Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0202798-96.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Bertioga

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Bertioga

 

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade.  Lei Municipal nº 908, de 23 de junho de 2010, de Bertioga, fruto de iniciativa parlamentar, que “Inclui no Calendário do Município de Bertioga a Semana da Cultura Evangélica e dá outras providências”.

2)      Criação de programa de governo. Violação da regra da separação de poderes, ou seja, da denominada “reserva de administração” (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista).

3)      Criação de órgão administrativo e fixação de atribuições. Violação da iniciativa reservada do Chefe do Executivo (art. 24, § 2º, n. 2, c.c. o art. 144 da Constituição Paulista).

4)      Inconstitucionalidade reconhecida.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito Municipal de Bertioga, tendo como alvo a Lei Municipal nº 908, de 23 de junho de 2010, de Bertioga, fruto de iniciativa parlamentar, que “Inclui no Calendário do Município de Bertioga a Semana da Cultura Evangélica e dá outras providências”.

Sustenta o autor que o ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, ao criar a Semana Municipal de “Cultura Evangélica” violou a regra da separação de poderes, e não indicou os recursos necessários para seu cumprimento, contrariando, desse modo, o disposto no art. 5º, no art. 25, no art. 47, II e XIV, e ainda no art. 144, todos da Constituição do Estado de São Paulo.

Citado (fl. 60), o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo (fls. 62/63).

A Câmara Municipal prestou informações (fls. 66/72).

É o relato do essencial.

A ação deve ser julgada procedente.

A Lei Municipal nº 908, de 23 de junho de 2010, de Bertioga, fruto de iniciativa parlamentar, que “Inclui no Calendário do Município de Bertioga a Semana da Cultura Evangélica e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º Fica instituído no âmbito do Município de Bertioga, a ‘Semana da Cultura Evangélica’ a ser comemorada na semana do dia 11 de outubro de cada ano, em consonância com a Lei Municipal 200, de 05 de dezembro de 1996.

Art. 2º. A partir do ano de 2010, a ‘Semana da Cultura Evangélica’ integrará o Calendário Oficial de Eventos do Município e terá como objetivo divulgar a cultura evangélica através de exposições, palestras, cultos religiosos e outras atividades em geral que tenham como público alvo toda a sociedade, de todas as idades.

Art. 3º. Caberá ao Poder Executivo junto a todas secretarias apoiar ou promover eventos, debates e congressos, em função das comemorações da ‘Semana da Cultura Evangélica’.

Art. 4º. Será formada uma Comissão de Organização, cujos integrantes serão representantes das Instituições Evangélicas que participarão do processo de elaboração, construção e aprovação do Projeto.

§ 1º. Todas as instituições evangélicas do âmbito municipal poderão participar das reuniões de organização do evento, ficando, entretanto, as decisões finais a cargo da Comissão Organizadora.

§ 2º. Cada Igreja Evangélica indicará, no prazo de 30 (trinta) dias a partir da publicação da presente Lei seu representante para a mencionada comissão, mediante oficio encaminhado à Presidência da Câmara Municipal.

§ 3º. Após efetivamente formada a Comissão Organizadora, esta terá o prazo de 60 (sessenta) dias para aprovação do seu Regimento Interno.

Art. 5º. O Poder Executivo cederá, na medida de suas possibilidades, espaços públicos para a discussão de temas e a realização de eventos ligados à cultura evangélica.

Art. 6º. Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições contrárias.

(...)”

A inconstitucionalidade decorre da violação das regras da separação de poderes, bem como da reserva de iniciativa do Poder Executivo, previstas na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art.5º, art. 24, § 2º, n. 2, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O legislador municipal, na hipótese analisada, criou verdadeiro programa de governo, consistente em semana cultural cuja finalidade é, como diz expressamente o ato normativo impugnado, promover a divulgação da “Cultura Evangélica”.

Abstraindo dos motivos que podem ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão administrativa do Município.

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes. Trata-se nitidamente da violação da denominada “reserva de administração”.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Nesse particular, confira-se o entendimento assente do STF:

“(...)

RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais (STF, ADI-MC 2364-AL, Tribunal Pleno, rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

(...)” (g.n.)

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade da adoção da regra da separação. Essas exceções devem ser interpretadas restritivamente.

Mas não é só.

A lei prevê ainda a criação de órgão no âmbito da Administração Pública (Poder Executivo), ao cuidar da criação de uma “Comissão de Organização”, bem como atribui, expressamente, funções ao Poder Executivo, através das respectivas Secretarias Municipais.

Há, nesse passo, violação à reserva de iniciativa prevista no art. 24, § 2º, n. 2º da Constituição Paulista, aplicável aos Municípios por força do art. 144 da mesma Carta.

Nesse sentido, são aplicáveis à hipótese, “mutatis mutandis”, os precedentes a seguir transcritos:

“(...)

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO.

CF, art. 61, § 1º, II, e, art. 84, II e VI. Lei 7157, de 2002, do Espírito Santo.

I. É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: CF, art. 61, § 1º, II, e, art. 84, II e VI.

II – As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.

III – Precedentes do STF.

IV – Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente. (STF, ADI 2719-ES, Tribunal Pleno, rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.)

(...)

É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação (STF, ADI, 3254-ES, Tribunal Pleno, rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).

(...)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 6835/2001 DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. INCLUSÃO DOS NOMES DE PESSOAS FÍSICAS E JURÍDICAS INADIMPLEMNTES NO SERASA, CADIN E SPC. ATRIBUIÇÕES DA SECRETARIA DE ESTADO DA FAZENDA. INICIATIVA DA MESA DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. A lei 6835/2001, de iniciativa da Mesa da Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo, cria nova atribuição à Secretaria da Fazenda Estadual, órgão integrante do Poder Executivo daquele Estado. À luz do princípio da simetria, são de iniciativa do Chefe do Poder Executivo estadual as leis que versem sobre a organização administrativa do Estado, podendo a questão referente à organização e funcionamento da Administração Estadual, quando não importar aumento de despesa, ser regulamentada por meio de Decreto do Chefe do Poder Executivo (ar. 61, § 1º, II, ‘e’ e art. 84, VI, ‘a’, da Constituição Federal). Inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa da lei ora atacada. (STF, ADI 2857-ES, Tribunal Pleno, rel. Min. Joaquim Barbosa, 30-08-2007, v.u., DJe 30-11-2007).

(...)

 (...)” (g.n.)

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 908, de 23 de junho de 2010, de Bertioga.

São Paulo, 19 de fevereiro de 2014.

 

 

 

          Nilo Spinola Salgado Filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

 

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