Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº. 0231465-34.2009.8.26.0000 (994.09.231465-4)

Requerente: Associação Brasileira de Shopping Centers – ABRASCE

Requerido: Presidente da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade movida pela Associação Brasileira de Shopping Centers – ABRASCE, tendo por objeto a Lei Estadual nº 13.819, de 23 de novembro de 2009, que dispõe sobre a cobrança de taxa de estacionamento por “shopping centers”. Ato normativo que, estabelecendo limitações ao direito de propriedade, trata de Direito Civil, matéria estranha à competência legislativa estadual (art. 22, inc. I, da CF). Ofensa ao pacto federativo (art. 144 da Constituição do Estado). Desrespeito ao direito de propriedade (art. 5º, XXII, CF). Violação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência (art. 170, caput, IV, CF). Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pela Associação Brasileira de Shopping Centers – ABRASCE, tendo por objeto a Lei Estadual nº 13.819, de 23 de novembro de 2009, que dispõe sobre a cobrança de taxa de estacionamento por shopping centers.

 

Sustenta a associação-autora que a lei, concedendo isenção do pagamento da tarifa de estacionamento cobrado por shopping centers aos “clientes que comprovarem despesa correspondente a pelo menos 10 (dez) vezes o valor da referida taxa”, trata de direito civil, matéria reservada à União (art. 22, inc. I, da Constituição Federal), violando, em consequência, os artigos 1º, 111 e 144 da Carta Paulista.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 349/354).

O Presidente da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo se manifestou a fls. 586/604. Em preliminar, sustentou a ilegitimidade da associação; no mérito, defendeu a constitucionalidade do ato normativo.

A Procuradoria Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, asseverando que a Lei impugnada é, de fato, inconstitucional (fls. 568/569).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A preliminar arguida pelo Presidente da Assembleia Legislativa não deve ser acolhida.

O conceito de entidade de classe, para os fins do art. 90, inc. V, da Constituição Paulista, é, de fato, limitado e reproduz, no âmbito estadual, as mesmas restrições encontradas no plano federal.

Entidade de classe é aquela constituída para a defesa de uma determinada categoria profissional, “cujo conteúdo seja ‘imediatamente dirigido à idéia de profissão, - entendendo-se classe no sentido não de simples segmento social, de classe social, mas de categoria profissional’” (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23ª. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 742, grifos do original).

O Supremo Tribunal Federal estabeleceu que a associação legitimada é aquela que, em essência, representa o interesse comum de determinada categoria (ADI 34/DF, rel. Octavio Galloti, RTJ 128/481) e, desse modo, consolidou o entendimento de que o Constituinte decidiu por uma legitimação limitada, “não permitindo que se convertesse o direito de propositura dessas organizações de classe em autêntica ação popular” (MARTINS, Ives Gandra e MENDES, Gilmar Ferreira. Controle concentrado de constitucionalidade. 3ª. ed., São Paulo: Saraiva, p. 170). Por isso, a Corte Constitucional nega legitimação às entidades formadas por associados pertencentes a categorias diversas, cujos objetivos, quando individualmente considerados, se mostram contrastantes (ADI – 108/DF, Celso de Mello, DJ 5 Jun. 1992, p. 8426).

Esta, entretanto, não parece ser a hipótese dos autos.

De acordo com o ato constitutivo da ABRASCE, a entidade tem por finalidade “representar e defender os interesses dos empreendedores, investidores e gestores de shopping centers” (art. 1º), tomando, se necessário, medidas judiciais para preservar os interesses do setor (art. 2º, a e b).

O provimento jurisdicional almejado atende objetivamente à finalidade associativa, impondo-se reconhecer, na espécie, a legitimidade da autora.

No mérito, a ação é procedente.

O direito de propriedade é garantido na Constituição Federal (art. 5º, inc. XXII), podendo, por previsão legal, sofrer certas limitações.

No plano infraconstitucional, as limitações ao uso lícito da propriedade são temas do Direito Civil (cf. STF, ADI 2.448, rel. min. Sydney Sanches, pleno, 243.04.2003; ADI 1.472, rel. Min. Ilmar Galvão, pleno, 05.09.2002; ADI 1.918, rel. min. Maurício Corrêa, pleno, 23.08.2001; ADI-MC 1.623, rel. min. Moreira Alves, pleno, 25.06.1997), matéria estranha à competência legislativa do Estado, nos termos do art. 22, inc. I, da Constituição da República.

Entende-se, por isso, que, ao editar a norma impugnada, o legislador estadual usurpou a competência da União, com violação do pacto federativo, extraível dos art. 1º e 18 da Lei Maior, ofendendo, igualmente, o art. 1º da Constituição Paulista que prevê:

“Artigo 1º - O Estado de São Paulo, integrante da República Federativa do Brasil, exerce as competências que não lhe são vedadas pela Constituição Federal”

 

No julgamento da ADIN 130.227.0/0-00, em 21.08.07, essa C. Corte acolheu tese que se aplica ao caso em análise, mutatis mutandis, (possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de lei estadual por violação do princípio da repartição de competências estabelecido pela Constituição Federal). Do voto do Des. ALMEIDA GUILHERME se extrai a seguinte lição:

“(...) Ora, um dos princípios da Constituição Federal – e de capital importância – é o princípio federativo, que se expressa, no Título I, denominado ‘Dos Princípios Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...’.

Sendo a organização federativa do Estado brasileiro um princípio fundamental da República do Brasil, e constituindo elemento essencial dessa forma de estado a distribuição de competência legislativa dos entes federados, inescapável a conclusão de ser essa discriminação de competência um princípio estabelecido na Constituição Federal.

Assim, quando o referido art.144 ordena que os Municípios, ao se organizarem, devem atender os princípios da Constituição Federal, fica claro que se estes editam lei municipal fora dos parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a esfera de competência legislativa da união, não estão obedecendo ao princípio federativo, e, pois, afrontando estão o art.144 da Constituição do Estado (...)” (trecho do voto do Des. Walter de Almeida Guilherme, no julgamento da ADI 130.227.0/0-00).

Especificamente sobre o tema, esse E. Tribunal de Justiça reconheceu a inconstitucionalidade de norma análoga, como demonstra o seguinte v. Acórdão:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PROPOSTA OR SINDICATO, OBJETIVANDO A DESCONSTITUIÇÃO DE LEIS MUNICIPAIS QUE PROÍBEM A COBRANÇA DE ESTACIONAMENTO EM SHOPPING CENTERS, SUPERMERCADOS, BANCOS, LOJAS DE DEPARTAMENTOS, HOSPITAIS E CONGÊNERES, E INSTITUIÇÕES EDUCACIONAIS.

RESTRIÇÃO ARBITRÁRIA A DIREITOS INERENTES À PROPRIEDADE PRIVADA, QUAIS SEJAM, USAR E FRUIR.

Afronta à garantia do direito de propriedade, prevista na Constituição Federal, com esvaziamento de seu conteúdo sem o devido processo legal, e violando-se a razoabilidade.

INVASÃO DA COMPETÊNCIA DA UNIÃO FEDERAL PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO CIVIL.

INCOMPATIBILIDADE FORMAL E MATERIAL COM O ARTIGO 22, I, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

Restrição que não se confunde com limitação administrativa.

OFENSA AOS ARTIGOS 22, INCISO I; 5º, XXII, XXIV e LIV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, BEM COMO AOS ARTIGOS 1º; 5º; 111 e 144 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL.

LEGITIMIDADE ATIVA.

Rejeitada a matéria preliminar, julgaram procedente a ação” (ADIN nº 84.568-0/6, rel. Des. MOHAMED AMARO, j. 19.06.2002).

Outrossim, é inegável que os estabelecimentos comerciais aos quais a lei se refere (shopping centers) exercem atividade comercial e econômica, sendo certo que, nessa atividade, aplicam-se os princípios constitucionais que a regem, entre os quais a livre iniciativa e a livre concorrência.

Dito de outro modo, ao limitar a legítima exploração de aspectos inerentes ao exercício da atividade econômica, deixou o legislador estadual de observar referidos princípios constitucionais.

O entendimento aqui externado vem sendo adotado pelo Col. Supremo Tribunal Federal.

Confira-se:

“(...)

EMENTA: - DIREITO CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DA EXPRESSÃO "OU PARTICULARES" CONSTANTE DO ART. 1º DA LEI Nº 2.702, DE 04/04/2001, DO DISTRITO FEDERAL, DESTE TEOR: ‘FICA PROIBIDA A COBRANÇA, SOB QUALQUER PRETEXTO, PELA UTILIZAÇÃO DE ESTACIONAMENTO DE VEÍCULOS EM ÁREAS PERTENCENTES A INSTITUIÇÕES DE ENSINO FUNDAMENTAL, MÉDIO E SUPERIOR, PÚBLICAS OU PARTICULARES.’ ALEGAÇÃO DE QUE SUA INCLUSÃO, NO TEXTO, IMPLICA VIOLAÇÃO ÀS NORMAS DOS ARTIGOS 22, I, 5º, XXII, XXIV e LIV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. QUESTÃO PRELIMINAR SUSCITADA PELA CÂMARA LEGISLATIVA DO DISTRITO FEDERAL: a) DE DESCABIMENTO DA ADI, POR TER CARÁTER MUNICIPAL A LEI EM QUESTÃO; b) DE ILEGITIMIDADE PASSIVA "AD CAUSAM". MEDIDA CAUTELAR (ART. 170, § 1º, DO R.I.S.T.F.). 1. Não procede a preliminar de descabimento da ADI sob a alegação de ter o ato normativo impugnado natureza de direito municipal. Argüição idêntica já foi repelida por esta Corte, na ADIMC nº 1.472-2, e na qual se impugnava o art. 1º da Lei Distrital nº 1.094, de 31 de maio de 1996. 2. Não colhe, igualmente, a alegação de ilegitimidade passiva "ad causam", pois a Câmara Distrital, como órgão, de que emanou o ato normativo impugnado, deve prestar informações no processo da A.D.I., nos termos dos artigos 6 e 10 da Lei n 9.868, de 10.11.1999. 3. Quanto ao mais, a A.D.I. tem plausibilidade jurídica, pois não pode o D.F. legislar sobre direito civil, nem por esse meio violar o direito de propriedade. 4. "Periculum in mora" também reconhecido. 5. Precedente no mesmo sentido: ADIMC n 1.472-DF. 6. Cautelar deferida. Decisão unânime (ADI 2448 MC/DF, rel. Min. SYDNEY SANCHES, j. 01/02/2002, Tribunal Pleno).

(...)”

EMENTA: MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 2º E SEUS §§ 1º E 2º DA LEI Nº 4.771, DE 16.12.92, DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, QUE PROÍBE A COBRANÇA AO USUÁRIO DE ESTACIONAMENTO EM ÁREA PRIVADA, NAS CONDIÇÕES EM QUE ESTIPULA. Presença da relevância da fundamentação jurídica do pedido, vista tanto na evidente inconstitucionalidade formal da lei impugnada, por invasão da competência exclusiva da União para legislar sobre direito civil (CF, artigo 22, I), como na inconstitucionalidade material, por ofensa ao direito de propriedade (CF, artigo 5º, XXII). 2. Presença, também, da conveniência da concessão da medida liminar pelos tumultos que a norma impugnada vem causando ao impedir o exercício de profissão lícita. 3. Precedentes: ADIMC nº 1.472-DF e ADIMC nº 1.623-RJ. 4. Medida cautelar concedida para suspender a eficácia, com efeito ex nunc, do art. 2º e seus parágrafos § 1º e § 2º da Lei nº 4.711, de 16.12.92, do Estado do Espírito Santo, até o final julgamento desta ação (ADI 1918 MC/ES, rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, j. 25/11/1998, Tribunal Pleno).

(...)

EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n 2.050, de 30 de dezembro de 1992, do Estado do Rio de Janeiro. Vedação de cobrança ao usuário de estacionamento em área privada. Pedido de liminar. - Tendo em vista o precedente invocado na inicial - o da concessão de liminar na ADIN 1.472 que versa hipótese análoga à presente - não há dúvida de que é relevante a fundamentação jurídica do pedido, quer sob o aspecto da inconstitucionalidade material (ofensa ao artigo 5º, XXII, da Constituição Federal, por ocorrência de grave afronta ao exercício normal do direito de propriedade), quer sob o ângulo da inconstitucionalidade formal (ofensa ao artigo 22, I, da Carta Magna, por invasão de competência privativa da União para legislar sobre direito civil). - Por outro lado, manifesta-se a conveniência da concessão da liminar, inclusive pela possibilidade de aumento dos distúrbios sociais que vem causando a aplicação dessa lei. Medida cautelar deferida, para suspender, "ex nunc", a eficácia da lei estadual em causa. (ADI 1623 MC/RJ, Min. MOREIRA ALVES, j. 25/06/1997, Tribunal Pleno).

(...)

Tal entendimento também é prestigiado pelo Col. Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Confira-se:

“(...)

Ação direta de inconstitucionalidade. Proibição de exploração pelo particular de estacionamento em estabelecimentos comerciais e de serviços. Lei complementar que invade a competência legislativa da união, ao tratar de matéria afeta ao direito de propriedade regulado pelo Código Civil Violação aos art. 1º e 144 da Constituição estadual e 22, I, da Constituição Federal. Procedência para declara a inconstitucionalidade das Leis Complementares nºs 426/2005 e 418/2004, ambas do Município de Jundiaí. (ADI 166.824.0/2, Rel. Des. Reis Kuntz, j. 19.11.2008, T. Pleno).

(...)”

Pelo exposto, opino pela rejeição da preliminar e, no mérito, pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 13.819, de 23 de novembro de 2009, que dispõe sobre a cobrança de taxa de estacionamento por shopping centers.

São Paulo, 21 de janeiro de 2013.

                                    

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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