Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº. 0202793-74.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Bertioga

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Bertioga

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, em face da Lei nº 907, de 23 de junho de 2010, do Município de Bertioga, que dispõe sobre “a obrigatoriedade de afixação de placas informativas contra o crime de pedofilia nas escolas públicas, postos de saúde, ginásio de esportes, bem como a divulgação de informativo no site oficial dos órgãos públicos”. Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que estabelece ação concreta à Administração. Violação do princípio da separação dos poderes. Criação de despesa sem indicação de recurso disponível. Ofensa aos artigos 5º; 25; 47; II e XIV e 144, todos da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Bertioga, tendo por objeto a Lei nº 907, de 23 de junho de 2010, do Município de Bertioga, que dispõe sobre “a obrigatoriedade de afixação de placas informativas contra o crime de pedofilia nas escolas públicas, postos de saúde, ginásio de esportes, bem como a divulgação de informativo no site oficial dos órgãos públicos”.

O autor noticia que o projeto de lei que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de vetado, foi sancionado e promulgado pelo Presidente daquela Casa de Leis.

Sustenta que cabe exclusivamente ao Prefeito a iniciativa de leis que criem atribuições para os órgãos da administração pública, invadindo, a lei tratada, a esfera de gestão administrativa, divisando ofensa aos arts. 5º, 25, 47, incisos II e XIV e 144 da Constituição do Estado.

Argumenta, também, que a Lei em questão cria despesa pública sem a devida indicação dos recursos disponíveis para dar atendimento a tais encargos.

O Presidente da Câmara Municipal foi devidamente notificado e prestou informações (fls. 53/61) em defesa da constitucionalidade da norma objurgada.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 49/50).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A ação é procedente. Vejamos.

A Lei nº 907, de 23 de junho de 2010, do Município de Bertioga, que dispõe sobre “a obrigatoriedade de afixação de placas informativas contra o crime de pedofilia nas escolas públicas, postos de saúde, ginásio de esportes, bem como a divulgação de informativo no site oficial dos órgãos públicos”, apresenta a seguinte redação:

“Art. 1º. Fica estabelecida a obrigatoriedade de afixação de placas com a divulgação do disque denúncia 181, nas escolas públicas, postos de saúde, ginásios esportivos, bem como informativos no site oficial dos órgãos públicos, com os seguintes dizeres:

Pedofilia é crime. Combata este mal!!’

         Disque Denúcia 181

Art. 2º. Tanto a placa, quanto o informativo serão escritos na cor branca, com fundo vermelho, de forma clara, nítida e de fácil visualização, medindo 20 cm de altura e 30 cm de largura.

Art. 3º. A placa informativa será afixada:

I- Na recepção das escolas públicas;

II – Na recepção dos Postos de Saúde;

III – Ao lado da porta de entrada do banheiro dos Ginásios de esportes.

Art. 4º. As despesas decorrentes da execução da presente Lei correão por conta de verba própria do orçamento municipal, suplementadas se necessário.

Art. 5º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

 

Como se pode observar, a referida lei obriga o Poder Público a fixar placas informativas com o número do Disque Denúncia (181), para combate do crime de pedofilia, no Município de Bertioga, nos moldes por ela especificados.

Em que pesem os elevados propósitos que inspiraram o Vereador autor do projeto, a lei promulgada é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 25, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

“Art. 25 – Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

Art. 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

De fato, o regime jurídico das políticas públicas é regulado por lei, cuja iniciativa é reservada ao Poder Executivo, que tem a incumbência de planejar, organizar, dirigir e executá-las.

O ordenamento jurídico brasileiro, como se sabe, dispõe que o governo municipal é de funções divididas. As funções administrativas foram conferidas ao Prefeito, enquanto que as funções legislativas são de competência da Câmara. Administrar significa aplicar a lei ao caso concreto. Assim, no exercício de suas funções, o Prefeito é obrigado a observar as normas gerais e abstratas editadas pela Câmara, em atenção ao princípio da legalidade, a que está pautada toda atuação administrativa, na forma do art. 111 da Carta Paulista.

Esse mecanismo de repartição de funções, incorporado ao nosso ordenamento constitucional, e que teve como principal idealizador o filósofo Montesquieu, impede a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo. Daí ser vedado à Câmara interferir na prática de atos que são de competência privativa do Prefeito, assim como a recíproca é verdadeira. 

Tamanho significado apresenta esse sistema de separação das funções estatais em nosso ordenamento jurídico, que a própria Constituição Federal, no seu art. 60, § 4.º, inciso III, cuidou de incorporá-lo ao seu núcleo intangível, ao dispor expressamente que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a aboli-lo.” 

Vistos esses aspectos, tem-se, no caso sob exame, que a Câmara de Vereadores de Bertioga aprovou a Lei n. 907/2010, derivada de projeto de iniciativa parlamentar, impondo ao Executivo obrigações, com nítida vocação Administrativa típica, o que não pode ser admitido.

Essa lei, porém, malgrado os elevados propósitos que nortearam a sua edição, não reúne a mínima condição de subsistir na ordem jurídica vigente, uma vez que, a pretexto de disciplinar assunto de interesse local, a Câmara Municipal acabou por interferir na esfera de competência do Executivo, acarretando, tal iniciativa, o desequilíbrio no delicado sistema de relacionamento entre os poderes municipais.

Com efeito, é irrecusável a competência da Câmara para legislar sobre os assuntos de interesse local, mas há alguns limites que devem ser observados, e que decorrem, basicamente, da necessidade de preservar-se a convivência pacífica dos poderes políticos, entre os quais não existe nenhuma relação de hierarquia e subordinação, mas sim de independência e harmonia, em face do contido no art. 5.º da Constituição do Estado de São Paulo.

Como já visto inicialmente, a administração municipal incumbe ao Prefeito, que é quem define as prioridades da sua gestão, as políticas públicas a serem implementadas e os serviços públicos que serão prestados à população. Nessa seara, a Câmara não tem como impor suas preferências, podendo, quando muito, formular indicações, mas não sujeitar aquela autoridade ao cumprimento de lei que, longe de fixar uma regra geral e abstrata, constitui verdadeira ordem ou comando, para que se faça algo.

Logo, se a iniciativa em exame for considerada válida – o que corresponde, na prática, a uma tentativa de restabelecer-se o sistema que vigorava ao tempo das Comunas -, ocorrerá uma hipertrofia do Legislativo, que sempre poderá impor suas vontades ao Executivo, por meio da edição de leis, criando uma verdadeira relação de subordinação e hierarquia entre os poderes, incompatível com o sistema adotado pela Constituição em vigor, o qual se baseia na independência e harmonia entre os poderes, cuja observância é vital para a preservação do Estado de Direito.

Na ordem constitucional vigente, como anotado em tópico precedente, não existe a mínima possibilidade de a administração municipal ser exercida pela Câmara, por intermédio da edição de leis. Em relação a esse aspecto, aliás, não paira nenhuma controvérsia, uma vez que a atual Constituição é suficientemente clara ao atribuir ao Prefeito a competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a direção superior da administração municipal (CE., art. 47, inciso II) e a praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (CE., art. 47, inciso XIV).

Bem por isso, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que:

“Sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes, no entanto, não é lícito ao Parlamento editar, a seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial.” (“A Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194).

O Prefeito, enquanto chefe do Poder Executivo, exerce tarefas específicas à atividade de administrador, tendentes à atuação concreta e referentes ao “planejamento, organização e direção de serviços e obras da municipalidade. Para tanto, dispõe de poderes correspondentes de comando, de coordenação e de controle de todos os empreendimentos da Prefeitura [...] A execução das obras e serviços públicos municipais está sujeita, portanto, em toda a sua plenitude, à direção do Prefeito, sem interferência da Câmara, tanto no que se refere às atividades internas das repartições da Prefeitura (serviços burocráticos ou técnicos), quanto às atividades externas (obras e serviços públicos) que o Município realiza e põe à disposição da coletividade” (Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, RT, 3ª ed., pp. 870/873). Em idêntica lição, José Afonso da Silva, “O Prefeito e o Município”, Fundação Pref. Faria Lima, 1977, pp. 134/143.

E, sobre o tema em foco, destaca-se trecho do Acórdão da lavra do Eminente Desembargador DENSER DE SÁ:

 “Segundo a doutrina a administração da cidade é da competência do Prefeito, tendo o Poder Legislativo a função de aprovar ou desaprovar os atos do Alcaide, funcionando como fiscal do governo. (...) Não é dado aos vereadores resolver todos os assuntos por meio de lei. A Câmara Municipal somente pode estabelecer programas gerais, com base na Constituição se não criar atribuições para órgãos públicos ou determinar seu modo de execução, incumbências do Prefeito Municipal” (Oesp – Adin n. 104.747-0/7, DJ de 10.03.04).

 Restando caracterizada a violação de preceitos contidos na Constituição do Estado de São Paulo, a saber, aos arts. 5°, 47, incs. II e XIV e 144, merece a Lei n° 907/2010, do Município de Bertioga, ser extirpada do mundo jurídico.

Finalmente, cabe observar que a imposição de obrigações à Administração (fixação de placas nos locais e formas indicados), instituída pela lei impugnada, traz ônus ao Erário. Tem-se aumento dos encargos do orçamento, resultante da necessidade de cumprimento dessas obrigações.

 Em casos similares, esse egrégio Tribunal de Justiça tem reconhecido a inconstitucionalidade de leis por violação ao art. 25 da Constituição Estadual, em razão da ausência de indicação de recursos disponíveis para fazer frente às despesas criadas (ADI 18.628-0, ADI 13.796-0, ADI 38.249-0, ADI 36.805.0/2, ADI 38.977.0/0).

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 907 de 23 de junho de 2010, do Município de Bertioga, que dispõe sobre “a obrigatoriedade de afixação de placas informativas contra o crime de pedofilia nas escolas públicas, postos de saúde, ginásio de esportes, bem como a divulgação de informativo no site oficial dos órgãos públicos”.

São Paulo, 20 de fevereiro de 2014.

 

        Nilo Spinola Salgado Filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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