Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº. 0209227-16.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de São João da Boa Vista

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de São João da Boa Vista

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 3.068, de 04 de novembro de 2011, do Município de São João da Boa Vista, que autoriza a Prefeitura Municipal a permitir o uso de até metade dos passeios públicos para a colocação de mesas, cadeiras, exposição de objetos, equipamentos (churrasqueiras, gaiolas de aves) aos bares, lanchonetes, sorveterias, cafeterias, açougues e similares regularmente instalados e que pleitearem a referida autorização.

2)      Violação da regra da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição Paulista).

3)      Inconstitucionalidade reconhecida.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito Municipal de São João da Boa Vista, tendo como alvo a Lei n. 3.068, de 04 de novembro de 2011, do Município de São João da Boa Vista, que “altera a redação do artigo 1º da Lei n. 088, de 10 de novembro de 1993, que autoriza a Prefeitura Municipal a conceder permissão de uso de passeios públicos a estabelecimentos comerciais regularmente instalados”.

Sustenta o autor que a iniciativa, nessa matéria, é reservada ao Chefe do Executivo, bem como que houve desrespeito ao princípio da separação de poderes.

Aponta como violados o art. 5º e 144 da Constituição Estadual.

Foi concedida liminar, determinando a suspensão do ato normativo (fls. 39).

A Câmara Municipal prestou informações (fls. 45/50).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa do ato normativo (fls. 61/62).

É o relato do essencial.

A Lei n. 3.068, de 04 de novembro de 2011, do Município de São João da Boa Vista, que “altera a redação do artigo 1º da Lei n. 088, de 10 de novembro de 1993, que autoriza a Prefeitura Municipal a conceder permissão de uso de passeios públicos a estabelecimentos comerciais regularmente instalados”, apresenta a seguinte redação:

“Art. 1º. Fica alterada a redação do art. 1º da Lei n. 088, de 10 de novembro de 1993, que passará a vigorar com a seguinte redação:

‘Art. 1º - Fica a Prefeitura Municipal autorizada a permitir o uso de até metade dos passeios públicos para a colocação de mesas, cadeiras, exposição de objetos, equipamentos (churrasqueiras, gaiolas de aves) aos bares, lanchonetes, sorveterias, cafeterias, açougues e similares, regularmente instalados e que pleitearem referida autorização’.

Art. 2º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.

Art. 3º - Ficam revogadas as disposições em contrário”.

 

Com a devida vênia relativamente aos argumentos apresentados pela Presidência da Câmara Municipal em suas informações, a lei impugnada é inconstitucional.

A razão é objetiva e simples: a lei impugnada veicula, efetivamente, verdadeiras opções que devem ser formuladas pela Administração Pública local, e não pelo Legislativo.

Embora contenha aparentemente os atributos do ato normativo, ou seja, abstração, generalidade e impessoalidade, o diploma hostilizado nesta ação direta se traduz, do ponto de vista prático, em ato predominantemente administrativo, embora não chegue a configurar ato administrativo concreto.

Note-se: a lei veicula verdadeira autorização para que comerciantes que se encontrem em determinadas situações utilizem bens públicos de uso comum, dispensando, manifestamente, a concessão da autorização específica por parte do Poder Executivo local.

Admite, assim, que comerciantes locais utilizem áreas públicas adjacentes aos seus negócios para a colocação de mesas, cadeiras, exposição de objetos e equipamentos (churrasqueiras, gaiolas de aves).

Conceder ou não autorizações para tal escopo (utilização de bens de uso comum) não é matéria de lei, mas, sim, de ato administrativo a cargo, portanto, da administração pública municipal.

Daí a conclusão de que o ato normativo impugnado revela-se invasivo da esfera da gestão administrativa, inerente à atividade típica do Poder Executivo.

Desse modo, a lei de iniciativa parlamentar configura verdadeiro ato administrativo, sendo apenas “formalmente” ato legislativo. Não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.

Em outras palavras, se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da administração pública, isso significa invasão de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade e aos limites da adoção da regra da separação de poderes.

Essas exceções devem ser interpretadas restritivamente, não admitindo interpretações que signifiquem, na prática, interferência de um poder na esfera de atuação ontologicamente relacionada ao outro.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei n. 3.068, de 04 de novembro de 2011, do Município de São João da Boa Vista, que “altera a redação do artigo 1º da Lei n. 088, de 10 de novembro de 1993, que autoriza a Prefeitura Municipal a conceder permissão de uso de passeios públicos a estabelecimentos comerciais regularmente instalados”.

São Paulo, 8 de março de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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