposições que se aplicam ao caso em exame:
“Artigo 180 - No estabelecimento de diretrizes e
normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão:
(...)
V - a observância das normas
urbanísticas, de segurança, higiene e qualidade de vida;
(...)
Artigo 181 - Lei municipal estabelecerá em
conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento,
uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais
limitações administrativas pertinentes.
§ 1º - Os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão considerar a totalidade de seu território municipal”.
39. O Supremo Tribunal Federal
entende que é possível o contencioso de constitucionalidade sem que se
configure contraste entre a lei impugnada e o plano diretor, estimando desafio
direto e frontal à Constituição:
“(...) Plausibilidade da alegação de que a Lei Complementar distrital 710/05, ao permitir a criação de projetos urbanísticos ‘de forma isolada e desvinculada’ do plano diretor, violou diretamente a Constituição Republicana. (...)” (STF, QO-MC-AC 2.383-DF, 2ª Turma, Rel. Min. Ayres Britto, 27-03-2012, v.u., 28-06-2012).
40. É fato – e não prognose – decorrente diretamente do processo legislativo que a lei local de iniciativa parlamentar ofereceu a tópica, casuística e isolada ampliação da taxa de ocupação de imóveis situados em espaço territorial determinado, em disposição desvinculada do planejamento urbano integral, o que vulnera a necessária compatibilidade com o plano diretor, e sua integralidade, e as normas urbanísticas de uso, ocupação e parcelamento do solo urbano.
41. Opino pela procedência da ação pela incompatibilidade da Lei n. 11.171, de 10 de abril de 2012, do Município de São José do Rio Preto, com os arts. 180, V, e 181, da Constituição Estadual.
São Paulo, 29 de novembro de
2013.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
wpmj