Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0203805-26.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Atibaia

Requerida: Câmara Municipal de Atibaia

 

 

 

 

 

 

Constitucional.  Urbanístico. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Complementar n. 665, de 30 de agosto de 2013, do Município de Atibaia. Espaços esportivos em loteamentos para população de baixa renda. Separação de Poderes. Geração de despesa pública. Competência normativa alheia. Compatibilidade com Plano Diretor. Participação comunitária no processo legislativo. Procedência da ação. 1. Salvo no tocante à celebração de convênios com órgãos públicos (art. 1º, III, LC 665/13), a iniciativa legislativa em matéria urbanística, como a referente a áreas de lazer (criação de espaços esportivos em loteamentos destinados à população de baixa renda), não é reservada ao Chefe do Poder Executivo. 2. Lei que não impõe obrigações ao poder público, mas, aos particulares (loteadores), não infringe o art. 25, CE/89. 3. Não tratando de institutos essenciais de direito urbanístico, e atendo-se à lei local aos limites da autonomia municipal (art. 30, I e VIII, CF/88), é inocorrente invasão da competência normativa alheia (art. 144, CE/89 c.c. art. 24, I, CF/88). 4. Processo legislativo que não primou pela observância da participação comunitária em matéria urbanística afronta o art. 180, II, CE/89. 5. Normas desconformes ou aparteadas do plano diretor caracterizam ofensa ao art. 181, CE/89. 6. Procedência da ação.

 

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Atibaia impugnando a Lei Complementar n. 665, de 30 de agosto de 2013, do Município de Atibaia, que dispõe sobre a obrigação de os projetos de loteamento para população de baixa renda prever a criação de espaços para a prática de esportes, com efetiva implantação da infraestrutura necessária, por alegação de incompatibilidade com os arts. 5º, 25, 47, II, XI e XIV, 111, 144 e 180, II e 181 e § 1º, da Constituição Estadual, c.c. art. 24, I, da Constituição Federal (fls. 02/12).

2.                Deferida a liminar (fls. 106/107), o douto Procurador-Geral do Estado se absteve da defesa da lei impugnada (fls. 117/119), decorrendo in albis o prazo para prestação de informações pela Câmara Municipal de Atibaia (fl. 120).

3.                É o relatório.

4.                A Lei Complementar n. 665, de 30 de agosto de 2013, de iniciativa parlamentar, tem o seguinte teor:

“Art. 1º - Os projetos de loteamento para população de baixa renda deverão, obrigatoriamente, prever a criação de:

I – Pelo menos um espaço para a prática de esportes, como campo de futebol, quadra de areia para vôlei ou futebol;

II – os espaços mencionados no inciso acima deverão contar com chuveiros e torneiras com aquecimento solar;

III – os proprietários dos imóveis loteados poderão realizar a implantação dos espaços acima mediante convênios com escolas públicas, órgãos públicos e outros interessados.

Art. 2º - Esta Lei Complementar será regulamentada por decreto no que couber, entrando em vigor após a sua publicação, revogando as disposições em contrário” (fl. 95).

5.                A lei local impugnada é norma urbanística de polícia administrativa sobre parcelamento do solo urbano, impondo obrigações a particulares.

6.                Não há violação à separação de poderes porque a lei não invadiu a reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo nem a reserva da Administração em linhas gerais, ressalvado o quanto adiante exposto.

7.                A matéria não se insere entre aquelas que são reservadas exclusivamente à iniciativa do Chefe do Poder Executivo (arts. 24, § 2º, 2, e 47, XI, Constituição Estadual) nem a ato normativo de sua alçada imune à interferência do Poder Legislativo (art. 47, II, XIV e XIX, Constituição Estadual), de maneira que não se caracteriza violação ao art. 5º da Constituição do Estado. A reserva deve ser explícita e interpretada restritivamente, alijando exegese ampliativa ou presunção, conforme alvitra a doutrina (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593) e enuncia a jurisprudência (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001; RT 866/112; STF, ADI 3.394, Rel. Min. Eros Grau, 02-04-2007, DJe 15-08-2008; STF, ADI 3.205, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-10-2006, DJ 17-11-2006), tendo em vista que em se tratando de processo legislativo as normas do modelo federal são aplicáveis e extensíveis por simetria às demais órbitas federativas (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.; STF, ADI 2.731-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 02-03-2003, v.u., DJ 25-04-2003, p. 33; STF, ADI 1.594-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 04-06-2008, v.u., DJe 22-08-2008; RT 850/180; RTJ 193/832).

8.                Comungo da orientação devotada pela Suprema Corte que, in casu, a iniciativa legislativa é comum ou concorrente, como se colhe do seguinte julgado:

“Recurso extraordinário. Ação direta de inconstitucionalidade contra lei municipal, dispondo sobre matéria tida como tema contemplado no art. 30, VIII, da Constituição Federal, da competência dos Municípios. 2. Inexiste norma que confira a Chefe do Poder Executivo municipal a exclusividade de iniciativa relativamente à matéria objeto do diploma legal impugnado. Matéria de competência concorrente. Inexistência de invasão da esfera de atribuições do Executivo municipal. 3. Recurso extraordinário não conhecido” (STF, RE 218.110-SP, 2ª Turma, Rel. Min. Néri da Silveira, 02-04-2002, v.u., DJ 17-05-2002, p. 73).

9.                Portanto, não merece abono a arguição de ofensa ao art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, adicionando que, como é sabido, a matéria depende de lei e como a iniciativa legislativa reservada é excepcional demanda expressa previsão constitucional, não se presumindo.

10.                 Porém, ressalva-se da negativa de violação à separação de poderes a expressão “com escolas públicas, órgãos públicos” constante do inciso III do art. 1º da Lei Complementar n. 665/13. Isto porque, no ponto, a norma prevê celebração de parceria dos loteadores com escolas públicas, órgãos públicos e outros interessados, para implantação dos espaços esportivos instituídos, configurando intromissão indevida nas atribuições do Chefe do Poder Executivo, relacionadas a órgãos públicos.

11.              Portanto, a expressão “com escolas públicas, órgãos públicos” constante do inciso III do art. 1º da Lei Complementar n. 665/13 é incompatível com os arts. 5º, 24, § 2º, 2, e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual.

12.              Todavia, analiso a lei em sua íntegra.

13.              É inadmissível sustentar violação ao art. 25 da Constituição Estadual, porque a lei local em foco não cria obrigações diretamente ao poder público a demandar específica cobertura financeira nem deflagra programa que empenhe novas despesas não previstas no orçamento anual. Não se pode olvidar que a dotação de equipamentos comunitários é dever do loteador, e não do poder público, e, nesse prisma, a lei não obriga a Administração Pública à implantação, sob seu custeio, de espaços esportivos e suas alfaias.

14.              Ademais, a ausência de recursos financeiro-orçamentários não compromete a validade da lei, impedindo apenas sua execução no exercício respectivo de sua sanção ou promulgação (STF, ADI 1.585-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-12-1997, v.u., DJ 03-04-1998, p. 01). E não é possível alegar que sua execução gera dispêndios, porque “o dever de fiscalização de cumprimento das normas é conatural aos atos normativos e não tem efeito de gerar gastos extraordinários” (TJSP, ADI 0006249-50.2012.8.26.0000, Rel. Des. Paulo Dimas Mascaretti, m.v., 12-09-2012).

15.              Além disso, essa questão demanda o exame de fato e de prova, o que é insuscetível nesta via especial.

16.             A alegação de ofensa aos arts. 111 e 144 da Constituição Estadual por conta da remissão à observância da discriminação de competências normativas contida na Constituição Federal não amealha sucesso.

17.              Realmente, compete concorrentemente à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar sobre direito urbanístico (art. 24, I, Constituição Federal), porém, no caso em exame, o Município não disciplinou a matéria em termos de definição de alcance, extensão, natureza ou sentido de institutos de direito urbanístico, atendo-se aos limites de sua autonomia para promoção do adequado ordenamento territorial em assunto que é de seu peculiar interesse (art. 30, I e VIII, Constituição Federal). Neste sentido, já se decidiu que as normas federais e estaduais devem se circunscrever a diretrizes e preceitos gerais, remanescendo o mais a esfera local:

“(...) Também a competência municipal, para promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano -- C.F., art. 30, VIII -- por relacionar-se com o direito urbanístico, está sujeita a normas federais e estaduais (C.F., art. 24, I). As normas das entidades políticas diversas -- União e Estado-membro -- deverão, entretanto, ser gerais, em forma de diretrizes, sob pena de tornarem inócua a competência municipal, que constitui exercício de sua autonomia constitucional. (...)” (STF, ADI 478-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 09-12-1996, v.u., DJ 28-02-1997, p. 4.063).

18.              Aliás, havendo alegação de usurpação da esfera normativa alheia, torna-se imperioso gizar que a Lei n. 6.766/79 fixa mínimos permitindo a complementação normativa municipal (art. 1º, parágrafo único) e ao tratar dos requisitos do loteamento tece expressa conexão à legislação municipal, inclusive no tocante aos equipamentos comunitários de lazer com a expressão “proporcionais à densidade de ocupação prevista pelo plano diretor ou aprovada por lei municipal para a zona em que se situem” (art. 4º, I, § 2º).

19.              O requerente sustenta incompatibilidade da lei impugnada com os arts. 180, II, e 181 e § 1º, da Constituição Estadual.

20.              Desses preceitos capto a efetiva contrariedade à exigência de participação comunitária no respectivo projeto de lei e à necessidade de compatibilidade da norma sobre loteamento com o plano diretor e seu caráter integral, esta última requerida para evitar soluções urbanísticas tópicas e isoladas, desvinculadas do planejamento urbano integral. O Supremo Tribunal Federal entende possível o contencioso de constitucionalidade sem que se configure contraste entre a lei impugnada e o plano diretor, estimando desafio direto e frontal à Constituição:

“(...) Plausibilidade da alegação de que a Lei Complementar distrital 710/05, ao permitir a criação de projetos urbanísticos ‘de forma isolada e desvinculada’ do plano diretor, violou diretamente a Constituição Republicana. (...)” (STF, QO-MC-AC 2.383-DF, 2ª Turma, Rel. Min. Ayres Britto, 27-03-2012, v.u., 28-06-2012).

21.              E acerca da participação comunitária no processo legislativo, o egrégio Órgão Especial deste colendo Tribunal de Justiça se pronuncia pela inconstitucionalidade de lei que não tenha primado por sua observância (ADI 169.508.0/5, Rel. Des. Aloísio de Toledo César, 18-02-2009; ADI 994.09.224728-0, Rel. Des. Artur Marques, m.v., 05-05-2010).

22.              Opino pela procedência da ação para declarar a incompatibilidade da expressão “com escolas públicas, órgãos públicos” constante do inciso III do art. 1º da Lei Complementar n. 665/13 é com os arts. 5º, 24, § 2º, 2, e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual, e integralmente da Lei Complementar n. 665/13 com os arts. 180, II e 181, da Constituição Estadual.

                   São Paulo, 07 de março de 2014.

 

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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