Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0198910-22.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Sorocaba

Requeridos: Presidente da Câmara Municipal de Sorocaba

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 7.825, de 23 de junho de 2006, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade da empresa concessionária de energia elétrica no Município de Sorocaba de retirar gratuitamente os postes irregulares no Município de Sorocaba, e dá outras providências”.

2)      Usurpação da competência legislativa privativa da União (arts. 21, XII, b e 22, IV, da Constituição Federal), com violação do princípio federativo (art. 1º da Constituição Estadual). Não é o Estado competente para legislar e disciplinar os serviços e instalações de energia elétrica (arts. 21, XII, b, e 22, IV, da Constituição Federal).

3)      Processo objetivo. Causa de pedir aberta. Possibilidade de reconhecimento da inconstitucionalidade por fundamento não apontado na inicial.

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente:

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Sorocaba, tendo por objeto a Lei nº 7.825, de 23 de junho de 2006, daquele Município, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade da empresa concessionária de energia elétrica no Município de Sorocaba de retirar gratuitamente os postes irregulares no Município de Sorocaba, e dá outras providências.”

Sustenta o autor que a Lei impugnada é inconstitucional por conter vício de iniciativa, por se tratar de norma cuja inciativa é reservada ao Chefe do Poder Executivo, violando o princípio da separação de poderes. Alegou também afronta à lei orgânica e criação de despesas sem indicação da fonte orçamentária que viabilizaria os ônus criados.

Citado regularmente, o Procurador Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo impugnado, afirmando tratar de matéria de interesse exclusivamente local (fls. 184/185).

Devidamente notificado, o Presidente da Câmara Municipal prestou informações às fls. 135/144, defendendo a validade do ato normativo impugnado.

Nestas condições vieram os autos para a manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça.

Procede o pedido.

A Lei nº 7.825, de 23 de junho de 2006, fruto de iniciativa parlamentar, tem a seguinte redação:

“Art. 1º - Fica a empresa concessionária que detenha a concessão de energia elétrica no município de Sorocaba obrigada a retirar gratuitamente os postes irregulares na cidade de Sorocaba.

Parágrafo único – Consideram-se irregulares os postes localizados em frente às garagens, posts fora de alinhamento em vias asfaltadas e postes de madeira que apresentem perigo à população.

Art. 2º - O munícipe terá que oficiar a empresa concessionária do problema com o poste irregular, através de protocolo, a qual terá prazo de 30 (trinta) dias para sanar o problema.

Art. 3º - O não cumprimento desta Lei acarretará multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por dia à empresa concessionária de energia elétrica.

Art. 4º - Será condição para a renovação do contrato de concessão de exploração de energia elétrica no Município, a substituição, pela concessionária, dos postes de madeira por seu sucedânea em cimento no prazo máximo de 01 (um) ano após a assinatura do contrato.

Art. 5º - As despesas com a execução da presente Lei correrão por conta de verba orçamentária própria.

Art. 6º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, surtindo seus efeitos a partir do término do prazo do contrato anual celebrado entre a CPFL e a Prefeitura Municipal de Sorocaba.”

 

O ato normativo acima transcrito viola o princípio federativo que se manifesta na repartição constitucional de competências (arts. 1º e 144 da Constituição Paulista).

Dispor sobre forma de prestação dos serviços públicos de energia elétrica pelas concessionárias é matéria de competência da União, estando sujeito a normatização federal.

O esquema de repartição de competências entre os entes federados – expressão do princípio federativo – conferiu à União, sem espaço para os Estados e aos Municípios, tanto a competência material para a exploração, direta ou mediante autorização, concessão ou permissão dos serviços e instalações de energia elétrica, quanto à competência legislativa revelada duplamente no art. 22, IV, da Constituição Federal, e na expressão “nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de órgão regulador e outros aspectos institucionais”.

O trato da matéria, visualizada numa perspectiva abrangente e múltipla, envolve não só os serviços de energia elétrica, mas suas instalações e conexão com relações e efeitos direta ou indiretamente dela derivados, ou seja, o impacto e a interferência em questões colaterais à execução da atividade, como segurança, meio ambiente, saúde, tranquilidade, privacidade, proteção ao consumidor etc., demandando, por isso mesmo, uma disciplina normativa uniforme para todo território nacional e aplicável a todas as coisas e pessoas físicas ou jurídicas.

A essencialidade, o estado de probabilidade (prevenção) ou de incerteza (precaução) de riscos, perigos ou danos decorrentes dos serviços de distribuição de energia elétrica é unitariamente concebível e estimável para qualquer Estado ou Município da Federação, motivo que inspira a uniformidade e a centralidade normativa (não bastasse a titularidade federal do serviço), pois os efeitos serão os mesmos em bens e pessoas situados no território nacional.

Sobre a matéria, a União, no uso de sua competência privativa de legislar (CF, art. 22, IV), editou a Lei nº 9.427/96, estabelecendo que a ela, por meio do órgão regulador, Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, cabe regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal. Disciplinou ainda o regime das concessões de serviços públicos de energia elétrica.

A Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, a quem a lei conferiu as atribuições de órgão regulador (art. 2º), já disciplinou, ainda que parcialmente, a matéria objeto do ato normativo impugnado, através da Resolução nº 414/2010, que no art. 102, XIII, elencou dentre os serviços cobráveis, realizados mediante solicitação do consumidor, o deslocamento ou remoção de poste. (Redação dada pela REN ANEEL 479, de 03.04.2012).

 Nem se alegue a existência de competência complementar municipal. A questão, como exposta, demonstra o estabelecimento de regras para todo o país relacionados com a prestação dos serviços de distribuição de energia elétrica, posto que em qualquer espaço do território nacional prevalece a identidade de causas e de efeitos. Deste modo, normas que invadem o campo da disciplina dos serviços e instalações de energia, inclusive relativamente a seus reflexos a terceiros, são da órbita de competência normativa federal.

Ainda que assim não fosse, o assunto, em termos acadêmicos, foi bem examinado por Fernanda Menezes Dias de Almeida assentando que a colisão de competências resolve-se pela prevalência das “determinações emanadas do titular da competência legislativa privativa” (Competências na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 2ª ed., p. 159).

A autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias. Trata-se de um dos pontos caracterizadores e asseguradores da existência e de harmonia do Estado Federal.

A base do conceito do Estado Federal reside exatamente na repartição de poderes autônomos, que, na concepção tridimensional do Estado Federal Brasileiro, se dá entre a União, os Estado e os Municípios. É através desta distribuição de competências que a Constituição Federal garante o princípio federativo. O respeito à autonomia dos entes federativos é imprescindível para a manutenção do Estado Federal.

Dessa forma, no conflito normativo aqui analisado, conclui-se que a Lei nº 7.825, de 23 de junho de 2006, de Sorocaba, viola o princípio da repartição constitucional de competências, que é a manifestação mais contundente do princípio federativo, operando, por consequência, desrespeito a princípios constitucionais estabelecidos.

Essa é a razão pela qual restou configurada, no caso, a ofensa ao disposto nos arts. 1º, 5º e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

No entanto, não se configura, no caso, a alegada usurpação de atribuições pelo Poder Legislativo. Isto porque o Município não tem competência legislativa para tratar da matéria em questão. Logo, o Chefe do Poder Executivo Municipal não detém a reserva de iniciativa do processo legislativo, que cabe ao Chefe do Poder Executivo da União, o que afasta qualquer hipótese de violação aos art. 5º, 24, § 2º, 25 e 47, II da Constituição do Estado de São Paulo.

Por outro lado, lícita é a declaração de inconstitucionalidade por fundamento outro não constante da petição inicial, pois a natureza aberta da causa de pedir na ação direta de inconstitucionalidade permite o exame da norma impugnada através de fundamento constitucional não adotado expressamente pelo autor.

A propósito, anota Juliano Taveira Bernardes que no processo objetivo, “Segundo o STF, o âmbito de cognoscibilidade da questão constitucional não se adstringe aos fundamentos constitucionais invocados pelo requerente, pois abarca todas as normas que compõe a Constituição Federal. Daí, a fundamentação dada pelo requerente pode ser desconsiderada e suprida por outra encontrada pela Corte” (Controle abstrato de constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 436).

Assim vem decidindo o Col. Supremo Tribunal Federal:

“(...)

Ementa: constitucional. (...). 'Causa petendi' aberta, que permite examinar a questão por fundamento diverso daquele alegado pelo requerente. (...) (ADI 1749/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, Rel. p. acórdão Min. NELSON JOBIM, j. 25/11/1999, Tribunal Pleno , DJ 15-04-2005, PP-00005, EMENT VOL-02187-01, PP-00094, g.n.).

Confira-se, ainda, nesse mesmo sentido: ADI 3576/RS, Rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 22/11/2006, Tribunal Pleno, DJ 02-02-2007, PP-00071, EMENT VOL-02262-02, PP-00376.

Diante do exposto, o parecer é pela declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 7.825, de 23 de junho de 2006, do Município de Sorocaba.

São Paulo, 18 de fevereiro de 2014.

 

 

 

 

          Nilo Spinola Salgado Filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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