Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Processo nº. 0229449-05.20128.26.0000

Requerente: Prefeita do Município de Registro

 

 

Ementa: 1) Na ação direta de inconstitucionalidade, legitimado ativo é o Prefeito do Município (art. 90, II, CE) e considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de, no mínimo, subscrição conjunta da petição inicial e consequente inadmissibilidade da forma isolada, tão somente pelo procurador, sem poderes especiais. 2) Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeita.  Decreto Legislativo Municipal de Registo nº 074 de 29 de maio de 2012, que “SUSTA OS EFEITOS DO DECRETO EXECUTIVO Nº 1.580 DE 09 DE MARÇO DE 2012”. Alegada violação do princípio da separação dos poderes. Decreto Legislativo editado com base no art. 20, IX, da Constituição do Estado de São Paulo. Inconstitucionalidade não verificada.  Parecer pela improcedência da ação.

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pela Prefeita Municipal de Registro, tendo por objeto o Decreto Legislativo nº 074 de 29 de maio de 2012, que “SUSTA OS EFEITOS DO DECRETO EXECUTIVO Nº 1.580 DE 09 DE MARÇO DE 2012”.

Alega a autora que “O Decreto Legislativo 074/12, que tem o intuito de sustar efeitos de Decreto Executivo, padece forçosamente de vício formal de inconstitucionalidade, haja vista a não observância de pressuposto fundamental à sua formação, qual seja, a iniciativa reservada, pois, compete ao Chefe do Poder Executivo Local a iniciativa dos Decretos referentes à sua organização administrativa, e da forma que se impõe constitui afronta ao artigo 5º, § 1º da Carta Magna Paulista .....”

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fl. 27).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações (fls. 34/39), em defesa da constitucionalidade da norma.

A Procuradoria-Geral do Estado não foi citada.

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Preliminarmente, observo que a petição inicial é subscrita apenas pelos doutos advogados constituídos (fl. 14), acompanhada de instrumento de mandato, sem poderes especiais para a propositura da presente ação (fls. 15 e vº).

A legitimidade ativa pertence à Prefeita do Município (art. 90, II, Constituição Estadual), bem como a capacidade postulatória, como decidido pelo Supremo Tribunal Federal:

“O Governador do Estado de Pernambuco ajuíza ação direta de inconstitucionalidade, na qual alega que a decisão 123/98 do Tribunal de Contas da União, ao exigir autorização prévia e individual do Senado Federal para as operações de crédito entre os Estados e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, teria afrontado as disposições dos artigos 1º e 52, incisos V e VII, da Constituição Federal.

 2. Entende possuir legitimidade para a ação, em face dos reflexos do ato impugnado sobre o Estado.

3. É a síntese do necessário.

4. Decido.

5. Verifico que a ação, embora aparentemente proposta pelo Chefe do Poder Executivo estadual, está apenas assinada pelo Procurador-Geral do Estado. De plano, resulta claro que o signatário da inicial atuou na estrita condição de representante legal do ente federado (CPC, artigo 12, I), e não do Governador, pessoas que não se confundem.

6. A medida constitucional utilizada revela instituto de natureza excepcional, em que se pede ao Supremo Tribunal Federal que examine a lei ou ato normativo federal ou estadual, em tese, para que se proceda ao controle normativo abstrato do ato impugnado em face da Constituição.

7. Com efeito, cuida ela de processo objetivo sujeito à disciplina processual própria, traçada pela Carta Federal e pela legislação específica - Lei 9.896/99. Inaplicáveis, assim, as regras instrumentais destinadas aos procedimentos de natureza subjetiva.

8. O Governador de Estado é detentor de capacidade postulatória intuitu personae para propor ação direta, segundo a definição prevista no artigo 103 da Constituição Federal. A legitimação é, assim, destinada exclusivamente à pessoa do Chefe do Poder Executivo estadual, e não ao Estado enquanto pessoa jurídica de direito público interno, que sequer pode intervir em feitos da espécie (ADI(AgRg)1.797-PE, DJ de 23.2.01; ADI (AgRg) 2.130-SC, Celso de Mello, j. de 3.10.01, Informativo 244; ADI (EMBS.) 1.105-DF, Maurício Corrêa, j. de 23.8.01).

9. Por essa razão, inclusive, reconhece-se à referida autoridade, independentemente de sua formação, aptidão processual plena ordinariamente destinada apenas aos advogados (ADIMC 127-AL, Celso de Mello, DJ 04.12.92), constituindo-se verdadeira hipótese excepcional de jus postulandi.

 10. No caso concreto, em que pese a invocação do nome do Governador como sendo autor da ação (fl.2), a alegada representação pelo signatário não restou demonstrada. Indiscutível, é que a medida foi efetivamente ajuizada pelo Estado, na pessoa de seu Procurador-Geral, que nesta condição assinou a peça inicial.

 11. Ante essas circunstâncias, com fundamento no artigo 21, § 1º do RISTF, bem como nos artigos 3º, parágrafo único e 4º da Lei 9.868/99, não conheço da ação” (STF, ADI 1814-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 13-11-2001, DJ 12-12-2001, p. 40).

Consoante explica a doutrina, “os legitimados para a ação direta referidos nos itens I a VII do art. 103 da CF dispõem de capacidade postulatória plena, podendo atuar no âmbito da ação direta sem o concurso de advogado” (Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes. Controle concentrado de constitucionalidade, São Paulo: Saraiva, 2007, 2ª ed., p. 246).

Logo, considerando a envergadura política dessa legitimidade ativa ad causam, englobante da capacidade postulatória, é razoável assentar que, embora dispensável a representação por causídico, sua existência, todavia, importa a necessidade de, no mínimo, subscrição conjunta da petição inicial e consequente inadmissibilidade da forma isolada, tão somente pelo procurador.

Ademais, há decisão registrando que:

“É de exigir-se, em ação direta de inconstitucionalidade, a apresentação, pelo proponente, de instrumento de procuração ao advogado subscritor da inicial, com poderes específicos para atacar a norma impugnada” (STF, ADI-QO 2187-BA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Octavio Gallotti, 24-05-2000, m.v., DJ 12-12-2003, p. 62).

Assim sendo, opino, preliminarmente, pela intimação do autor para regularização e subscrição da petição inicial, no prazo legal, sob pena de indeferimento, aviando, desde já, nas hipóteses de inércia ou recusa, a extinção sem resolução do mérito, conforme já decidido por este colendo Órgão Especial (ADI 0030396-43.2012.8.26.0000, Rel. Des. Guerrieri Rezende, v.u., 17-10-2012).

Ainda preliminarmente, requer-se a citação do Senhor Procurador-Geral do Estado, a fim de defender o ato normativo impugnado, nos termos do art. 90 §2º da Constituição Estadual.

No mérito, a ação é improcedente.

O impugnado Decreto Legislativo de Registro assim dispõe:

Artigo 1º - Ficam sustados os efeitos do Decreto Executivo nº 1.580 de 09 de março de 2012, que dispõe sobre a distribuição de honorários advocatícios aos integrantes da Secretaria de Assuntos Jurídicos da Prefeitura Municipal de Registro.

Artigo 2º - Fica proibida a distribuição de honorários advocatícios de sucumbência aos integrantes da Secretaria de Assuntos Jurídicos até que lei municipal discipline a matéria, sob pena de responsabilidade administrativa de todos os agentes públicos envolvidos.

Artigo 3º - Este Decreto Legislativo entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

Por sua vez, o Decreto nº 1.580 de 09 de março de 2011, no que interessa, reza:

         “Art. 1º Fica regulamentado o rateio dos honorários advocatícios decorrentes da sucumbência, auferido nas ações judiciais em que seja parte o Município de Registro e a cargo do departamento Municipal de Assuntos Jurídicos.

         Art. 2º Os honorários advocatícios devidos a Fazenda Municipal serão distribuídos igualitariamente aos advogados integrantes no Departamento Municipal de Assuntos Jurídicos, de forma proporcional a jornada de trabalho.

§ 1º. Farão jus, igualmente, a distribuição de honorários advocatícios o Diretor do Departamento Municipal de Assuntos Jurídicos, Chefe de Divisão Técnica Jurídico Fiscal, Chefe de Divisão Técnica de Consultoria Jurídica e o advogado municipal efetivo lotado no Departamento Municipal de Assuntos Jurídico;

§ 2º. Na hipótese de nomeação de advogado efetivo a cargo em comissão ou cargo de confiança para exercer funções que não sejam inerentes as atribuições do Departamento Municipal de Assuntos Jurídicos ou na hipótese de cessão do servidor a órgão diverso da administração direta ou indireta, o mesmo não terá direito ao rateio dos honorários enquanto perdurar a situação;”

Pois bem. É consabido que a competência da Câmara Municipal encontra parâmetro no texto da Carta Paulista, para edição de diploma dessa natureza. Segundo o art. 20, inciso IX, da Constituição do Estado de São Paulo, compete exclusivamente a Assembleia Legislativa sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar. Portanto, é de exclusiva atribuição da Câmara Municipal sustar atos do Executivo que extrapolem a competência deste. E a providência é feita através de decreto legislativo, que “...é a deliberação do plenário sobre matéria de sua exclusiva competência e apreciação político-administrativa, promulgada pelo presidente da Mesa, para operar seus principais efeitos fora da Câmara. (...) O decreto legislativo não é lei, nem ato simplesmente administrativo; é deliberação legislativa de natureza político-administrativa de efeitos externos e impositivos para seus destinatários. Não é lei porque lhe faltam a normatividade e generalidade da deliberação do Legislativo sancionada pelo Executivo; não é ato simplesmente administrativo  porque provém de uma apreciação política e soberana do plenário na aprovação da respectiva proposição.  Daí por que só deve ser utilizado para consubstanciar as deliberações do  plenário sobre assuntos  de interesse geral do Município mas dependentes do pronunciamento político do Legislativo, ainda que sobre matéria de administração do Executivo, ou concernente a seus dirigentes.[1]

Depreende-se, assim, que em princípio, a intervenção do Legislativo no ato do Executivo se mostra possível. Resta, contudo, verificar se o ato regulamentar, por se mostrar exorbitante, sujeitava-se à suspensão ditada pelo Legislativo, e se este também não extrapolou na providência tomada.

Em primeiro plano, não se olvide que o Decreto nº 1.580 de 09 de março de 2011, visa à regulamentação da “distribuição de honorários advocatícios aos integrantes do Departamento Jurídico do Município de Registro”. E que esta verba vem fazer parte da remuneração paga a estes profissionais, que pertencem aos quadros dos servidores públicos municipais. Nesse passo, não se pode perder de vista o disposto no art. 24, § 2º, da Constituição Estadual, que prevê:

“Artigo 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
§1º - Compete, exclusivamente, à Assembleia Legislativa a iniciativa das leis que disponham sobre:
1 - criação, incorporação, fusão e desmembramento de Municípios;
2 - regras de criação, organização e supressão de distritos nos Municípios. (NR)
- Redação dada pela Emenda Constitucional nº 2, de 21/2/1995.
3 - subsídios do Governador, do Vice-Governador e dos Secretários de Estado, observado o que dispõem os arts. 37, XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I, da Constituição Federal. (NR)
- Item acrescentado pela Emenda Constitucional nº 21, de 14/2/2006.
4 - declaração de utilidade pública de entidades de direito privado. (NR)
- Item acrescentado pela Emenda Constitucional nº 24, de 23/1/2008.
§2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:
1 - criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;  g.n.

(...)

Desta forma, a fixação ou alteração da remuneração lato sensu dos servidores públicos está sujeita ao princípio da legalidade, indicativo da reserva absoluta de lei (lei em sentido formal), como consta também do art. 37, X, da Constituição Federal.

Neste sentido, já pronunciou a Suprema Corte:

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO: REMUNERAÇÃO: RESERVA DE LEI. CF, ART. 37, X; ART. 51, XIII. ATO CONJUNTO Nº 01, DE 05.11.2004, DAS MESAS DO SENADO FEDERAL E DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. I. Em tema de remuneração dos servidores públicos, estabelece a Constituição o princípio da reserva de lei. É dizer, em tema de remuneração dos servidores públicos, nada será feito senão mediante lei, lei específica. CF, art. 37, X, art. 51, IV, art. 52, XIII. II. – Inconstitucionalidade formal do Ato conjunto nº 01, de 05.11.2004, das Mesas do Senado e da Câmara dos Deputados. Cautelar deferida” (RTJ 192/901

Assim, na medida em que o Decreto do Chefe do Poder Executivo tratou de matéria sujeita à reserva legal, sujeitou-se ao controle do Poder Legislativo, nos termos do art. 20, IX, da Constituição Bandeirante “in verbis”:

“Artigo 20 - Compete exclusivamente à Assembléia Legislativa:
I - eleger a Mesa e constituir as comissões;
II - elaborar seu Regimento Interno;
III- dispor sobre a organização de sua Secretaria, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços e a iniciativa de lei para fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias; (NR)
- Redação dada pela Emenda Constitucional nº 21, de 14/2/2006.
IV - dar posse ao Governador e ao Vice-Governador eleitos e conceder-lhes licença para ausentar-se do Estado, por mais de quinze dias;
V - apresentar projeto de lei para fixar, para cada exercício financeiro, os subsídios do Governador, do Vice-Governador, dos Secretários de Estado e dos Deputados Estaduais; (NR)
- Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 8/4/2005.
VI - tomar e julgar, anualmente, as contas prestadas pela Mesa da Assembléia Legislativa, pelo Governador e pelo Presidente do Tribunal de Justiça, respectivamente do Poder Legislativo, do Poder Executivo e do Poder Judiciário, e apreciar os relatórios sobre a execução dos Planos de Governo;
VII - decidir, quando for o caso, sobre intervenção estadual em Município;
VIII - autorizar o Governador a efetuar ou contrair empréstimos, salvo com Município do Estado, suas entidades descentralizadas e órgãos ou entidades federais;
IX - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar;

 

Ora, o Poder Executivo exorbitou, sem sombra de dúvida, o seu poder regulamentar ao editar Decreto para substituir regulamentação que só poderia advir através de específica Lei (princípio da reserva legal). Sobrepôs-se, desta forma, ao próprio Poder Legislativo, a quem cumpre a elaboração de Leis.

Como consequência, o impugnado Decreto Legislativo nº 074, de 29 de maio de 2012, que sustou o Decreto nº 1.580, de 09 de março de 2012, encontra-se coroado de estrita legalidade e constitucionalidade, eis que dentro dos exatos parâmetros traçados pelo art. 20, inc. IX da Carta Bandeirante.

Impende, ainda, esclarecer que os regulamentos são comumente classificados em regulamentos jurídicos e regulamentos normativos. Os primeiros referem-se às relações de supremacia geral (unem a Administração Estado a qualquer cidadão, todo cidadão está sujeito ao poder de polícia, matéria tributária etc.), enquanto os segundos, ou são de caráter orgânico, ou se referem aos administrados, dizem com relações de supremacia especial (relação com uma 'classe' de administrados, muito mais intensa que os anteriores; p. ex. os sujeitos à prestação de serviço militar, os que estão internados em hospital público, a prestação de trabalho por funcionário público etc). Entende-se que o poder regulamentar somente existe em âmbito interno da Administração, e que somente derivadamente se alastra a quem está sem situação de sujeição especial.

Há também - e nos interessam de perto - os regulamentos executivos, que são aqueles que explicitam o que vem exposto nas leis, sempre que estas tragam simplesmente princípios básicos e genéricos. O tecnicismo atual impede que as câmaras legislativas possam editar leis que cheguem aos detalhes, campo, pois, próprio destes regulamentos. Quanto aos regulamentos independentes, que existem sem lei anterior, somente se pode admitir na matéria organizativa e, quando muito, nas questões de sujeição especial, desde que não firam direitos individuais dos interessados (Carl Brent Swisher – The Post-war Constitution – in Gaspar G. Bacon – Lectures on the Constitution of the United States – 1953 – p.317).

Por outro lado, o controle de legalidade da Administração - diz Bachof - significa um controle, ao mesmo tempo, de constitucionalidade da Administração. Isso quer dizer que também se controla a Administração no que concerne aos valores constitucionais. Sobre não bastar um controle de constitucionalidade das leis, no caso, a Administração também se vê diretamente confrontada pela Constituição sem poder escudar-se na lei ordinária nessa ampla zona em que é abandonada às suas próprias decisões – sob a denominação de discricionariedade e complementação de conceitos indeterminados. De nada adianta o administrador afirmar que a liberdade foi-lhe atribuída pela lei, quando o juiz poderá objetar que, ainda que tenha ficado nos limites da lei, não observou os preceitos constitucionais limitadores de todo o arbítrio (Otto Bachof, Jueces y constitución, p.42).

Mas claro que há limites ao poder regulamentar da Administração (Executivo).  O primeiro dos limites - formal - é a competência de quem edita o regulamento. Outro limite formal, importantíssimo, é o respeito à hierarquia normativa. O ordenamento jurídico é hierarquizado sendo que a Constituição encontra-se em seu ápice.  Obviamente deve o regulamento estar de acordo com as normas superiores: Constituição e lei.

No caso, temos regulamento (decreto regulamentar) expedido para a 'fiel observância das leis', ou seja, regulamento executivo.  A doutrina pátria, em sua maioria, rejeita a existência de outro tipo de regulamento em nosso ordenamento. Assim, os regulamentos executivos devem seguir fielmente o ato legislativo que explicitam, estando presos ao texto legal inarredavelmente. Serão ilegais se extravasarem ou contrariarem o ato legislativo.

Como lembra VICENTE RÁO: 'Ao exercer a função de regulamentar, não deve pois, o Executivo criar direitos ou obrigações novas, que a lei não criou; ampliar, restringir ou modificar direitos ou obrigações constantes da lei; ordenar ou proibir o que a lei não ordena  ou não proíbe, facultar ou vedar de modo diverso do estabelecido em lei, extinguir ou anular direitos ou obrigações que a lei conferiu, criar princípios novos, diversos, alterar a forma que, segundo a lei, deve revestir um ato, atingir, atingindo por qualquer modo, o espírito da lei’(‘O Direito e a Vida dos Direitos’, v. 1, RT, 3ª edição, p.273).

A lição do ilustre jurista pátrio é consentânea com a de MARCELLO CAETANO, para quem '...em sentido material o regulamento tem afinidades com a lei, em virtude de sua generalidade, pois os regulamentos possuem sempre caráter genérico. Mas distingue-se dela por faltar novidade, visto suas normas serem, pelo que toca a limitação de direitos individuais, simples desenvolvimento ou aplicação de outras normas, essas inovadoras' (Manual de Direito Administrativo, Almedina, Coimbra, vol.1, p.97, 1990).

Outra não é a lição de CANOTILHO (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p.809 e ss, Almedina, 4ª ed.), verbis: "...para restringir o amplo grau de liberdade de conformação normativa da administração, pouco compatível com um Estado de direito democrático, a CRP utilizou três instrumentos:

(l) a reserva de lei (= reserva constitucional de lei = reserva horizontal de lei = reserva formal de lei) através da qual a Constituição reserva à lei a regulamentação de certas matérias;

(2) congelamento do grau hierárquico, dado que, de acordo com este princípio, regulada por lei uma determinada matéria, o grau hierárquico da mesma fica congelado e só uma outra lei poderá incidir sobre o mesmo objecto (cfr. art. 112.°/6);

(3) precedência da lei ou  primariedade da   lei (= reserva vertical de lei), pois não existe exercício de poder regulamentar sem fundamento numa lei prévia anterior (art. 112.°/8)'

Ademais, como decorrência, prossegue o autor lusitano lembrando o '...princípio da complementaridade ou acessoriedade dos regulamentos. O regulamento é sempre um acto normativo da administração sujeito a lei, complementar da lei. O sentido da complementaridade dos regulamentos não é o de a CRP (cfr. art. 199) legitimar apenas os regulamentos de execução (regulamentos necessários para as leis serem convenientemente executadas e que a administração deve editar por iniciativa própria). Abrangem-se também os regulamentos complementares (...) Ademais, existe também no ordenamento o princípio do congelamento do grau hierárquico. Quando uma matéria tiver sido regulada por acto legislativo, o grau jurídico desta regulamentação fica congelado, e só um outro acto legislativo poderá incidir sobre a mesma matéria, interpretando, alterando, revogando ou integrando a lei anterior. Os princípios da tipicidade e da preeminência da lei justificam logicamente o princípio do congelamento do grau hierárquico: uma norma legislativa nova, substitutiva, modificativa ou revogatória de outra, deve  uma hierarquia normativa pelo menos igual à da norma que se pretende alterar, revogar, modificar ou substituir.'

KONRAD HESSE de modo escorreito ('Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha', Sergio Antonio Fabris ed., p. 386, 1998, Porto Alegre), tem lição idêntica: "O conhecimento da função da legislação no quadro da ordem democrática e estatal-jurídica da Lei Fundamental deixa, mesmo tempo, aparecer mais claramente as bases e o significado dos institutos da primazia e da reserva da lei. A lei tem, segundo o artigo 20 da Lei Fundamental, primazia sobre todos os atos estatais restantes, porque ela se realizou sobre a base da legitimação democrática direta e em formas democráticas de formação de vontade política e porque sua primazia é pressuposto de seu efeito racionalizador assegurador da liberdade. A reserva (geral) da lei é uma reserva da decisão de questões fundamentais acessíveis a uma normalização no procedimento legislativo pelo legislador."

Não por acaso, PAOLO BARILE chama os regulamentos de  normação  sub-primária, sendo a lei a norma primária por excelência ('Istituzioni Di Diritto Pubblico', p. 402,  1998, 8.ª ed., CEDAM).  E classifica de 'maior' o indirizzo político advindo da lei e de 'menor'  o indirizzo político advindo  da função administrativa.

No caso em tela, constata-se que o regulamento extravasa os ditames legais, posto que pretende regulamentar Lei Federal (Estatuto da Advocacia), que não lhe deferiu tal encargo, suprimindo Lei Municipal, necessária para a regência da matéria, tendo-se em vista o já estudado princípio da reserva legal.

Opino, pois, pelas regularizações aventadas nas preliminares arguidas e, no mérito, pela improcedência da ação.

São Paulo, 5 de fevereiro de 2013.

 

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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[1] Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 6ª edição, Malheiros Editores, pág.482