Parecer em Ação Direta de
Inconstitucionalidade
Processo nº 0197386-87.2013.8.26.0000
Requerente:
Prefeito Municipal de São José do Rio Preto
Requerido:
Presidente da Câmara Municipal de São José do Rio Preto
Ementa:
1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 11.382, de 09 de outubro de 2013, do Município de São José do Rio Preto, de iniciativa parlamentar, que “Autoriza o Município a disponibilizar um (a) enfermeiro (a) e equipamento de primeiros socorros no Terminal Rodoviário”.
2) Encontra-se na reserva da Administração e na iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo a instituição de programas, campanhas e serviços administrativos, sendo ainda inconstitucional a lei de iniciativa parlamentar pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual).
3) Violação do princípio da separação de poderes (arts. 5º, 24, § 2º, 2, 47, II, XIV e XIX, 144 e 176, I, da Constituição do Estado). Procedência do pedido.
Colendo Órgão
Especial,
Senhor Desembargador
Relator:
Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade,
tendo como alvo a Lei nº 11.382, de 09 de outubro de 2013, do Município de São
José do Rio Preto, de iniciativa parlamentar, que “Autoriza o Município a disponibilizar um (a) enfermeiro (a) e
equipamento de primeiros socorros no Terminal Rodoviário”.
Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por apresentar vício de iniciativa, criar despesa e impacto financeiro sem a indicação da fonte de recurso e por usurpar a competência do Poder Executivo em evidente afronta ao princípio constitucional de independência e da harmonia dos poderes. Daí, a afirmação de violação dos arts. 41, III; 44, § 1º ; 134, “caput” e 144, II, da Lei Orgânica do Município de São José do Rio Preto; 15 a 17, da Lei n. 101, de 04 de maio de 2000; arts. 5º,”caput”, 74, VI, 144, “caput” e 176, I, da Constituição Estadual.
Foi deferida a liminar, suspendendo a eficácia da Lei n. 11.382, de 09 de outubro de 2013, do Município de São José do Rio Preto (fls. 32/33).
Citado regularmente, o Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 43/45).
Devidamente notificado, o Presidente da Câmara Municipal apresentou informações a fls. 47/51, defendendo a validade do ato normativo impugnado.
Nestas condições vieram os autos para manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.
Procede o pedido.
Inicialmente, oportuno consignar que o parâmetro exclusivo do controle de constitucionalidade pela via abstrata, concentrada e direta de lei ou ato normativo municipal, é a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, CF), razão pela qual se afigura inidôneo o seu contraste com normas da Lei Orgânica Municipal ou mesmo da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Por este motivo, passa-se a análise tão só de eventual contraste dos atos normativos impugnados com da Constituição Estadual.
A Lei nº 11.382, de 09 de outubro de 2013, do Município de
São José do Rio Preto, de iniciativa parlamentar, que “Autoriza o Município a disponibilizar um (a) enfermeiro (a) e
equipamento de primeiros socorros no Terminal Rodoviário”, apresenta a
seguinte redação:
“Art. 1º - Fica autorizado o Município a disponibilizar no Terminal Rodoviário um (a) enfermeiro (a) durante o período de funcionamento, bem como o equipamento de primeiros socorros.
Art. 2º - O (a) enfermeiro (a) deverá atender a população, conforme sua técnica de formação, em casos de emergência.
Art. 3º - O Poder Executivo ficará responsável pelo cumprimento e fiscalização do disposto nos artigos 1º e 2º desta Lei, bem como repasse da implantação do serviço à concessionária que administra o Terminal.
Art. 4º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.
Em que pese à boa intenção do legislador parlamentar, o ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio federativo e o da separação de poderes previstos nos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:
“(...)
Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras
atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior
da administração estadual;
(...)
XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da
competência do Executivo;
(...)
XIX - dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração estadual, quando não
implicar em aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos;
(...)
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa,
administrativa e financeira se auto-organizarão por lei
orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal
e nesta Constituição.”
A matéria disciplinada pela lei
encontra-se no âmbito da atividade administrativa do Município, cuja organização,
funcionamento e direção superior cabe ao Prefeito
Municipal, com auxílio dos Secretários Municipais.
A disponibilização, pelo Município, de enfermeiro(a) e equipamentos de primeiros socorros no Terminal Rodoviário, instituída pelo ato normativo impugnado, é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.
Trata-se de atividade
nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha
política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas
aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo
e inserida na esfera do poder discricionário da Administração.
Não se trata, evidentemente, de
atividade sujeita a disciplina legislativa. Assim, o Poder Legislativo não pode,
através de lei, ocupar-se da administração, sob pena
de se permitir que o legislador administre invadindo área privativa do Poder
Executivo.
Quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando atuação administrativa, como ocorre no caso em exame, em função da “autorização” da disponibilização de um (a) enfermeiro (a) e equipamento de primeiros socorros no Terminal Rodoviário, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.
Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade da criação de serviços em benefício dos seus servidores. Trata-se de atuação administrativa, fundada em escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.
A inconstitucionalidade,
portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na
Constituição Paulista e aplicável aos municípios (arts. 5º, 47, II, XIV e XIX, a e 144).
É
pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe
primordialmente a função de administrar, que se revela
em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades
inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma
primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos
normativos revestidos de generalidade e abstração.
Cumpre
recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo
pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio
constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da
Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.
Sintetiza, ademais, que “todo ato do
Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da
Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo,
por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local
(CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p. 708 e 712).
Deste
modo, quando, a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.
A
matéria tratada na lei encontra-se na órbita da chamada reserva da Administração, que reúne as competências próprias de
administração e gestão, imunes a interferência de outro poder (art. 47, II e IX,
da Constituição Estadual - aplicável na órbita municipal por obra de seu art.
144), pois privativas do Chefe do Poder Executivo.
Ainda
que se imagine que houvesse necessidade de disciplinar por lei alguma matéria
típica de gestão municipal, a iniciativa seria privativa do Chefe do Poder
Executivo, mesmo quando ele não possa discipliná-la por decreto nos termos do
art. 47, XIX, da Constituição Estadual.
Assim,
a lei, ao instituir serviço municipal, de um lado, viola o art. 47, II e XIV, no
estabelecimento de regras que respeitam à direção da administração e à
organização e ao funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada
da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.
Cabe ainda ressaltar que não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.
Em outras palavras, se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.
Celebrar convênios ou criar programas em benefício dos cidadãos – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.
E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.
A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição Paulista.
Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.
A utilização recorrente de leis autorizativas tem objetivos de cunho nitidamente políticos, transmitindo aos cidadãos uma falsa ideia de direito subjetivo e de negligência do Poder Executivo.
De outro lado, e não menos importante, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.
A norma combatida, ao impor ao Município a disponibilização de um(a) enfermeiro(a) e de equipamento de primeiros socorros no Terminal Rodoviário, durante o período de funcionamento, não indicou especificamente os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos, que, no caso, são evidentes, porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cuja instalação e desenvolvimento demandam meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a dotações orçamentárias próprias de determinada secretaria.
Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e no 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.
A
inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa
parlamentar da lei local com os preceitos mencionados da Constituição Estadual.
Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 11.382, de 09 de outubro de 2013, do Município de São José do Rio Preto.
São Paulo, 03 de fevereiro de 2014.
Nilo Spinola Salgado Filho
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
vlcb