Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0230668-53.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Taubaté

Objeto: Lei nº 4.654, de 22 de junho de 2012, do Município de Taubaté.

 

Ementa:

 

1.      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 4.654, de 22 de junho de 2012, do Município de Taubaté que “Cria o Plano de Metas no Município de Taubaté”.

2.      A prestação de contas dos atos de gestão se insere no dever genérico do Chefe do Executivo. Ato discricionário e sujeito à vontade política do governante.

3.      Extrapola a função legislativa deliberar em caráter administrativo impondo ao Prefeito a obrigação de apresentar Plano de Metas a ser submetido ao conhecimento e debate público, com a publicação de indicadores de desempenho.

4.      Matéria tipicamente administrativa. Iniciativa parlamentar. Invasão da esfera da gestão administrativa, reservada ao Poder Executivo Municipal. Violação ao princípio da separação de poderes (arts. 5º, 47, II e XIV, e 144 da Constituição do Estado).

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Taubaté, tendo por objeto a Lei nº 4.654, de 22 de junho de 2012, que “Cria o Plano de Metas no Município de Taubaté”.

Sustenta o autor que o ato normativo impugnado é inconstitucional porque invadiu a esfera da gestão administrativa ao impor ao Executivo um segundo mecanismo de prestação de contas da administração. Afirma, ainda, que o ato normativo demandará expressivos custos, sem indicação da fonte de recursos, com a divulgação do Programa de Metas por meio eletrônico, pelas mídias impressa, radiofônica e televisiva; a publicação no Diário Oficial do Município; a promoção de debate público, mediante audiências publicas gerais, temáticas e regionais; e a divulgação de relatórios semestrais e anuais dos indicadores de desempenho. Daí a alegação de violação dos arts. 5º, 25 e 47, II e XIV, da Constituição Estadual.

Foi deferida a liminar para a suspensão da eficácia do ato normativo impugnado até o final julgamento (fls. 30/32).

Citado regularmente à fl. 40, o Procurador Geral do Estado declinou de se manifestar sob o fundamento de que se trata de matéria exclusivamente local (fls. 43/44).

Notificado (fl. 41), o Presidente da Câmara Municipal sustentou a constitucionalidade do ato normativo impugnado (fls. 46/52) .

É a síntese do que consta dos autos.

O ato normativo impugnado, fruto de emenda parlamentar, cujo veto do Executivo foi derrubado pela Câmara Municipal, tem a seguinte redação:

“LEI Nº 4.654, DE 22 DE JUNHO DE 2012.

Projeto de lei de autoria do Vereador Jeferson Campos

Cria o Plano de Metas no Município de Taubaté.

A CÂMARA MUNICIPAL DE TAUBATÉ aprova e eu promulgo a seguinte Lei, nos termos do § 2º do artigo 37 da Lei Orgânica do Município de Taubaté:

Art. 1º O Prefeito, eleito ou reeleito, apresentará o Plano de Metas de sua gestão, até noventa dias após sua posse. O Plano conterá prioritariamente as ações estratégicas, os indicadores e metas quantitativas para cada um dos setores da Administração Pública Municipal e Distrito da cidade, observando, no mínimo, as diretrizes de sua campanha eleitoral e os objetivos, as diretrizes, as ações estratégicas e as demais normas da lei do Plano Diretor.

Art. 2º O Plano de Metas será amplamente divulgado, por meio eletrônico, pela mídia impressa, radiofônica e televisiva e publicado no Diário Oficial do Município no dia imediatamente seguinte ao do término do prazo estipulado no art. 1º.

Art. 3º O Poder Executivo promoverá, dentro de trinta dias após o término do prazo a que se refere o art. 1º, o debate público sobre o Plano de Metas mediante audiências públicas gerais, temáticas e regionais, inclusive no Distrito de Quiririm.

Art. 4º O Poder Executivo divulgará semestralmente os indicadores de desempenho relativos à execução dos diversos itens do Plano de Metas.

Art. 5º O Prefeito poderá proceder a alterações programáticas no Plano de Metas sempre em conformidade com a lei do Plano Diretor, justificando-as por escrito e divulgando--as amplamente pelos meios de comunicação previstos no art. 2º.

Art. 6º Os indicadores de desempenho serão elaborados e fixados conforme os seguintes critérios:

I - promoção do desenvolvimento ambientalmente, socialmente e economicamente sustentável;

II - inclusão social, com redução das desigualdades regionais e sociais;

III - atendimento das funções sociais da cidade com melhoria da qualidade de vida urbana;

IV - promoção do cumprimento da função social da propriedade;

V - promoção e defesa dos direitos fundamentais individuais e sociais da pessoa;

 VI - promoção de meio ambiente ecologicamente equilibrado e combate à poluição sob todas as suas formas;

VII - universalização do atendimento dos serviços públicos municipais com observância das condições de regularidade; continuidade; eficiência, rapidez e cortesia no atendimento ao cidadão; segurança; atualidade com as melhores técnicas, métodos, processos e equipamentos; e modicidade das tarifas e preços públicos que considerem diferentemente as condições econômicas da população.

Art. 7º Ao final de cada ano, o Prefeito divulgará o relatório da execução do Plano de Metas, o qual será disponibilizado integralmente pelos meios de comunicação previstos no art. 2º.

Art. 8º O não cumprimento do Plano de Metas, sem justificação, torna o titular do mandato inelegível.

Art. 9º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”

Em que pese a boa intenção estampada na propositura legislativa que culminou se transformando na lei impugnada nesta ação, o ato normativo é verticalmente incompatível com a nossa sistemática constitucional por violar o princípio da separação de poderes, previsto nos arts. 5º, e 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.

De outro lado, há também violação do art. 25 da Constituição do Estado, por implicar aumento de despesa pública sem a indicação dos recursos disponíveis.

O processo legislativo, compreendido o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e harmonia dos Poderes.

O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República, conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo, difuso ou concentrado por parte do Poder Judiciário.

A iniciativa, ato que deflagra o processo legislativo, pode ser geral ou reservada (ou privativa).

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, criou, no Município de Taubaté, obrigatoriedade ao Prefeito Municipal de apresentar plano de metas de sua gestão até 90 dias após sua posse, com previsão de sua publicação, debates públicos, divulgação semestral dos indicadores de desempenho e divulgação e publicação anual do relatório de execução do plano.

Trata-se de matéria relativa a prestação de contas da gestão municipal, atividade discricionária da administração, cuja iniciativa cabe ao Chefe do Executivo.

A propósito, a Constituição Estadual estabelece que:

“Artigo 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

 (...)

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

XIV - praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo”

Tal regramento deve ser observado pelos Municípios por força do princípio da simetria previsto no art. 144 da Constituição Paulista.

O legislador municipal, na hipótese analisada, criou obrigações de cunho administrativo para a Administração Pública local.

A prestação de contas das ações governamentais é atividade nitidamente administrativa discricionária, representativa de atos de gestão, de escolha política. Assim, privativa do Poder Executivo.

Abstraindo quanto aos motivos que podem ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão administrativa do Município.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei disciplinando matéria relativa a gestão administrativa,  como ocorre, no caso em exame, em função da criação do Plano de Metas no Município, invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do Administrador Público, violando o princípio da separação de poderes.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (arts. 5º, 47, II e XIV, e 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo, no caso em análise representados pela criação de obrigações ao Poder Executivo referentes a apresentação, publicação, debates e controle dos atos de gestão administrativa. A atuação legislativa impugnada equivale à prática de ato de administração, de sorte a violar a garantia constitucional da separação dos poderes.

Conforme magistério de Hely Lopes Meirelles a prestação de contas da Administração Pública é dever genérico de todo administrador e dever específico do prefeito, no que concerne a sua gestão financeira. (Direito municipal brasileiro,  6ª. ed., at., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 106).

Nosso ordenamento jurídico disciplina apenas o controle externo da gestão financeira, que no caso do Município é exercido pela Câmara Municipal (CF, art. 31).

Não existe forma de controle político dos atos da administração. A única forma de vinculação do Poder Executivo ao cumprimento de plano de governo tem natureza orçamentária e fiscal, através de regras referentes ao plano plurianual (arts. 48, 74, 84, 165, 166 e 167 da Constituição Federal).

Não se discute que a instituição de Plano de Metas, conforme disciplinado pela lei impugnada, estimula a melhoria da gestão pública e permite à população uma melhor avaliação e controle das ações, obras e serviços realizados pelo Poder Executivo.

Por representar grande avanço no aperfeiçoamento da democracia ao promover a democracia participativa, está em tramitação no Congresso Nacional a PEC 10/11, que visa acrescentar o art. 84-A à Constituição Federal, estabelecendo a obrigatoriedade da apresentação do Plano de Metas pelos Poderes Executivos de todos os níveis da Federação (União, Estado e Município).

Não se nega que o Plano de Metas afina-se com um modelo de desenvolvimento social, economica e ambientalmente sustentável que elimine a miséria; reduza as desigualdades sociais e econômicas; promova os direitos humanos e a equidade no acesso aos direitos civis; melhore a gestão pública e a qualidade dos serviços públicos; amplie a transparência e o combate à corrupção, e assegure uma relação amigável entre os processos produtivos da sociedade e os processos naturais, promovendo a conservação, a recuperação e o uso sustentável dos ecossistemas.

De qualquer forma, trata-se de medida que, dentro do nosso sistema constitucional, insere-se no dever genérico de prestar contas dos atos de gestão, sendo, portanto, discricionário e sujeito à vontade política do governante.

Assim, impor ao Prefeito a obrigação de apresentar Plano de Metas a ser submetido a conhecimento e debate público é deliberar em caráter administrativo, o que extrapola a função legislativa.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Não bastasse a inconstitucionalidade formal apontada o ato normativo impugnado também viola o art. 25 da Constituição Paulista por gerar despesas sem a indicação da respectiva fonte de custeio.

É evidente que a publicação do Plano de Metas, dos indicadores de desempenho semestral e do relatório anual e a realização das audiências públicas importarão em despesas públicas, o que impõe necessidade de planejamento e previsão orçamentária, razão pela qual atribuição de iniciativa privativa do Executivo e da limitação imposta pelo art. 25 da Constituição Estadual.

Diante do exposto, o pedido deve ser julgado procedente reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei nº 4.654, de 22 de junho de 2012, do Município de Taubaté.

                    

 São Paulo, 17 de janeiro de 2013.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

aca