Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº. 0199044-83.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Campinas

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Campinas

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 10 da Lei nº 11.024, de 09 de novembro de 2001, do Município de Campinas, que exige a prévia consulta e a autorização dos proprietários de imóveis num raio de 200 (duzentos) metros a partir da projeção ortogonal do ponto de emissão de radiação, para fins de instalação de sistema transmissões de rádio, televisão, telefonia, telecomunicação em geral e outros sistemas transmissores de radiação eletromagnética não ionizante.

2)      Usurpação da competência legislativa privativa da União (art. 22, IV, da CF), com violação do princípio federativo (CE, art. 1º). Não é o Município competente para disciplina da instalação de estação de rádio-base, torres e equipamentos afins de telefonia celular e de televisão (arts. 21, XI, e 22, IV, Constituição Federal).

3)      A restrição imposta não é adequada nem razoável para os fins a que se destina. Violação aos princípios da autonomia municipal, da razoabilidade (arts. 5º e 111 da Constituição Estadual).

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Campinas, tendo por objeto o art. 10 da Lei nº 11.024, de 09 de novembro de 2001, daquele Município, que exige a consulta e a autorização dos proprietários de imóveis num raio de 200 (duzentos) metros a partir da projeção ortogonal do ponto de emissão de radiação para fins de instalação de sistema transmissões de rádio, de televisão, de telefonia, de telecomunicação em geral e outros sistemas transmissores de radiação eletromagnética não ionizante, bem como em relação à renovação do alvará.

Sustenta o autor que o dispositivo legal impugnado, é inconstitucional por usurpação legislativa da União, que no uso de sua competência privativa de legislar sobre águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão (CF, art. 22, IV), editou a Lei nº 9.472/97, disciplinando a matéria e conferindo a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), atribuição para organizar a exploração dos serviços de telecomunicações. Aduz que há violação do princípio federativo por ingerência legislativa e administrativa nos contratos celebrados com a União na prestação de serviço de telecomunicações. Daí a alegação de violação dos art. 5º, 111 e 144, da Constituição Estadual.

O pedido de medida liminar foi indeferido (fls. 346/347).

Citado regularmente (fl. 356), o Procurador-Geral do Estado declinou de defender o ato normativo impugnado, consignando tratar de interesse exclusivamente local (fls. 352/354).

Notificado (fl. 358), o Presidente da Câmara Municipal de Campinas deixou de manifestar-se nos autos.

É a síntese do que consta dos autos.

Procede o pedido.

O dispositivo legal impugnado tem a seguinte redação:

(...)

Artigo 3º - A instalação de sistemas transmissores decritos na presente lei será executada apenas quando for precedida da consulta com autorização escrita de 60% dos proprietários dos imóveis num raio de 200 (duzentos) metros a partir da projeção ortogonal do ponto de emissão de radiação.

§ 1º - Nos casos em que, no momento da renovação do Alvará de Autorização, houver demanda por escrito de 2/3 (dois terços) dos proprietários legalmente identificados quanto à permanência do equipamento no local, deverá haver a consulta nos moldes do caput deste artigo, quando não realizada anteriormente.

§ 2º - No caso de condomínios a consulta a que se refere o caput deste artigo deverá ser respondida pela assembleia do mesmo em documento registrado.

(...)

 O ato normativo ora impugnado viola o princípio federativo que se manifesta na repartição constitucional de competências, (arts. 1º e 144, da Constituição Paulista).

O esquema de repartição de competências entre os entes federados – expressão do princípio federativo – conferiu à União, sem espaço para os Estados e aos Municípios, tanto a competência material dos serviços de telecomunicações e radiodifusão (art. 21, XI e XII, a), titularizando essa atividade como serviço público federal, quanto à competência legislativa revelada duplamente no art. 22, IV, e na expressão “nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de órgão regulador e outros aspectos institucionais”, constante da segunda parte do inciso XI do art. 21da Constituição Federal.

O trato da matéria, visualizada numa perspectiva abrangente e múltipla, envolve não só as telecomunicações, mas, sua conexão com relações e efeitos direta ou indiretamente dela derivados, ou seja, o impacto e a interferência em questões colaterais à execução da atividade, como segurança, meio ambiente, saúde, tranquilidade, privacidade, proteção ao consumidor etc., demandando, por isso mesmo, uma disciplina normativa uniforme para todo território nacional e aplicável a todas as coisas e pessoas físicas ou jurídicas.

O estado de probabilidade (prevenção) ou de incerteza (precaução) de riscos, perigos ou danos decorrentes dos serviços de telecomunicações é unitariamente concebível e estimável para qualquer Estado ou Município da Federação, motivo que inspira a uniformidade e a centralidade normativa (não bastasse a titularidade federal do serviço), pois, os efeitos serão os mesmos em bens e pessoas situados no território nacional.

Sobre a matéria, a União no uso de sua competência privativa de legislar (CF, art. 22, IV), editou a Lei nº 9.472/97, estabelecendo que a ela, através do órgão regulador, cabe organizar a exploração dos serviços de telecomunicações. Dispôs que a organização inclui, entre outros aspectos, o disciplinamento e a fiscalização da execução, comercialização e uso dos serviços e da implantação e do funcionamento de redes de telecomunicações, bem como da utilização dos recursos de órbita e de espectro de rádio-frequência (art.1º e parágrafo único).

A Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), a quem a lei conferiu as atribuições de órgão regulador (art. 8º), com a competência para  adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, dentre elas a  expedição de normas e padrões a serem cumpridos pelas prestadoras de serviços de telecomunicações quanto aos equipamentos que utilizarem (art. 19, XII), já disciplinou, ainda que parcialmente, a matéria objeto da lei estadual impugnada, através da Resolução nº 303/2002, que aprovou o Regulamento sobre limitação da exposição a campos elétricos, Magnético e eletromagnéticos na faixa de radiofrequências entre 9khz e 300 GHz.

Nem se alegue a existência de interesse local ou autonomia municipal para simples disciplina do uso e ocupação do solo urbano. A questão, como exposta, demonstra a inocorrência da predominância – chave-mestra para delimitação da autonomia local – na medida em que não se cinge às peculiaridades de cada comuna o estabelecimento de posturas edilícias para evitar riscos ou perigos à vida, à saúde, à segurança, decorrentes de instalações de telecomunicações, posto que em qualquer espaço do território nacional prevalece, ao contrário, a identidade de causas e de efeitos. Deste modo, normas que contêm ou indicam padrões ou parâmetros para uso de instalações e de equipamentos dos serviços de telecomunicações, inclusive relativamente a seus reflexos a terceiros, são da órbita de competência normativa federal.

Ainda que assim não fosse, o assunto, em termos acadêmicos, foi bem examinado por Fernanda Menezes Dias de Almeida assentando que a colisão de competências resolve-se pela prevalência das “determinações emanadas do titular da competência legislativa privativa” (Competências na Constituição de 1988, São Paulo: Atlas, 2ª ed., p. 159).

Enfim, e corroborando a tese aqui exposta, decidiu esta colenda Corte Paulista:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Emenda n ° 12, de 12.05.2004, que acrescenta o artigo 163-A à Lei Orgânica Municipal de Estiva Gerbi. Proibição de instalação de antenas ou torres de telefonia celular no perímetro urbano do Município. Inconstitucionalidade reconhecida por ingerência do Parlamento Municipal em assunto de competência legislativa da União. Art. 22, IV, da Constituição Federal e arts. 1º, 111 e 144, da Constituição Estadual. Ação procedente” (TJSP, ADI 114.569-0/2-00, Órgão Especial, Rel. Des. Roberto Stucchi, m.v., 08-11-2006).

“Em reforço ao quanto já expendido, esclareça-se que a ação direta de inconstitucionalidade acima citada, da qual foi relator Desembargador Roberto Stucchi, foi julgada em 08 de novembro de 2 006 e à semelhança da Procuradoria Geral de Justiça, extrai-se:

‘Trata-se, portanto, de ingerência nas competências material e legislativa da União, bem lembrando o Procurador-Geral de Justiça, a fls. 111/112, a orientação de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, no sentido de que '(...) Ainda cerceiam a autonomia dos Estados regras de subordinação normativa. São estas que, presentes na própria Constituição Federal e direcionadas por ela a todos os entes federativos (União, Estados Municípios), predefinem o conteúdo da legislação que será editada por eles (...)’.

Desse modo, desnecessária a repetição dos princípios estabelecidos nas Constituições Federal e Estadual para se constatar agressão à disciplina dos arts. 1º, 111 e 144, da Constituição Paulista’.

Existindo, pois, precedente desta Corte, que vem ao encontro das convicções expressas nesta decisão, a norma impugnada é, com efeito, inconstitucional, pois o legislador local extrapolou da sua esfera de competência” (TJSP, ADI 141.511-0/1-00, Órgão Especial, Rel. Des. Walter de Almeida Guilherme, v.u., DJ 19-09-2007).

De outro lado, o dispositivo legal impugnado, já foi declarado inconstitucional por este Colendo Órgão Especial, em sede do Incidente de Inconstitucionalidade nº 0265129-22.2010.8.26.0000 (ANTIGO 990.10.265129-0), suscitado pela 8ª Câmara de Direito Público, em APELAÇÃO CÍVEL interposta contra sentença prolatada em MANDADO DE SEGURANÇA, impetrado por TESS S.A. contra o Secretário Municipal de Obras e Projetos de Campinas, objetivando a apreciação sobre a constitucionalidade dos arts. 3º, 4º e 5º da referida Lei Estadual. A ementa do julgamento ficou assim redigida:

EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO- ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEIS ESTADUAL E MUNICIPAL - SERVIÇOS DE TELECOMUNICAÇÕES - ESTABELECIMENTO DE CONDIÇÕES - USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA DA UNIÃO - PRESENÇA - INCONSTITUCIONALIDADE – EXISTÊNCIA - São inconstitucionais a Lei Estadual 10.995, de 21 de dezembro de 2001, e o art. 10 da Lei Municipal de Campinas 11.024, de 9 de novembro de 2001, que estabelecem condições às empresas prestadoras de serviços de telecomunicações para a instalação de antenas e estações de radiotransmissão em geral, por invadirem competência legislativa e material privativa da União, afrontando o disposto nos arts. 22, inciso IV, combinado com o art. 21, inciso XI, da Constituição Federal - Leis de outros entes federativos não podem impor alterações, direta ou indiretamente, nos contratos celebrados com a União - Jurisprudência do STF – Acolhe-se a arguição de inconstitucionalidade.

Não pode o legislador municipal, contudo, a pretexto de legislar concorrentemente ou suplementar a legislação federal, invadir a competência legislativa deste ente federativo superior (RE 313.060, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 29-11-2005, Segunda Turma, DJ de 24-2-2006).

A autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias. Trata-se de um dos pontos caracterizadores e asseguradores da existência e de harmonia do Estado Federal.

A base do conceito do Estado Federal reside exatamente na repartição de poderes autônomos, que, na concepção tridimensional do Estado Federal Brasileiro, se dá entre a União, os Estado e os Municípios. É através desta distribuição de competências que a Constituição Federal garante o princípio federativo. O respeito à autonomia dos entes federativos é imprescindível para a manutenção do Estado Federal.

Não bastasse a inconstitucionalidade apontada, a restrição imposta pelo dispositivo legal impugnado para a instalação dos variados sistemas de transmissão mencionados revela, com clareza, a violação do princípio da razoabilidade, previsto no art. 111 da Constituição Paulista, e que na Constituição da República decorre do princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CR/88), que em sua perspectiva substancial exige proporcionalidade e razoabilidade no que diz respeito às leis que delimitam aquilo que conhecemos como direito material.

Como anota Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o princípio da razoabilidade “visa a afastar o arbítrio que decorrerá da desadequação entre meios e fins”, tendo importância tanto quando da criação da norma, como quando de sua aplicação (Curso de direito administrativo, 14. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 101). Também nesse sentido Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito administrativo, 19. ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 95).

Em sede doutrinária, Gilmar Ferreira Mendes, examinando a aplicação do princípio da razoabilidade ou proporcionalidade pelo Col. Supremo Tribunal Federal, anotou “de maneira inequívoca a possibilidade de se declarar a inconstitucionalidade da lei em caso de sua dispensabilidade (inexigibilidade), inadequação (falta de utilidade para o fim perseguido) ou de ausência de razoabilidade em sentido estrito (desproporção entre o objetivo perseguido e o ônus imposto ao atingido)”  (cf. A proporcionalidade na jurisprudência do STF, publicado em Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e Celso Bastos Editor, 1998, p. 83).

Para superar o denominado “teste de razoabilidade”, é necessário que a lei preencha, em síntese, três requisitos: (a) necessidade; (b) adequação; e (c) proporcionalidade em sentido estrito.

Em outras palavras, é imperativo que o diploma legal se mostre efetivamente indispensável (necessidade), que se apresente apropriado aos fins a que se destina (adequação), e, por último, que os sacrifícios ou os encargos dele decorrentes sejam aceitáveis do ponto de vista dos benefícios que produzirá (proporcionalidade em sentido estrito).

A restrição trazida pelo ato normativo impugnado não se mostra razoável nem mesmo adequada à proteção da saúde dos moradores, haja vista que a autorização para instalação do sistema de transmissão, que pode beneficiar uma coletividade difusa, fica vinculado a deliberação da vontade de proprietários dos imóveis próximos que, certamente, não estará associada a parâmetros técnicos relativos a efetiva proteção da saúde pública.

De outro lado, o dispositivo legal impugnado viola a autonomia do Pode Executivo na prática de atos administrativos de natureza vinculada, subordinando esta atividade a uma espécie de consulta popular sem qualquer fundamento que a justifique sob o ponto de vista da razoabilidade e da adequação.

Dessa forma, no conflito normativo aqui analisado, conclui-se que não só o art. 10 da Lei nº 11.024, de 09 de novembro de 2001, do Município de Campinas, violou o princípio da razoabilidade e a repartição constitucional de competências, que é a manifestação mais contundente do princípio federativo, operando, por consequência, desrespeito a princípios constitucionais estabelecidos.

Essa é a razão pela qual restou configurada, no caso, a ofensa ao disposto nos arts. 1º, 5º, 111 e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.

Diante do exposto, o pedido deve ser julgado procedente reconhecendo-se a inconstitucionalidade do art. 10 da Lei nº 11.024, de 09 de novembro de 2001, do Município de Campinas.

 

São Paulo, 15 de fevereiro de 2013.

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

 

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