Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº. 0222473-79.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Campinas

 

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito.  Lei nº 12.156, de 13 de dezembro de 2004, do Município de Campinas, que “Cria o Programa Municipal de Combate Ao Racismo e o Programa de Ações Afirmativas Para Afrodescendentes da Prefeitura Municipal de Campinas e dá outras providências”. Projeto de autoria de Vereador.  Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo. Violação do princípio da separação dos poderes. Ofensa aos artigos 24, § 2º, ns. 1 e 2; 47, incs. II e XIV; e 144 da Constituição do Estado de São Paulo. Cota destinada aos cargos comissionados: violação ao art. 24, § 2º, ns. 1 e 4 da Constituição Estadual. Legislação sobre norma geral de licitação: violação ao art. 22, XXVII, da Constituição Federal, aplicável ao Município por força do art. 144, da Constituição Estadual. Parecer pela procedência da ação.

 

 

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Campinas, tendo por objeto a Lei nº 12.156, de 13 de dezembro de 2004, daquele Município, que “Cria o Programa Municipal de Combate Ao Racismo e o Programa de Ações Afirmativas Para Afrodescendentes da Prefeitura Municipal de Campinas e dá outras providências”.

O autor noticia que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi sancionado e promulgado pela Prefeita Municipal.

Sustenta que a lei em questão cria órgãos na Administração Pública, além de obrigações para ela, havendo usurpação por parte do Poder Legislativo de atribuições pertinentes a atividades próprias do Poder Executivo e aponta transgressão aos arts. 5º e 144 da Constituição Estadual.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 101/103).

O Presidente da Câmara Municipal deixou transcorrer “in albis” o prazo para informações (fl. 115).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 113/114).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A lei impugnada do Município de Campinas assim dispõe:

Art. 1º - Ficam criados o Programa Municipal de Combate ao Racismo e o Programa de Ações Afirmativas para Afrodescendentes da Prefeitura de Campinas.

Art. 2º - Para os efeitos desta lei consideram-se pessoas afrodescendentes as que se enquadram como negros, pardos ou denominação equivalente, conforme classificação adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

Parágrafo único – A comprovação da origem étnica se dará pela apresentação da certidão de nascimento, estando enquadrados para efeito desta lei.

Art. 3º - Todos os órgãos da administração direta e indireta da Prefeitura do Município de Campinas estão obrigados a ter em seus quadros de cargos em comissão o limite mínimo de 30% de afrodescendentes, sendo 15% das vagas reservadas para homens e 15% para mulheres, obedecidas às percentagens decrescentes ano a ano, conforme o aumento da população.

Parágrafo único – Os percentuais mínimos previstos no "caput" deste artigo aplicam-se aos programas de estágio profissional desenvolvidos pela administração pública direta e indireta.

Art. 4º - Deverá ser observada a cota mínima de atores e modelos afrodescendentes nas peças publicitárias das empresas que participarem de licitações e concorrências promovidas pela Administração Municipal.

Art. 5º - Fica constituído o Grupo de Implementação e Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas da Prefeitura Municipal de Campinas, composto pelos representantes dos seguintes órgãos:

I – 01 (um) Representante da Secretaria Municipal de Governo;

II – 01 (um) Representante da Secretaria de Gestão Pública;

III – 01 (um) Representante da Secretaria de Esporte, Cultura e Lazer;

IV – 01 (um) Representante da Secretaria de Educação;

V – 01 (um) Representante da Secretaria de Serviço Social;

VI – 01 (um) Representante da Secretaria Jurídica e Cidadania;

VII – 01 (um) Representante da Secretaria de Finanças;

VIII – 01 (um) Representante da Coordenadoria da Comunidade Negra;

IX – 01 (um) Representante da Coordenadoria da Mulher e Juventude.

Parágrafo único – O presente grupo será coordenado pelo representante da Coordenadoria Comunidade Negra e pela Coordenadoria da Mulher.

Art. 6º - Compete ao Grupo de Implementação e Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas da Prefeitura Municipal de Campinas.

I - Coordenar as ações relativas à política municipal de combate ao racismo e as práticas resultantes de preconceito de descendência ou origem nacional ou étnica;

II - Participar na implementação, acompanhamento e avaliação de uma política municipal de defesa dos que sofrem preconceito ou discriminação racial ou étnica;

III - Promover as articulações entre as secretarias e as necessárias à implementação de uma política municipal de combate ao racismo e à discriminação racial ou étnica;

IV - Garantir a estrutura física, com recursos e materiais, para o seu perfeito funcionamento;

V - Submeter à apreciação do representante do Poder Executivo Municipal, propostas das medidas complementares, com vistas à adequada execução do programa;

VI - Estabelecer diretrizes e procedimentos administrativos visando garantir a adequada implementação do programa em todos os órgãos municipais e a conseqüente realização das metas respectivas;

VII - Estimular o desenvolvimento de ações de capacitação, qualificação e requalificação do afrodescendentes, sempre tendo como escopo a igualdade e a cidadania plena;

VIII - Trabalhar de forma articulada com os empreendedores sociais e parceiros dos Movimentos Negros/as, através da Coordenadoria da Comunidade Negra, com os movimentos de mulheres em conjunto com a Coordenadoria da Mulher;

IX - Sistematizar os resultados alcançados pelo programa de Ações Afirmativas da Prefeitura Municipal de Campinas e disponibilizá-los através dos meios de comunicação e na rede da Internet.

Art. 7º - O Poder Executivo Municipal devera fomentar a implementação de medidas estabelecidas nos acordos, tratados e convenções internacionais, que tenham o Brasil como signatário, sempre visando a promoção da igualdade de oportunidades para os afrodescendentes e mulheres na cidade de Campinas.

Art. 8º - As despesas decorrentes da execução desta lei correrão por contas dotações orçamentárias próprias suplementadas se necessário.

Art. 9º - O Poder Executivo regulamentará esta lei no prazo de 60 (sessenta) dias, a contar da data de sua publicação.

Art. 10 - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Dita lei é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º; 24, § 2º, ns. 1, 2 e 4; 47, incs. II e XIV; e 144 os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

(...)

Art. 24 – A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 – criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

2 – criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX;”

(...)

4 - servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

(...)

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

(...)

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Como visto, a impugnada norma, além de criar um programa de governo, ainda constitui, em seu art. 5º, o “Grupo de Implementação e Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas da Prefeitura Municipal de Campinas”, determinando sua constituição nos incisos desse mesmo artigo.

Desta forma, gera, ainda, maiores despesas com a implementação de tal programa e contratação de pessoal, o que importa em invasão da seara administrativa.

Nos entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para as atividades de gestão.

Essa repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2.º), preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

A tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange, efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.

Por intermédio da lei em análise, a Câmara criou um programa que visa combater o racismo no âmbito do Município de Campinas, onerando, desta forma, a Administração.   Embora elogiável a preocupação do Legislativo local com o tema, a iniciativa não tem como prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos que são próprios da função executiva.

Por esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, § 1º, II, “e”, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da administração pública e, consequentemente, sobre o seu orçamento. Trata-se de questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado, tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:

“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).

Se a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para os Municípios.

As normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.

Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª ed., pp. 544-545).

Veja-se, outrossim, que o art. 3º da vergastada Lei, ao obrigar a Administração à contratação de pessoal nos moldes que especifica, muito embora também elogiável a preocupação com o respeito à quota destinada aos afrodescendentes e às mulheres, acaba referida norma por violar o disposto no art. 24, § 2º, ns. 1 e 4 da Constituição Bandeirante.

E, finalmente, o art. 4º do mesmo diploma legal, ao ditar norma geral de licitação, acabou por ofender o sistema de competências atribuído pela Constituição Federal, notadamente em face do que determinam os arts. 1°, caput, 22, XXVII, e, consequentemente, os arts. 1° e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior anotam que “o federalismo brasileiro reúne em seu interior quatro entidades federativas – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios -, todas dotadas de autonomia, assim entendida a capacidade de autodeterminação dentro de um rol de competências constitucionalmente definidas”. Consignam, ainda, que “cada uma das esferas federativas possui um rol próprio de competências, que, salvo hipótese de delegação, deve exercer com exclusão das demais” (Curso de Direito Constitucional. 11ª Ed. São Paulo. Saraiva, 2007, p.271-272).

A repartição de competências é a marca indelével da federação, sem a qual não se sustenta sua estrutura, pois, se cada um dos entes federados passar a exercer as competências atribuídas aos demais, haverá um choque de gestão que enfraquecerá até a morte esta forma de Estado.

Para arrematar, lembraríamos as palavras de José Afonso da Silva, para quem “a repartição de competências entre a União e os Estados-membros constitui o fulcro do Estado Federal” (Curso de Direito Constitucional Positivo. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 100-101).

Portanto, ao legislar sobre norma geral relativa à licitação, em desacordo com a privatividade da União estabelecida no art. 24, inc. XXVII, violou o legislador municipal os arts. 1° e 144 da Constituição Paulista, por atentar contra o Estado Federativo brasileiro.

Nota-se, por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com o disposto no artigo 25, da Constituição Bandeirante.

Esse Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que infringem esses comandos:

“LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL” (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 12.156 de 13 de dezembro de 2004, do Município de Campinas.

São Paulo, 02 de abril de 2013.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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