Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0205756-55.2013.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Serrana

Requerida: Câmara Municipal de Serrana

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ementa: Constitucional. Administrativo. Ação Direta de Inconstitucionalidade.  Lei Complementar n. 345, de 11 de novembro de 2013, de iniciativa parlamentar, do Município de Serrana. Normas sobre concessão de alvará para realização de feiras temporárias de comércio varejista itinerantes. Âmbito do contencioso de constitucionalidade de lei municipal. Parametricidade. Polícia administrativa.  Iniciativa legislativa concorrente. Improcedência da ação.   1. Parâmetro exclusivo da ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal é a Constituição Estadual, sendo defeso seu contraste com a legislação municipal. 2. Lei que disciplina a concessão de alvará para realização de feiras temporárias itinerantes de comércio varejista expressa norma atinente à polícia administrativa municipal, não se situando na reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo nem na reserva da Administração. 3. Assunto inerente à iniciativa legislativa concorrente. 4. Improcedência da ação.

 

 

 

 

Egrégio Tribunal:

 

 

 

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Prefeito do Município de Serrana impugnando a Lei Complementar n. 345, de 11 de novembro de 2013, do Município de Serrana, de iniciativa parlamentar, que dispõe sobre normas para a concessão de alvará para realização de feiras temporárias de comércio varejista itinerantes, suscitando contrariedade aos arts. 5º, 24, § 2º, 4, e 47, II e XIV, da Constituição do Estado e o art. 4º da Lei Complementar Municipal n. 280/10 (fls. 02/16).

2.                Concedida a liminar (fl. 144), o douto Procurador-Geral do Estado se absteve da defesa da lei impugnada (fls. 156/157), decorrendo in albis o prazo para informações da Câmara Municipal de Serrana (fl. 158).

3.                É o relatório.

4.                O contencioso de constitucionalidade, por via de ação direta, de lei municipal tem como exclusivo parâmetro a Constituição Estadual (art. 125, § 2º, Constituição Federal), sendo defeso o contraste com a legislação municipal.

5.                A lei local, de iniciativa parlamentar, disciplina a realização de feiras temporárias de comércio varejista itinerantes, estabelecendo a necessidade de licença e descrevendo seus requisitos (arts. 1º e 2º), sob pena de sanções administrativas (art. 3º).

6.                Trata-se de lei de polícia administrativa, condicionando o exercício de atividade particular em prol do interesse público, que não se situa na iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo nem na reserva da Administração.

7.                A iniciativa legislativa reservada é matéria de direito excepcional, sendo impositiva sua interpretação restritiva que não permite dilatação nem presunção. Regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:

“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

8.                Fixadas estas premissas, as reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:

“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).

“As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).

“A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima - considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa - se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa” (STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u., DJ 07-12-2006, p. 36).

9.                Postulado básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual.

10.              Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na ideia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro. Todavia, o exercício dessas atribuições nem sempre é fragmentado e estanque, pois, observa a doutrina que:

“O princípio da separação dos poderes (ou divisão, ou distribuição, conforme a terminologia adotada) significa, portanto, entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho harmônico e independente das respectivas funções, e ainda que cada órgão (poder), ao lado de suas funções principais, correspondentes à sua natureza, em caráter secundário colabora com os demais órgãos de diferente natureza, ou pratica certos atos que, teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de competência” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 585).

11.              Como consequência do princípio da separação dos poderes, a Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas da função administrativa, como dispor sobre a sua organização e seu funcionamento. Em essência, a separação ou divisão de poderes:

“consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).

12.              Também por decorrência do citado princípio da separação de poderes, e à vista dos mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e disfunções, a Constituição Estadual cuidou de precisar a participação do Poder Executivo no processo legislativo. Como observa a doutrina:

“É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers).

(...)

A distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

13.              Assim, se em princípio a competência normativa é do domínio do Poder Legislativo, certas matérias por tangenciarem assuntos de natureza eminentemente administrativa e, concomitantemente, direitos de terceiros ou o próprio exercício dos poderes estatais, são reservadas à iniciativa legislativa do Poder Executivo (arts. 24, § 2º e 47, II, XIV e XIX, a).

14.              Esse desenho normativo de status constitucional – aplicável aos Municípios por obra do art. 144 da Constituição Estadual - permite assentar as seguintes conclusões: (a) a iniciativa legislativa não é ampla nem livre, só podendo ser exercida por sujeito a quem a Constituição entregou uma determinada competência; (b) ao Chefe do Poder Executivo a Constituição prescreve iniciativa legislativa reservada em matérias inerentes à Administração Pública; (c) há matérias administrativas que, todavia, escapam à dimensão do princípio da legalidade consistente na reserva de lei em virtude do estabelecimento de reserva de norma do Poder Executivo. A propósito, frisa Hely Lopes Meirelles a linha divisória da iniciativa legislativa:

“Leis de iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores são todas as que a lei orgânica municipal não reserva, expressa e privativamente à iniciativa do prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias previstas nos arts. 61, § 1º, e 165 da CF, as que se inserem no âmbito da competência municipal” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1997, 9ª ed., p. 431).

15.              Por outro lado, há a reserva da Administração Pública. Compete ao Chefe do Poder Executivo o exercício da direção superior da Administração, a prática de atos de administração típica e ordinária, e a disciplina de sua organização e de seu funcionamento (art. 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual), consagrando atribuições de chefia de governo. Trata-se de espaço conferido com exclusividade ao Chefe do Poder Executivo no âmbito de seu poder normativo imune a interferências do Poder Legislativo, e que se radica na gestão ordinária dos negócios públicos, como se infere dos arts. 5º e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual.

16.              Como antes acentuado, o objeto da lei não se encarta em nenhuma dessas reservas, motivo bastante para desabonar a arguição de violação de separação de poderes e inculcar a improcedência da ação.

17.              Face ao exposto, opino pela improcedência da ação.

                   São Paulo, 07 de março de 2014.

 

 

 

        Nilo Spinola Salgado Filho

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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