Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0219273-64.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Américo Brasiliense

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Américo Brasiliense

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei Municipal nº 1.853, de 13 de dezembro de 2012, de Américo Brasiliense, que “Dispõe sobre a colocação de cavaletes para impedimento do trânsito de veículos nos horários de entrada e saída dos alunos das escolas públicas instaladas no Município”.

2)      Matéria tipicamente administrativa. Iniciativa parlamentar. Invasão da esfera da gestão administrativa reservada ao Poder Executivo Municipal. Violação ao princípio da separação de poderes (arts. 5º, 47, II e XIV, e 144 da Constituição do Estado).

3)      Parecer pela procedência da ação direta de inconstitucionalidade.

 

Colendo Órgão Especial,

Senhor Desembargador Relator:

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei Municipal nº 1.853, de 13 de setembro de 2012, de Américo Brasiliense, fruto de iniciativa parlamentar, que “Dispõe sobre a colocação de cavaletes para impedimento do trânsito de veículos nos horários de entrada e saída dos alunos das escolas públicas instaladas no Município”.

Sustenta o requerente a inconstitucionalidade da norma em razão de sua incompatibilidade vertical com nosso sistema constitucional, por ofensa ao princípio da separação de poderes.

Foi deferida a liminar, suspendendo-se a eficácia do ato normativo impugnado (fl. 9).

A Presidência da Câmara Municipal prestou informações (fls. 18/20).

É o relato do essencial.

A Lei Municipal nº 1.853, de 13 de setembro de 2012, de Américo Brasiliense, que “Dispõe sobre a colocação de cavaletes para impedimento do trânsito de veículos nos horários de entrada e saída dos alunos das escolas públicas instaladas no Município”, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. O Departamento de Educação de nossa cidade, em parceria com o Departamento de Trânsito, deverá designar pessoas para que nos momentos de entrada e saída dos alunos das escolas públicas instaladas no município, coloquem cavaletes ou similares, para impedimento do trânsito de veículos na via onde se encontra o portão principal de entrada e saída dos mesmos.

Parágrafo único. As pessoas citadas nesse artigo deverão ser funcionários do estabelecimento de ensino ou do Departamento de Trânsito, conforme for acordado entre ambos, ou designado pelo Executivo do Município.

Art. 2º. Os cavaletes ou similares deverão ser colocados nos cruzamento imediatamente próximos ao portão de que trata o artigo 1º desta lei, no momento imediato antes da saída dos alunos e retirados também dessa forma, quando da dispersão dos mesmos.

Art. 3º. Ficam excetuados nesta lei os veículos que realizam o transporte coletivo dos alunos das respectivas escolas, bem como os veículos de moradores que necessitam transpor esse obstáculo para acessar suas residências.

Art. 4º. O Executivo regulamentará a presente lei no prazo de 60 dias, contados de sua publicação.

Art. 5º. As despesas decorrentes com a execução desta lei correrão por conta do orçamento vigente, suplementadas se necessário.

Art. 6º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

(...)”

O ato normativo em análise viola o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, bem como decorrente do art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.

A questão é objetiva.

A lei municipal hostilizada é fruto de iniciativa parlamentar, e determina a adoção de providências específica – de cunho nitidamente administrativo – no sistema municipal de trânsito, qual seja a colocação de cavaletes para impedimento de trânsito de veículos nos horários de entrada e saída dos alunos das escolas públicas instaladas no município.

Em que pese a boa intenção que certamente animou o Vereador autor do projeto de lei que se converteu no diploma ora questionado, é certo que definir questões de cunho operacional relativamente ao uso de vias públicas e de gestão de tráfego no Município é matéria a cargo do Poder Executivo, ou seja, da Administração Pública.

         Em síntese, cabe nitidamente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema. Aliás, poderia fazê-lo o Prefeito, inclusive, sem a necessidade de edição de lei, mas sim por mero ato administrativo.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II e XIV, e 144 da CE).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, de organização, de direção e de execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Tal afirmação encontra apoio na autorizada doutrina de Hely Lopes Meirelles (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.

Nem se chegaria à conclusão diversa a partir da afirmação, aqui admitida apenas a título de argumentação, de que a lei ora questionada é simples “lei autorizativa”, da qual não resta nenhuma imposição para o administrador público.

Em trabalho, publicado na Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da Instituição Toledo de Ensino (Bauru, n. 29, ago/nov. 2000, pp. 259-267), disponível também na internet (Endereço eletrônico: www.srbarros.com.br), sustenta o Professor Sérgio Resende de Barros:

“(...)

Em 17 de março de 1982 – ainda sob a Constituição (Emenda Constitucional nº 1/69) anterior à atual – o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou representação (nº 993-9) por inconstitucionalidade de uma lei estadual (Lei nº 174, de 8/12/77, do Estado do Rio de Janeiro) que autorizava o Chefe do Poder Executivo a praticar ato que já era de sua competência constitucional privativa. Nesse julgamento, decidiu, textualmente: O só fato de ser autorizativa a lei não modifica o juízo de sua invalidade por falta de legítima iniciativa. Não obstante a clareza do acórdão (Diário da Justiça de 8/10/82, p. 10187, Ementário nº 1.270-1, RTJ 104/46), persistiu por toda a Federação brasileira, nos níveis estadual e municipal, a prática de "leis" autorizativas (...).

 Insistente na prática legislativa brasileira, a "lei" autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de "leis" passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu "lei" autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente. Autorizativa é a "lei" que – por não poder determinar – limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da "lei" começa por uma expressão que se tornou padrão: "Fica o Poder Executivo autorizado a...". O objeto da autorização – por já ser de competência constitucional do Executivo – não poderia ser "determinado", mas é apenas "autorizado" pelo Legislativo. Tais "leis", óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente.

 (...)

 Pelo que, se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei é inconstitucional. Não é só inócua ou rebarbativa. É inconstitucional, porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir, ferindo a Constituição por ele estatuída. O fato de ser mera autorização não elide o efeito de dispor, ainda que de forma não determinativa, sobre matéria de iniciativa alheia aos parlamentares. Vale dizer, a natureza teleológica da lei – o fim: seja determinar, seja autorizar – não inibe o vício de iniciativa. A inocuidade da lei não lhe retira a inconstitucionalidade. A iniciativa da lei, mesmo sendo só para autorizar, invade competência constitucional privativa.

 (...)

A jurisprudência do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo corrobora o entendimento aqui sustentado. Confiram-se, a título de exemplificação, os seguintes precedentes do Col. Órgão Especial: ADI. 0323870-55.2010.8.26.0000, Rel. Barreto Fonseca, j. 3.2.2011; ADI 150.400-0/6-00, Rel. Renato Nalini, j. 12.12.2007.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta de inconstitucionalidade, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 1.853, de 13 de setembro de 2012, de Américo Brasiliense.

São Paulo, 19 de fevereiro de 2013.

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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