Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

 

Processo nº. 0204848-32.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeita do Município de Socorro

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Socorro

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeita.  Lei nº 3.641, de 23 de abril de 2012, do Município de Socorro, que “Dispõe sobre a criação do SISCAN – Sistema Municipal de Registro de Câncer no Município de Socorro SP”. Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo. Violação do princípio da separação dos poderes. Ofensa aos artigos 47, incs. II e XIV e 144 da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pela Prefeita Municipal de Socorro, tendo por objeto a Lei nº 3.641, de 23 de abril de 2012, daquele Município, que “Dispõe sobre a criação do SISCAN – Sistema Municipal de Registro de Câncer no Município de Socorro SP”.

A autora noticia que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, ao final, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

Sustenta que a lei em questão cria obrigações para a Administração Pública, havendo usurpação por parte do Poder Legislativo de atribuições pertinentes a atividades próprias do Poder Executivo e aponta transgressão aos arts. 5º e 144 da Constituição Estadual.

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações (fls. 50/51), atendo-se ao processo legislativo.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 46/47).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A lei impugnada do Município de Socorro assim dispõe, no que interessa:

Art. 1º - Fica instituído o SISCAN – Sistema Municipal de Registro de Câncer.

Art. 2º - O SISCAN tem por finalidade a coleta e ordenamento permanente de dados de casos de tumores malignos, detectados em cidadãos residentes no Município.

Art. 3º - São objetivos dos SISCAN:

I – identificar todos os novos casos de tumores malignos identificados nos habitantes do Município;

II – identificar os grupos populacionais de risco para tumores malignos;

III – manter cadastro que evidencie a cada ano os casos novos de tumores malignos diagnosticados em habitantes do Município, por local anatômico de ocorrência, sexo, faixa etária e ocupação profissional do cidadão;

IV – avaliar e acompanhar, em conjunto com o Programa de Aprimoramento das informações da Mortalidade do Município de Socorro – a mortalidade por tumores malignos;

V – participar de estudos epidemiológicos relativos a ocorrência de tumores malignos;

VI – planejar e auxiliar na realização de programas de controle e prevenção dos tumores malignos mais prevalentes;

VII – fornecer subsídios aos serviços que realizem o tratamento, recuperação e seguimento de pacientes com tumores malignos;

VIII – auxiliar na formação e capacitação dos trabalhadores da saúde.”

Dita lei é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Como visto, a impugnada norma cria um programa de governo, impondo à Administração a obrigação de realizar os registros coletados pelo “SISCAN”.  Cria, ainda, maiores despesas com a implementação de tal programa, o que importa em invasão da seara administrativa.

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.

Por intermédio da lei em análise, a Câmara criou um programa que visa “a coleta e ordenamento permanente de dados de casos de tumores malignos, detectados em cidadãos residentes no Município” de Socorro, onerando, desta forma, a Administração. Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com o tema, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, “e”, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública (artigo 24, § 2º, 2). Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Nota-se, por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com o disposto no artigo 25, da Constituição Bandeirante.

Esse Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que infringem esses comandos:

“LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL” (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 3.641, de 23 de abril de 2012, do Município de Socorro.

São Paulo, 28 de janeiro de 2013.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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