Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0224428-48.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Caraguatatuba

Objeto: Lei nº 2.040, de 15 de agosto de 2012, do Município de Caraguatatuba.

 

Ementa:

1.      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 2.040, de 15 de agosto de 2012, do Município de Caraguatatuba, fruto de iniciativa parlamentar, que “Autoriza o Poder Executivo a fornecer refeição aos funcionários das Unidades Escolares da rede municipal de ensino, no Município”.

2.      Matéria tipicamente administrativa. Iniciativa parlamentar. Invasão da esfera da gestão administrativa, reservada ao Poder Executivo Municipal. Violação ao princípio da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado).

3.      Criação de novas despesas sem a indicação da respectiva fonte específica de receita (art. 25 da Constituição Paulista).

4.      Inconstitucionalidade reconhecida.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Caraguatatuba, tendo por objeto a Lei Municipal nº 2.040, de 15 de agosto de 2012,  fruto de iniciativa parlamentar, que “Autoriza o Poder Executivo a fornecer refeição aos funcionários das Unidades Escolares da rede municipal de ensino, no Município”.

Sustenta o autor que o ato normativo impugnado apresenta vício formal de inconstitucionalidade por disciplinar aspectos intrínsecos ao regime jurídico dos servidores públicos, matéria de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, além de impor prática de verdadeiro ato de gestão ao Poder Executivo. Acrescenta ainda que há violação do princípio da independência e harmonia entre os Poderes e criação de espessa pública sem indicação dos recursos disponíveis. Daí a alegação de violação aos arts. 5º, 24, § 2º, 4, 25, 47, II e XIV, da Constituição Estadual.

O pedido de medida liminar foi deferido para suspender a eficácia da eficácia do ator normativo impugnado (fls. 32/33).

Citado regularmente (fl. 42), o Procurador Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 44/46).

Notificado (fl. 39), o Presidente da Câmara Municipal não prestou informações.

É a síntese do que consta dos autos.

Em que pese a boa intenção que certamente animou a iniciativa parlamentar, o ato normativo impugnado, cujo veto do Executivo foi derrubado pela Câmara Municipal, apresenta vício de inconstitucionalidade formal por violar o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, e art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

Observa-se que a legislação em questão autorizou o Poder Executivo a fornecer refeição aos funcionários das Unidades Escolares da rede municipal de ensino,  providência de cunho tipicamente administrativo.

Desta forma, a lei de iniciativa parlamentar revela-se invasiva da esfera da gestão administrativa, inerente à atividade típica do Poder Executivo. Configura verdadeiro ato administrativo, sendo apenas “formalmente” ato legislativo.

Cabe ressaltar ainda que não é necessário que a lei autorize ou determine ao Poder Executivo fazer aquilo que, naturalmente, encontra-se dentro de sua esfera de decisão e ação.

Em outras palavras, se a lei, fora das hipóteses constitucionalmente previstas, dispõe sobre atividade tipicamente inserida na esfera da Administração Pública, isso significa invasão da esfera de competências do Poder Executivo por ato do Legislativo, configurando-se claramente a violação do princípio da separação de poderes.

Criar determinado programa governamental ou determinar providências singelas inseridas no âmbito da atividade administrativa – precisamente o que se verifica na hipótese em exame - é matéria exclusivamente relacionada à Administração Pública, a cargo do Chefe do Executivo.

E mais: ainda que fosse o ato normativo oriundo de iniciativa do Chefe do Executivo, seria inconstitucional.

A razão é simples: o Chefe do Executivo não necessita de autorização legislativa para fazer aquilo que está na esfera de sua competência constitucional. Se ele encaminha projeto de lei para tal escopo, isso configura hipótese de delegação inversa de poderes, vedada pelo art. 5º, § 1º da Constituição Paulista.

         Em síntese, cabe nitidamente ao administrador público, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar, aqui, o célebre ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei criando ou “autorizando o Poder Executivo a criar” novo programa de governo ou conduta administrativa, disciplinando-os total ou parcialmente, como ocorre, no caso em exame, em função da previsão de refeição aos funcionários das unidades escolares municipais, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, pratica verdadeiros atos de administração, violando a harmonia e a independência que devem existir entre os poderes estatais.

Observa-se que o Poder Legislativo não se limitou a autorizar o fornecimento da refeição aos funcionários, mas, disciplinou-o de forma específica, determinando o tipo de refeição, com previsão de penalidades e atribuindo competências a órgão municipal.

A previsão de benefícios a servidores públicos municipais, com previsão de novas obrigações aos órgãos municipais é atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo.

Esse E. Tribunal de Justiça tem reiteradamente declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme julgados a seguir exemplificativamente indicados: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j. 20.02.2008; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; ADI 12.345-0 - São Paulo - 15.05.91, rel. des. Carlos Ortiz; ADI n. 096.538-0, rel. Viseu Júnior - 12.02.03; ADI n. 123.145-0/9-00, rel. des. Aloísio de Toledo César – 19.04.06; ADI n. 128.082-0/7-00, rel. des. Denser de Sá – 19.07.06; ADI n. 163.546-0/1-00, rel. des. Ivan Sartori, j. 30.7.2008.

Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade e aos limites da adoção da regra da separação.

Essas exceções devem ser interpretadas restritivamente, não admitindo interpretações que signifiquem, na prática, interferência de um poder na esfera de atuação ontologicamente relacionada ao outro.

Não bastasse isso, a lei impugnada cria, evidentemente, novas despesas por parte da Municipalidade, sem que tenha havido a indicação das fontes específicas de receita para tanto e a inclusão do programa na lei orçamentária anual.

Isso implica contrariedade ao disposto no art. 25 e 176, I, da Constituição do Estado de São Paulo.

Nesse sentido, apenas a título de exemplificação, confiram-se os julgados a seguir indicados: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.; ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.; ADI 135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u..

Diante do exposto, o pedido deve ser julgado procedente reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei nº 2.040, de 15 de agosto de 2012, do Município de Caraguatatuba.

 

               São Paulo, 05 de fevereiro de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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