Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº 0229401-46.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Rio Claro

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Rio Claro

                                               

 

 

 

 

                                                Ementa:

 

1) Ação direta de inconstitucionalidade em face da Lei nº 4.404, de 19 de setembro de 2012, do Município de Rio Claro, de iniciativa parlamentar, que deu nova redação aos arts. 5º e 10, da Lei nº 3.548/05 que Dispõe sobre a regulamentação do sistema de estacionamento rotativo pago, na vias e logradouros público do município.

2) É inconstitucional lei local, de iniciativa parlamentar, que alterando a legislação municipal, que disciplina o uso privativo de bem público de uso comum do povo consistente no estacionamento regulamentado, modifica o período de gratuidade e de tolerância para a aquisição do respectivo cartão, por situar-se a matéria no âmbito da reserva de administração decorrente do princípio da separação de poderes, ao refletir o exercício da gestão administrativo-patrimonial sobre a utilização privativa de bens públicos de uso comum do povo.

3) Violação ao princípio da separação de poderes (arts. 5º, 47, II e XIV, e 144 da Constituição do Estado).

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente:

           

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito do Município de Rio Claro, que visa à declaração de inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 4.404, de 19 de setembro de 2012, que deu nova redação aos arts. 5º e 10, da Lei nº 3.548/05 que “Dispõe sobre a regulamentação do sistema de estacionamento rotativo pago, nas vias e logradouros públicos do município”.

Sustenta a autora que a lei afronta os arts. 5º, 25, 47, II e XIV, e 144, da Constituição Estadual, por conter vício de iniciativa, uma vez que representa ato de gestão administrativa de atribuição exclusiva do Prefeito Municipal, afrontando o princípio da independência e da harmonia entre os poderes, importando, ainda, em interferência na arrecadação municipal atingindo o planejamento orçamentário.

Foi concedida a liminar para a suspensão da eficácia dos dispositivos legais impugnados (fls. 61/66).

Notificado a fl. 74, o Presidente da Câmara Municipal prestou informações defendendo a constitucionalidade dos atos normativos impugnados (fls. 77/84).

Citado para os fins do art. 90, § 2º, da Constituição do Estado de São Paulo (fl. 99), o Procurador-Geral do Estado manifestou não haver interesse na defesa do ato impugnado por tratar de matéria exclusivamente local (fls. 101/102).

É a síntese do que consta nos autos.

O pedido deve ser julgado procedente.

O ato normativo ora impugnado viola o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, e art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.

O uso privativo de bem público, com prerrogativa de exploração, como é o estacionamento rotativo, por tempo limitado, em vias e logradouros públicos, é típico ato de polícia administrativa, e a lei disciplina a fruição desses bens.

O estacionamento remunerado rotativo em vias e logradouros públicos reflete o exercício da gestão administrativo patrimonial sobre a utilização privativa de bens públicos de uso comum do povo. E sob este ângulo, denota-se a violação ao princípio da separação dos poderes pela usurpação da reserva da administração, perceptível dos incisos II e XIV do art. 47 c.c. o art. 5º, da Constituição Estadual, aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144 da mesma Carta.

Assim, quando o Poder Legislativo edita uma lei estabelecendo regras disciplinando tempo de gratuidade e de tolerância para estacionamento em vias públicas, como ocorre, no caso em exame, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público. Desta forma,  viola o princípio da separação de poderes.

As regras de trânsito no âmbito municipal, no que se refere à definição das mãos de direção, dos locais onde se permite estacionar, implantação de semáforos, limitação de velocidade, restrição de circulação etc, atendidas as regras gerais do Código de Trânsito Brasileiro, encontram-se na gestão administrativa da cidade, privativa do Chefe Poder Executivo.

Nos termos do art. 21, II, do Código de Trânsito Brasileiro, compete aos órgãos e entidades executivos rodoviários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição, planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos, de pedestres e de animais, e promover o desenvolvimento da circulação e da segurança de ciclistas;

Regulamentar e operar o trânsito de veículos implica em disciplinar os locais, tipo de estacionamento, horários e dias, pois de acordo com o Código de Trânsito Brasileiro “considera-se trânsito a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga¨( § 1º, art. 1º).

De outro lado, a atividade de regulamentação da via  definida no Código de Trânsito Brasileiro (Anexo I -  Dos conceitos e definições) como “implantação de sinalização de regulamentação pelo órgão ou entidade competente com circunscrição sobre a via, definindo, entre outros, sentido de direção, tipo de estacionamento, horários e dias” cabe ao órgão executivo de trânsito.

Neste sentido, dispõe o Código de Trânsito Brasileiro ao estabelecer que:

“Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:

(...)

 X - implantar, manter e operar sistema de estacionamento rotativo pago nas vias;”

Evidente que se trata de atribuição conferida a órgão do Poder Executivo, pela própria dicção do termo utilizado “órgão executivo de trânsito”, portanto, inviável sua regulamentação por iniciativa do Poder Legislativo .

A regulamentação do trânsito no Município é atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos direitos fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo e em geral prescinde de lei.

Os problemas decorrentes do trânsito nas cidades exigem estudo e planejamento para a adequada solução dos transtornos que podem provocar aos munícipes, sendo atividades relacionadas à gestão administrativa.

Por este motivo, cabe essencialmente ao Poder Executivo, e não ao Poder Legislativo, deliberar a respeito da conveniência e da oportunidade de conferir a gratuidade e a tolerância para estacionamento em locais restritos e sujeitos a pagamento. Trata-se de atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II e XIV, e 144 da CE).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, de organização, de direção e de execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, pois envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo, no caso em análise representados pelo estabelecimento de regras de trânsito referentes a estacionamento. A atuação legislativa impugnada, equivale à prática de ato de administração, de sorte a violar a garantia constitucional da separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

A importância da reserva da administração é bem aquilatada pelo Supremo Tribunal Federal:

 “RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

Em caso similar, este egrégio Órgão Especial declarou a inconstitucionalidade de lei de iniciativa parlamentar:

 

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei Municipal n° 7.192 de 17/11/2008, de Jundiaí, de iniciativa de vereador, vetada pelo Prefeito, cujo veto foi rejeitado pela Câmara Municipal, sendo promulgada pelo Presidente desta - Alegação de inconstitucionalidade por violação do principio da independência dos Poderes (artigo 5º, caput, da Constituição Estadual) – Alegação procedente porque a lei disciplina como a responsabilização de empresa operadora de estacionamento rotativo de veículos - Matéria típica de Administração de competência exclusiva do Prefeito – Ação procedente” (TJSP, ADI 176.012-0/5-00, Rel. Des. Antonio C. Malheiros, v.u., 22-09-2009).

Acoimada de vício de inconstitucionalidade a lei local contestada, por configurar intromissão indevida do Poder Legislativo na esfera de competência privativa do Poder Executivo, o que evidencia afronta ao princípio de separação de poderes.

Neste sentido, já decidiu este egrégio Tribunal de Justiça que:

“(...) a regulamentação do estacionamento na via pública é consequência natural dessa administração, constituindo matéria de exclusiva atribuição do Prefeito, não cabendo à Câmara Municipal dizer que os integrantes desta ou daquela categoria profissional devem estacionar seus veículos aqui ou acolá. É matéria de execução e não de legislação. No que diz respeito à isenção de pagamento nas ‘Zonas Azuis’, também fica caracterizada a invasão na esfera de poder do Executivo. As ‘Zonas Azuis’ produzem receita que ingressa no orçamento municipal. Leis que afetam a produção da receita são de iniciativa do Prefeito” (Arguição de Inconstitucionalidade de Lei na Apelação Cível 30.581-0/5, São Paulo, Órgão Especial, Rel. Des. Barbosa Pereira, v.u., 10-04-1996).

Importante apontar, também, que a inconstitucionalidade não decorre de afronta ao art. 25 da Constituição Estadual. Uma vez que a lei contestada não cria obrigação nova ao poder público. Ainda, a eventual geração de despesas ou a diminuição de arrecadação dependeria de exame de fato e de prova, insuscetível na via estreita do controle concentrado de constitucionalidade.

 Diante do exposto, o pedido deve ser julgado procedente reconhecendo-se a inconstitucionalidade Lei nº 4.404, de 19 de setembro de 2012, do Município de Rio Claro, que deu nova redação aos arts. 5º e 10, da Lei nº 3.548/05.

São Paulo, 18 de fevereiro de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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