Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

 

Processo n. 0196216-80.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Caraguatatuba

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Caraguatatuba

 

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. § 9º do art. 36 da Lei Complementar nº 48 de 10 de setembro de 2013, acrescido pela Emenda Aditiva n. 14/13, de iniciativa parlamentar, do Município de Caraguatatuba. Remuneração de servidor público. Separação de poderes. Pertence exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo a iniciativa legislativa sobre o regime jurídico dos servidores públicos, assunto que abrange vantagem pecuniária pessoal componente da remuneração. Violação dos arts. 5º e 24, § 2º, 1 e 4, da Constituição Estadual. Procedência do pedido.

 

Colendo Órgão Especial:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade do § 9º do art. 36 da Lei Complementar nº 48 de 10 de setembro de 2013, acrescido pela Emenda Aditiva n. 14/13, de iniciativa parlamentar, do Município de Caraguatatuba, por violação aos arts. 5º, 24, § 2º, inc. IV, ns. 1 e 4, 47, incs. II, XI e XIV e 144, da Constituição Estadual, que “trata de aspecto remuneratório dos Procuradores de carreira do Município de Caraguatatuba”.

Foi deferida a liminar (fls. 91/92).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo (fls. 102/104).

O Senhor Presidente da Câmara Municipal deixou transcorrer “in albis” o prazo para informações.

É o relato do essencial.

Procede a ação.

Observa-se, primeiramente, que a Emenda que fez acrescer o § 9º ao art. 36 da Lei Complementar Municipal nº 48 de 10 de setembro de 2013, do Município de Caraguatatuba, é de origem parlamentar, que restou assim redigido:

“Art. 36 (...)

§ 9º. Os honorários advocatícios dos débitos ajuizados serão parcelados em ate 10 prestações mensais e consecutivas de igual valor.”

A matéria de que trata o dispositivo em análise – vencimentos dos servidores procuradores municipais – é daquelas cuja iniciativa cabe ao Prefeito, a teor do que reza o art. 24, § 2º, ns. 1 e 4, da Constituição Estadual.

O problema, entretanto, reside no fato de que seu acréscimo à Lei preexistente foi feita por projeto de origem parlamentar, que a descaracterizou.

Sabe-se que, uma vez apresentado o projeto pelo Chefe do Poder Executivo, está exaurida a sua atuação. Abre-se o caminho, em seguida, para fase constitutiva da lei, que se caracteriza pela discussão e votação públicas da matéria.

Nessa fase se sobressai o poder de emendar.

O poder de emendar é reconhecido pela doutrina tradicional e está reservado aos parlamentares enquanto membros do Poder incumbido de estabelecer o direito novo.

O Supremo Tribunal Federal o considera como prerrogativa dos parlamentares, como se intui do seguinte julgado:

“O exercício do poder de emenda, pelos membros do parlamento, qualifica-se como prerrogativa inerente à função legislativa do Estado - O poder de emendar - que não constitui derivação do poder de iniciar o processo de formação das leis - qualifica-se como prerrogativa deferida aos parlamentares, que se sujeitam, no entanto, quanto ao seu exercício, às restrições impostas, em "numerus clausus", pela Constituição Federal. - A Constituição Federal de 1988, prestigiando o exercício da função parlamentar, afastou muitas das restrições que incidiam, especificamente, no regime constitucional anterior, sobre o poder de emenda reconhecido aos membros do Legislativo. O legislador constituinte, ao assim proceder, certamente pretendeu repudiar a concepção regalista de Estado (RTJ 32/143 - RTJ 33/107 - RTJ 34/6 - RTJ 40/348), que suprimiria, caso prevalecesse, o poder de emenda dos membros do Legislativo. - Revela-se plenamente legítimo, desse modo, o exercício do poder de emenda pelos parlamentares, mesmo quando se tratar de projetos de lei sujeitos à reserva de iniciativa de outros órgãos e Poderes do Estado, incidindo, no entanto, sobre essa prerrogativa parlamentar - que é inerente à atividade legislativa -, as restrições decorrentes do próprio texto constitucional (CF, art. 63, I e II), bem assim aquela fundada na exigência de que as emendas de iniciativa parlamentar sempre guardem relação de pertinência com o objeto da proposição legislativa” (STF, Pleno, ADI nº 973-7/AP – medida cautelar. Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19 dez. 2006, p. 34 –g.n.).

A limitação ao poder de emendar projetos de lei de iniciativa reservada do Poder Executivo existe no sentido de evitar: (a) aumento de despesa não prevista, inicialmente; ou então (b) a desfiguração da proposta inicial, seja pela inclusão de regra que com ela não guarde pertinência temática; seja ainda pela alteração extrema do texto originário, que rende ensejo a regulação praticamente e substancialmente distinta da proposta original.

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça” (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748).

Em que pese a boa intenção que certamente animou a iniciativa parlamentar, o ato normativo impugnado apresenta vício de inconstitucionalidade formal por violar a reserva de iniciativa do Poder Executivo e o princípio da separação de poderes, previstos nos arts. 5º, 24, § 2º, I e IV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 - criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

(...)

4 - servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A inconstitucionalidade manifesta-se pela invasão da esfera da iniciativa legislativa privativa do Poder Executivo que não se confunde com a chamada reserva da administração (art. 47, II e XIV da Constituição Estadual).

O processo legislativo, compreendido o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e da harmonia dos Poderes.

O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República, conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo, difuso ou concentrado, por parte do Poder Judiciário.

A iniciativa, o ato que deflagra o processo legislativo, pode ser geral ou reservada (ou privativa).

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, cuidou, como já dito, de matéria relativa a direitos e garantias dos servidores públicos disciplinando aspectos integrantes de sua remuneração, cuja iniciativa cabe ao Chefe do Executivo.

A propósito, a Constituição Estadual estabelece que cabe exclusivamente ao Governador a iniciativa das leis que disponham sobre fixação da remuneração aos cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como sobre servidores públicos e seu regime jurídico (CE, art. 24, § 2°, 1 e 4).

Tal regramento deve ser observado pelos municípios por força do princípio da simetria previsto no art. 144 da Constituição Paulista.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando matéria relativa ao regime jurídico dos servidores públicos, como ocorre, no caso em exame, em função da previsão de vantagens pecuniárias para os servidores municipais, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

A propósito, convém destacar a seguinte decisão desse Colendo Órgão Especial:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. VICIO DE INICIATIVA. Lei municipal de autoria de membro do Poder  Legislativo que  dispõe sobre a concessão de  auxílio-alimentação  aos servidores. Matéria  inserida na reserva de iniciativa do Chefe do  Executivo.  Separação dos Poderes. Ofensa aos art. 5º, "caput", da CESP, e  a 2° da CF/88. Caracterização de vício de iniciativa. Inconstitucionalidade formal subjetiva. Ação julgada procedente.” (ADI nº 0269127-61.2011.8.26.0000, Rel. Des. Roberto Mac Cracken, j. 21 de março de 2012)

Nessa conformidade, opina-se pela integral procedência da presente ação, com a confirmação da liminar.

                   São Paulo, 17 de fevereiro de 2014.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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