Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0236533-57.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Catanduva

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Catanduva

 

Ementa:

1.      Ação direta de inconstitucionalidade visando à declaração da inconstitucionalidade da Lei n. 5.346, de 27 de agosto de 2012, que “denomina Sistema de Lazer ‘I’ que especifica e dá outras providências”.

2.      Usurpação de competência do Poder Executivo. Violação do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (CE, arts. 5.º, 47, II e XIV, e 144). Precedentes do TJ/SP.

 

Colendo Órgão Especial,

                Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito do Município de Catanduva, tendo por objeto a Lei n. 5.346, de 27 de agosto de 2012, do Município de Catanduva que “denomina Sistema de Lazer ‘I’ que especifica e dá outras providências”.

A inicial indica vício de iniciativa, eis que a adoção de referida postura municipal deveria decorrer de projeto de iniciativa do Chefe do Poder Executivo.

O pedido de medida liminar foi deferido (fl. 35). A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 45/47). O Presidente da Câmara Municipal prestou informações (fls. 50/53).

Eis em síntese o relatório.

A Lei n. 5.346, de 27 de agosto de 2012, do Município de Catanduva, tem a seguinte redação:

 

“Art. 1º. O Sistema de lazer ‘I’, localizado na Rua Iracemápolis com a Rua ‘25’, no loteamento denominado Residencial Pachá, nesta Cidade de Catanduva, fica denominado Sistema de Lazer ‘Ivo Torres de Albuquerque Filho’.

Art. 2°. O Executivo Municipal adotará todas as providências necessárias para identificação do referido Sistema de Lazer e encaminhará aos órgãos e setores essenciais do Município, copia da presente lei para ciência do mesmo.

Art. 3º. As despesas decorrentes com a execução da presente lei correrão por conta de dotação orçamentária vigente, suplementadas se necessária”.

É fora de duvida que a denominação de logradouros públicos municipais trata-se de matéria de interesse local (CF, art. 30, I), dispondo, assim, os Municípios de ampla competência para regulamentá-la, pois foram dotados de autonomia administrativa e legislativa. E, vale acrescentar, não há na Constituição em vigor reserva dessa matéria em favor de qualquer dos Poderes, donde se conclui que a iniciativa das leis que dela se ocupem só pode ser geral ou concorrente.

Contudo, afigura-se necessário distinguir as seguintes situações:        (a) a edição de regras que disponham genérica e abstratamente sobre a denominação de logradouros públicos, caso em que a iniciativa é concorrente;      

(b) o ato de atribuir nomes a logradouros públicos, segundo as regras legais que disciplinam essa atividade, que é da competência privativa do Poder Executivo, a ser cumprida na esfera estritamente administrativa.

No Município, à Câmara Municipal incumbem as funções legislativas e ao Prefeito as executivas. Entre esses Poderes locais não existe subordinação administrativa ou política, mas simples entrosamento de funções e de atividades político-administrativas. “Nessa sinergia de funções é que residem a independência e a harmonia dos poderes, princípio constitucional extensivo ao governo municipal.” (Cf. HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Municipal Brasileiro”, Malheiros, São Paulo, 8.ª ed., pp. 427 e 508.)

Pois bem, em sua função normal e predominante sobre as outras, a Câmara elabora leis, isto é, normas abstratas, gerais e obrigatórias de conduta. Esta é sua atribuição específica, bem diferente daquela outorgada ao Poder Executivo, que consiste na prática de atos concretos de administração. Ou seja, a Câmara edita normas gerais, enquanto que o Prefeito as aplica aos casos particulares ocorrentes. (ob. cit., p. 429).

Assim, no exercício de sua função normativa, a Câmara está habilitada a editar normas gerais, abstratas e coativas a serem observadas pelo Prefeito, para a denominação das vias e logradouros públicos, como, por exemplo: proibir que se atribua o nome de pessoa viva, determinar que nenhum nome possa ser composto por mais de três palavras, exigir o uso de vocábulos da língua portuguesa, etc. (Cf. ADILSON DE ABREU DALLARI, “Boletim do Interior”, Secretaria do Interior do Governo do Estado de São Paulo, 2/103).

Por outro lado, a nomenclatura de logradouros públicos, que constitui elemento de sinalização urbana, tem por finalidade precípua a orientação da população (Cf. JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Urbanístico Brasileiro”, Malheiros, São Paulo, 2.ª ed., p. 285). De fato, se não houvesse sinalização, a identificação e a localização dos logradouros públicos seriam tarefas quase impossíveis, principalmente nos grandes aglomerados urbanos.

Diverso, porém, é o ato de denominar os próprios públicos, inclusive nos casos em que não se busca apenas permitir a orientação da população, mas sim homenagear determinadas pessoas ou fatos históricos.

Note-se: nada obsta que o nome dado a determinado logradouro público cumpra não só a função de permitir sua identificação e exata localização, mas sirva também para homenagear pessoas ou fatos históricos, segundo os critérios previamente estabelecidos em lei editada para regulamentar essa matéria. 

Definidas essas premissas básicas, entretanto, é imperativo o reconhecimento da inconstitucionalidade do ato normativo impugnado nesta inicial. Ou seja, a Câmara Municipal não pode, em nosso regime constitucional, invadir a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo.

As leis formais não se mostram regras jurídicas, mas simples atos administrativos do Poder Legislativo, que invadem a esfera de competência constitucional do Poder Executivo.

Na ordem constitucional vigente, que incorporou o postulado da separação de funções, a fim de limitar o poder estatal, na consagrada fórmula de Montesquieu, não existe a menor possibilidade de a Administração municipal ser exercida pela Câmara, por meio de leis (Estado legal), pois a Constituição é clara ao atribuir ao Prefeito a competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a direção superior da administração municipal (CE, art. 47, II) e praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (CE, art. 47, XIV).

Bem por isso, aliás, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que:

 

“(...)

Sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes (...) não é lícito ao Parlamento editar, ao seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial. (“A Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194.)

(...)”

 

Nesse contexto, a aprovação de lei, pela Câmara, que atribui nome a logradouro ou prédio público só pode ser interpretada como atentatória ao postulado constitucional da independência e da harmonia entre os poderes (CE, art. 5.º).

Ademais, como já restou consignado anteriormente, a argumentação aqui desenvolvida foi acolhida pelo Col. Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da Repr. n.º 1.117-SP, explicitado tal o raciocínio no voto do Ministro FRANCISCO REZEK.

Em suma, a concessão de denominação a determinado bem municipal é ato concreto de administração, parte integrante do serviço público de sinalização urbana, cujo único responsável é o Prefeito.

Não há como aceitar a interpretação que inclui no rol dos poderes implícitos da Câmara a competência para editar leis formais, desvestidas dos atributos de generalidade e abstração, tampouco estender esses poderes sobre a área de atuação exclusiva do Poder Executivo, a quem compete a administrar os bens públicos e prestar os serviços públicos municipais. O ato de atribuir nomes a logradouros ou a prédios públicos é mero corolário do poder de administrar.

Bem a propósito, ao examinar leis de conteúdo semelhante, esse egrégio Tribunal de Justiça decidiu que:

“(...)

Ação Direta de Inconstitucionalidade – Lei Municipal que impõe ao Chefe do Poder Executivo nome de rua – Vício de iniciativa – Invasão de esfera privativa deste – Ação procedente (ADI nº 115.877.0/5, Rel. Des. Laerte Nordi, j. em 20/7/2005).

(...)

EMENTA: Constitucional. ADI. Inciso XV do artigo 35 da Lei Orgânica do Município de Olímpia. Atribui à Câmara, com sanção do Prefeito, dar denominações a próprios, vias e logradouros públicos, inclusive de pessoas vivas que mereçam e justifiquem a homenagem. Matéria relativa à direção superior da administração municipal. Usurpação de atribuições do Chefe do Executivo. Inconstitucionalidade. Violação do disposto nos artigos 5.º, 47, incisos II e XIV, e 144 da Constituição do Estado de São Paulo. (ADI 163.689-0/3-00, Rel. Des. Luiz Tâmbara, j. em 22/7/2009, v.u.)

(...)”

Em suma, a Câmara não pode arrogar a competência para autorizar a prática de atos concretos de administração. E a nomenclatura de logradouros e prédios públicos - que constitui atividade relacionada ao serviço público municipal de sinalização e identificação - enquadra-se exatamente nessa hipótese, resultando, daí, a conclusão inafastável de que a lei em epígrafe é manifestamente incompatível com o princípio da separação dos poderes.

Diante de todo o exposto, aguarda-se o acolhimento da presente ação declaratória, para que ao final seja ela julgada procedente, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei n. 5.346, de 27 de agosto de 2012, de Catanduva.

 

São Paulo, 05 de março de 2013.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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