Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0248267-05.2012.8.26.0000

Requerente: Mesa da Câmara Municipal de Regente Feijó

Requerido: Prefeito da Câmara Municipal de Regente Feijó

 

 

Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade, ajuizada pela Mesa da Câmara Municipal de Regente Feijó, da Lei Municipal n. 2.737 de 06 de novembro de 2012, que “Dispõe sobre autorização para alienação de imóvel urbano que especifica”. Apontada irregularidade no processo legislativo por afronta à Lei Orgânica do Município e ao Regimento Interno da Câmara. Irregularidade interna, regimental. Posição do STF (ADIn 2.038-BA). Desnecessidade de quórum qualificado para aprovação dos projetos de lei que tratem de alienação de imóvel de propriedade do Município. Previsão que confere indevida proeminência ao Poder Legislativo, que pode, eventualmente, inviabilizar a prática de atos de gestão, ainda que extraordinários. Regra que destoa do modelo constitucional (Constituição do Estado: art. 10, § 1º, aplicável aos Municípios por força do art. 144). Parecer pela improcedência do pedido.

 

Colendo Órgão Especial,

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente:

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pela Mesa da Câmara Municipal de Regente Feijó da Lei Municipal n. 2.737, de 06 de novembro de 2012, daquele Município, que “Dispõe sobre autorização para alienação de imóvel urbano que especifica”.

A autora sustenta que “não foram atendias as determinações regimentais que tratam da matéria, que são, naturalmente, as razões de sua inconstitucionalidade”.

Aponta-se como violado o art. 111 da Constituição Paulista, por malferimento ao princípio da legalidade.

A lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 69/70).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 79/80).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Como se sabe, o exercício do governo municipal, no Brasil, é repartido entre a Câmara e o Prefeito, correspondendo àquela as funções legislativas e a este as executivas.

Entre ambos não há subordinação: a relação é de entrosamento de funções e de atividades político-administrativas, para que se estabeleça a harmonia e a independência dos Poderes, princípio constitucional extensivo ao governo local (cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 1996, p. 427 e 508).

Em sua função normal e predominante, a Câmara Municipal elabora leis, isto é, normas abstratas, gerais e obrigatórias de conduta. Esta é sua destinação específica, bem diferente da do Executivo, a quem cabe a prática dos atos concretos de administração (ob. cit., p. 429).

O tema trazido a lume diz respeito à alienação de bem imóvel público, que pertence exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo.

A Mesa da Câmara Municipal de Regente Feijó está se insurgindo contra a Lei n. 2.737, de 06 de novembro de 2012, alegando que no processo de sua formação “não foram atendidas as determinações regimentais que tratam da matéria”, porque não teria sido observado o quórum de 2/3 dos membros da Câmara, assim como determina o art. 55, § 1º, inc. I, do Regimento Interno da Câmara Municipal e também porque não se procedeu à votação nominalmente, assim como exige o § 2º do art. 252, do mesmo estatuto regimental.

Traz a inicial a redação dos mencionados dispositivos, a seguir copiados:

“Artigo 55. O Plenário deliberará:

§ 1º. Dependerá do voto favorável de dois terços dos membros da Câmara a aprovação:

I – das Leis concernentes a:

(...)

b) alienação de bens imóveis;

(...)

Artigo 252. Os processos de votação podem ser:

(...)

§ 3º. Proceder-se-á, obrigatoriamente, à votação nominal para:

(...)

III – votação de todas as proposições que exijam quórum de maioria absoluta ou de dois terços para sua aprovação”

Não procede, com todo respeito, o inconformismo da autora.

Primeiramente, a violação à norma regimental da Câmara de Vereadores, do vulto da que ora se analisa, não é capaz de macular a norma impugnada de inconstitucionalidade.

Ocorre que, como se verá a seguir, não há previsão legal ou constitucional que exija quórum qualificado para a alienação de imóvel público.

Neste contexto, como ensina Oswaldo Luiz Paulu:

“(...) Por vezes não admite o Supremo Tribunal ação direta de inconstitucionalidade em face de inconstitucionalidade formal, se advinda de irregularidade interna, regimental, das câmaras legislativas. Sobremais, ‘o fundamento da inconstitucionalidade formal da lei atacada por ofensa ao processo legislativo – caso em que se sustentava não ter sido observada norma do regimento interno da Assembleia Legislativa estadual, segundo a qual seria obrigatório, o encaminhamento do projeto de lei à Comissão de Saúde – é assunto interna corporis, não sujeito à apreciação pelo Poder Judiciário” (ADIn 2.038-BA, reol. Min. Marco Aurélio, red. p/ acórdão Min. Nelson Jobin, j. 18.08.1999 – Informativo STF 158)” apud Oswaldo Luiz Palu, Controle de Constitucionalidade, 2ª ed., RT, 2001, págs. 217/218

A questão do quórum, uma vez que os parâmetros constitucionais apontam para a maioria simples (art. 10, § 1º c.c. art. 19, incs. IV e VI, da Constituição do Estado de São Paulo), destoando da exigência regimental, passa a ter característica de assunto interno, a ser curado intra muros, fugindo dest´arte “à apreciação do Poder Judiciário”.

Como administrador do Município, cabe ao Prefeito organizar e dirigir o serviço público, sendo ele detentor dos poderes correspondentes de comando, coordenação e controle de todos os empreendimentos da Prefeitura.

Compete-lhe, igualmente, gerir os bens municipais, praticando atos ordinários e extraordinários de administração.

Os primeiros dizem respeito à disciplina de utilização e às providências que visam à conservação dos bens. Para estes, o Prefeito não necessita de qualquer autorização da Câmara Municipal.

Os atos extraordinários, por sua vez, são os de alienação e concessão de direito real de uso dos bens móveis. Estes dependem efetivamente de autorização legislativa, preservada, de qualquer modo, a iniciativa do chefe do Poder Executivo para desencadear o processo (ob. cit., p. 226 e 238).

É o que se extrai da Constituição do Estado de São Paulo, que, nos incisos IV e V do artigo 19, diz competir ao Legislativo dispor sobre a cessão de direitos reais de bem imóveis e o uso deles por particulares, verbis:

“Artigo 19 - Compete à Assembléia Legislativa, com a sanção do Governador, dispor sobre todas as matérias de competência do Estado, ressalvadas as especificadas no art. 20, e especialmente sobre:

I - sistema tributário estadual, instituição de impostos, taxas, contribuições de melhoria e contribuição social;

II - plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento anual, operações de crédito, dívida pública e empréstimos externos, a qualquer título, pelo Poder Executivo;

III - criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicas, observado o que estabelece o art. 47, XIX, “b”; (NR)

- Redação dada pela Emenda Constitucional nº 21, de 14/2/2006.

IV - autorização para a alienação de bens imóveis do Estado ou a cessão de direitos reais a eles relativos, bem como o recebimento, pelo Estado, de doações com encargo, não se considerando como tal a simples destinação específica do bem;

V - autorização para cessão ou para concessão de uso de bens imóveis do Estado para particulares, dispensado o consentimento nos casos de permissão e autorização de uso, outorgada a título precário, para atendimento de sua destinação específica;

VI - criação e extinção de Secretarias de Estado e órgãos da administração pública; (NR)

- Redação dada pela Emenda Constitucional nº 21, de 14/2/2006.

VII - bens do domínio do Estado e proteção do patrimônio público;

VIII - organização administrativa, judiciária, do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Procuradoria Geral do Estado;

IX - normas de direito financeiro.”

Ocorre que, quando o Regimento Interno da Câmara exige – como acontece em Regente Feijó – quórum qualificado para concretizar essas autorizações ele está concedendo indevida proeminência ao Poder Legislativo, o que pode, eventualmente, inviabilizar a realização das medidas sujeitas à deliberação da Câmara Municipal.

Essa situação, de fato, destoa do modelo Estadual, pelo qual as manifestações do Poder Legislativo são, em regra, tomadas pela maioria. É o que está posto no art. 10, § 1º da Constituição Paulista:

“Artigo 10 - A Assembléia Legislativa funcionará em sessões públicas, presente, pelo menos, um quarto de seus membros.

§ 1º - Salvo disposição constitucional em contrário, as deliberações da Assembléia Legislativa e de suas Comissões serão tomadas por maioria de votos, presente a maioria absoluta de seus membros.”

Por isso, entendemos que a exigência do quórum qualificado compromete o equilíbrio de forças do âmbito local e, por isso, traduz-se em indevida influência do Poder Legislativo na gestão do Município, violando, em consequência, o princípio da separação dos poderes, previsto no art. 5º da Carta Paulista.

Para finalizar, recorde-se que esse C. Órgão Especial já reconheceu inconstitucionalidade em dispositivos de Lei Orgânica de Embu-Guaçu que subordinavam determinados atos de gestão ordinária do Município à autorização da Câmara, compreendendo-os como “manifesta ingerência do Legislativo na Administração do Município”:

“Ação direta de declaração de inconstitucionalidade - Lei Orgânica Municipal (incisos V, XII, XVI e XXIII do artigo 11) - Município de Embu-Guaçu - Reconhecimento da ingerência do Legislativo na Administração do Município e usurpação de funções, ao subordinar à autorização da Câmara atos de gestão ordinária do Município - Violação dos artigos 5º e 144 da Constituição Estadual - Ação procedente” (ADIN nº 131.237-0/2-00, rel. Des. JOSÉ REYNALDO, j. 13 Ago. 2008).

Como corolário, chega-se à conclusão de que a exigência do regimento interno, por descabida, não acarreta a inconstitucionalidade da norma votada, sancionada e promulgada dentro dos princípios constitucionais vigentes.

Diante do exposto, opino pela improcedência da presente ação.

São Paulo, 03 de abril de 2013.

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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