Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Processo nº. 0204850-02.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeita do Município de Socorro

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Socorro

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida pela Prefeita Municipal de Socorro, da Lei nº 3.642, de 23 de abril de 2012, que “Disciplina o estacionamento temporário e rotativo de veículos em frente às farmácias e drogarias e dá outras providências”. Projeto de origem parlamentar, com usurpação das atribuições da Prefeita. Violação do princípio da separação dos poderes (art. 5º, CE). Vício de iniciativa presente. Parecer pela declaração da inconstitucionalidade.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade promovida pela Prefeita Municipal de Socorro da Lei nº 3.642, de 23 de abril de 2012, que “Disciplina o estacionamento temporário e rotativo de veículos em frente às farmácias e drogarias e dá outras providências”.

Sustenta a autora que a lei padece de inconstitucionalidade formal, por ter sido projetada no âmbito do Poder Legislativo, com violação à prerrogativa exclusiva do Chefe do Poder Executivo, configurando vício de iniciativa e ofensa ao princípio da separação dos poderes.

Aponta como violados os artigos 5º e 144, da Constituição Estadual.

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações às fls. 68/69, tão somente quanto ao processo legislativo da norma impugnada.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa da norma questionada, consignando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 63/65).

É a síntese do necessário.

No mérito, o pedido deve ser examinado pelo cotejo da lei em análise com os arts. 5º; 47, II e IV; e 144, da Constituição Estadual.

A Lei nº 3.642, de 04 de maio de 2012, que “Disciplina o estacionamento temporário e rotativo de veículos em frente às farmácias e drogarias e dá outras providências”, apresenta a seguinte redação:

Art. 1º - Fica autorizado o estacionamento privativo de veículos, e somente por ocasião da aquisição ou uso de medicamentos, em frente às farmácias e drogarias, localizadas no município da Estância de Socorro, até o limite máximo de 10 (dez) minutos.

Parágrafo único – Durante o tempo em que estiver estacionado, o veículo deverá ter sua sinalização de emergência acionado.

Art. 2º - As vagas de estacionamento serão delimitadas em frente às farmácias e drogarias da cidade, com sinalização horizontal de cor amarela, com 5 (cindo) metros de extensão, bem como respectiva sinalização vertical.

Art. 3º - Ficam excluídos do pagamento da remuneração, para vagas delimitadas dentro do sistema de Zona Azul identificadas com as respectivas placas de sinalização os veículos estacionados em frente às farmácias e drogarias.

Art. 4º - As despesas decorrentes da execução da presente Lei correrão por conta própria do Orçamento vigente.”

Em que pesem os elevados propósitos que inspiraram o Vereador, autor do projeto, a lei promulgada é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos.

Não há dúvida que a regulamentação quanto ao estacionamento de veículos em vias públicas é matéria de preponderante interesse do Poder Executivo, já que é a esse Poder que cabe a responsabilidade, perante a sociedade, pelo adequado uso de bens públicos de uso comum. Sendo assim, a iniciativa do processo legislativo para a regulamentação do uso de tais bens é privativa do Poder Executivo, pois, como assinala Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante” (Do processo legislativo, São Paulo: Saraiva, p. 204).

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, e, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre os serviços públicos por ela prestados direta ou indiretamente (art. 24, § 2º, 2) . Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o seja para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., p. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., p. 544-545).

Ademais, se a Constituição atribuiu ao Poder Executivo a responsabilidade pela prestação dos serviços públicos, é evidente que, pela teoria dos poderes implícitos, a ele deve caber a iniciativa das leis que tratem sobre a matéria. Essa teoria dos poderes implícitos - implied powers - surgiu no voto de Marshall, proferido no leading case McCulloch versus Maryland, de 1819, afirmando que, quando o Governo recebe poderes no sentido de cumprir certas finalidades estatais, dispõe também, implicitamente, dos meios necessários de execução. “Se o governante tem atribuições para praticar certos atos, cabe-lhe igualmente exercer aquelas que possibilitem seu exercício” (Caio Mário da Silva Pereira, em “Pareceres do Consultor-Geral da República”, v. 68, p. 99-100).

Daí porque o Legislativo Municipal não poderia subtrair do Prefeito o exame da conveniência e oportunidade da disciplina da permissão de estacionamento em frente de estabelecimentos comerciais, como, no caso, de farmácias e drogarias. Fazendo-a, ofendeu claramente o princípio da separação dos poderes (artigo 5º da Constituição Estadual), com a violação da iniciativa reservada ao Executivo para desencadear o processo legislativo correspondente.

Com efeito, ao Executivo cumpre, com exclusividade, formular a opção política de prestar os serviços públicos diretamente ou delegá-los a particulares, como também de celebrar convênios, acordos e parcerias com entes públicos e privados, não podendo, no exercício dessas atribuições, sofrer nenhum tipo de interferência estranha da Câmara.

Em casos semelhantes, esse E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem afastado a interferência do Poder Legislativo na definição de atividades e das ações concretas a cargo da Administração, destacando-se:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin. n. 53.583-0, Rel. Des. Fonseca Tavares; Adin n. 43.987, Rel. Des. Oetter Guedes; Adin n. 38.977, Rel. Des. Franciulli Netto; Adin n. 41.091, Rel. Des. Paulo Shintate).

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 3.642, de 23 de abril, de 2012, do Município de Socorro.

São Paulo, 28 de janeiro de 2013.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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