Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0204501- 62.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Pedregulho

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Pedregulho

 

 

Ementa:

1) Ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Município de Pedregulho em face da Lei nº 2.320, de 23 de setembro de 2013, do Município de Pedregulho, que “Dispõe sobre a destinação a entidades filantrópicas de percentual dos valores recebidos em eventos de grande porte promovidos por empresas particulares no Município e dá outras providências”.

2) Preliminar. Ilegitimidade ativa do Município. Parte legítima para a ação direta de inconstitucionalidade é o Chefe do Poder Executivo e não o órgão público. Extinção do processo por falta de uma das condições da ação.

3) Processo objetivo. Causa de pedir aberta. Possibilidade de reconhecimento da inconstitucionalidade por fundamento não apontado na inicial.

4) Mérito. Violação do princípio federativo (art. 1º e 18 e art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo) decorrente da repartição constitucional de competências (art. 153, III da Constituição Federal).

5) Parecer pela intimação do autor para regularizar o polo ativo da ação ou, no mérito, pela procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Município de Pedregulho, tendo por objeto a Lei nº 2.320, de 23 de setembro de 2013, do Município de Pedregulho, que “Dispõe sobre a destinação a entidades filantrópicas de percentual dos valores recebidos em eventos de grande porte promovidos por empresas particulares no Município e dá outras providências”.

Alega o autor que a legislação impugnada é fruto de origem parlamentar, promulgada após ter sido derrubado o veto do Chefe do Poder Executivo.  

Sustenta, ainda, que referida lei é inconstitucional em virtude do percentual de 20% (vinte por cento) sobre o valor percebido pelas empresas particulares em razão do evento imposto por ela possuir a natureza de imposto sobre a renda, cuja competência privativa para legislar é da União (art. 153, III da Constituição Federal).

Aponta como violados os arts. 146, III, “a” e 153, III da Constituição Federal e os arts. 7º, 43 e seguintes do Código Tributário Nacional.

O pedido liminar foi deferido pelo r. Despacho de fls. 24/25.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa Lei em questão, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 35/36).

O Presidente da Câmara Municipal de Pedregulho prestou informações defendendo a constitucionalidade da legislação impugnada (fls. 38/41).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Preliminarmente.

Ausente a condição da ação referente à legitimidade de parte.

Figura no polo ativo da presente ação o Município de Pedregulho.

A legitimidade ativa pertence ao Prefeito do Município (art. 90, II, Constituição Estadual), bem como a capacidade postulatória, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal:

“O Governador de Estado é detentor de capacidade postulatória intuitu personae para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie” (ADI(AgRg)1.797-PE, DJ de 23.2.01; ADI (AgRg) 2.130-SC, Celso de Mello, j. de 3.10.01, Informativo 244; ADI (EMBS.) 1.105-DF, Maurício Corrêa, j. de 23.8.01; ADI 1814-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 13-11-2001, DJ 12-12-2001).

Consoante explica a doutrina, “os legitimados para a ação direta referidos nos itens I a VII do art. 103 da CF dispõem de capacidade postulatória plena, podendo atuar no âmbito da ação direta sem o concurso de advogado” (Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle concentrado de constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2007, 2ª ed., p. 246).

Assim sendo, requeiro a intimação do autor para que regularize o polo ativo da ação, ou, em não cumprindo tal providência, seja extinto o processo sem resolução do mérito, por ausência da condição de ação referente à legitimidade da parte, nos termos do art. 267, VI, do Código de Processo Civil.

No mérito, procede a presente ação.

Inicialmente, oportuno consignar que a ação direta estadual é processo objetivo de verificação da incompatibilidade entre a lei e a Constituição do Estado. Por essa razão é possível aferir-se a ilegitimidade constitucional do ato normativo impugnado à luz de preceitos e fundamentos constitucionais estaduais não mencionados na petição inicial.

A causa de pedir consiste na violação à Constituição Estadual, razão pela qual tem sido denominada como causa de pedir aberta, possibilitando no controle concentrado de constitucionalidade o acolhimento por fundamento ou parâmetro não apontado na inicial.

 

A propósito, anota Juliano Taveira Bernardes que, no processo objetivo, “Segundo o STF, o âmbito de cognoscibilidade da questão constitucional não se adstringe aos fundamentos constitucionais invocados pelo requerente, pois abarca todas as normas que compõe a Constituição Federal. Daí, a fundamentação dada pelo requerente pode ser desconsiderada e suprida por outra encontrada pela Corte” (Controle abstrato de constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 436).

Assim vem decidindo o Col. Supremo Tribunal Federal:

 “(...)

 Ementa: constitucional. (...). 'Causa petendi' aberta, que permite examinar a questão por fundamento diverso daquele alegado pelo requerente. (...) (ADI 1749/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, Rel. p. acórdão Min. NELSON JOBIM, j. 25/11/1999, Tribunal Pleno , DJ 15-04-2005, PP-00005, EMENT VOL-02187-01, PP-00094, g.n.).

 (...)”

 Confira-se ainda, nesse mesmo sentido: ADI 3576/RS, Rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 22/11/2006, Tribunal Pleno, DJ 02-02-2007, PP-00071, EMENT VOL-02262-02, PP-00376.

Feitas essas considerações, a Lei n. 2.320, de 23 de setembro de 2013, do Município de Pedregulho, apresenta a seguinte redação:

“Art. 1º - Fica estabelecido que 20% dos valores recebidos por empresas particulares que promoverem eventos de grande porte no parque agropecuário do Município de Pedregulho deverão ser destinados a entidades filantrópicas, bem como às clínicas de recuperação que atendem aos nossos munícipes.

Art. 2º - As entidades de que trata o artigo anterior deverão estar devidamente cadastradas no setor municipal competente a fim de receberem os repasses previstos e serão selecionadas de acordo com os critérios de acordo com os critérios estabelecidos pelo setor público competente.

Art. 3º - Para os efeitos desta lei, considera-se de grande porte os eventos esporádicos promovidos por empresas particulares, com público previsto acima 1.500 (mil e quinhentas) pessoas, nos quais não se incluem eventos promovidos por igrejas, associações sem fins lucrativos, entidades filantrópicas e afins.

Art. 4º - As despesas decorrentes desta Lei correrão por conta de dotações próprios no Orçamento do Município.

Art. 5º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário”.

Assenta a inicial que a norma acima descrita violou os arts. 146, III, “a” e 153, III, da Constituição Federal e os arts. 7º, 43 e seguintes do Código Tributário Nacional.  

De fato, trata-se de norma inconstitucional, mas não pelos argumentos acima expendidos. Com efeito, a inconstitucionalidade ocorre porque a Lei n. 2.320, de 23 de setembro de 2013, do Município de Pedregulho, suplanta os limites da autonomia municipal radicados nos incisos I e II do art. 30 da Constituição Federal e invade a competência legislativa privativa da União.

Está claro, porém, que a lei local contestada instituiu imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, na medida em que impõe que 20% (vinte por cento) sobre os valores recebidos por empresas particulares que realizarem eventos de grande porte no parque agropecuário do Município de Pedregulho sejam destinados a entidades filantrópicas, bem como às clínicas de recuperação que atendem os munícipes daquele município.

Força convir ser descabido o contraste de outras normas senão a Constituição Estadual no controle concentrado de constitucionalidade via ação direta de lei municipal, consoante disposto no art. 125, § 2º, da Constituição Federal. Mas, e tendo em vista o conceito de causa de pedir aberta aplicável ao controle concentrado de constitucionalidade (RTJ 200/91), é cabível o contraste da lei local com a Constituição Federal a partir da norma remissiva contida no art. 144 da Constituição Estadual.

O art. 144 da Constituição Estadual - que reproduz o art. 29, caput, da Constituição Federal - determina a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).

O art. 144 da Constituição Paulista determina que “Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

Por força desse artigo, os princípios essenciais estabelecidos na Constituição Federal devem ser respeitados pelos Estados e Municípios, servindo como parâmetro para o controle concentrado de constitucionalidade das leis no âmbito da Justiça Estadual.

De outro lado, o princípio federativo está assentado no art. 1º e no art. 18, caput, da Constituição Federal, determinando este último que “a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”.

A Carta Magna estabelece os termos da repartição de competências, que é corolário do princípio federativo.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art.1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13ªed., ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p.96).

Um dos aspectos de maior relevo, e que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo, adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Federal para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia, e dos respectivos limites, dos Estados, Distrito Federal, e Municípios, em relação à União.

Anota a propósito Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “‘a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal’” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4ªed., São Paulo, Atlas, 2007, p.19/20).

Não pairaria qualquer dúvida a respeito da inconstitucionalidade de proposta de emenda constitucional ou de lei que sugerisse, por exemplo, a extinção da própria Federação: a Constituição veda, como visto, proposta de emenda “tendente a abolir”, entre outros, “a forma federativa de Estado” (art.60 § 4º inciso I da CF).

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do Pretório Excelso, pois como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

"Mais do que isso, a ideia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I)." (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).

 Por essa linha de raciocínio, pode-se também afirmar que a Lei Municipal que regula matéria cuja competência é do legislador federal está, ao desrespeitar a repartição constitucional de competências, a violar o princípio federativo.

E na hipótese em exame, o art. 153, III, da Constituição Federal atribui privativamente à União a competência para instituir imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza.

Embora o art. 30, inciso I, da Constituição Federal confira ao legislador Municipal competência para “legislar sobre assuntos de interesse local”, a hipótese em exame não se reveste de simples interesse local. Mutatis mutandis, ilustra a questão o seguinte precedente do Pretório Excelso:

“A competência dos Estados para legislar sobre a proteção e defesa da saúde é concorrente à União e, nesse âmbito, a União deve limitar-se a editar normas gerais, conforme o artigo 24, XII, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal (...)." (ADI 1.278, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 16-5-07, DJ de 1º-6-07).

 

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da intimação do Sr. Prefeito Municipal para que regularize o polo ativo da ação e, no mérito, pela procedência desta ação direta de inconstitucionalidade, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei n. 2.320, de 23 de setembro de 2013, do Município de Pedregulho.

São Paulo, 27 de fevereiro de 2014.

 

 

        Nilo Spinola Salgado Filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

   Jurídico

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