Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0250154-24.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Bauru

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Bauru

 

Ementa:

1) Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito Municipal, em face da Lei nº 6.256, de 13 de setembro de 2012, do Município de Bauru, que dispõe sobre a obrigatoriedade de veiculação nas notificações de Auto de Infração de Trânsito, aplicadas pela Empresa Municipal de Desenvolvimento Urbano e Rural de Bauru, a respeito do constante no art. 267 da Lei Federal n. 9.503/97, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro.

2) Projeto de autoria de Vereador. Lei que dispõe sobre matéria de trânsito, cuja competência é privativa da União. Desrespeito à repartição das competências legislativas (art. 22, inc. XI, da Constituição Federal) e, em consequência, ao princípio federativo, autorizando o reconhecimento da inconstitucionalidade por violação dos arts. 1º e 144 da Constituição Bandeirante.

3) Violação do princípio da separação de poderes, tendo em vista a imposição de obrigação à Administração Pública (art. 5º, da Constituição Estadual).

3) Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Bauru, tendo por objeto a Lei nº 6.256, de 13 de setembro de 2012, do Município de Bauru, que dispõe sobre a obrigatoriedade de veiculação nas notificações de Auto de Infração de Trânsito, aplicadas pela Empresa Municipal de Desenvolvimento Urbano e Rural de Bauru, a respeito do constante no art. 267 da Lei Federal n. 9.503/97, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro

Sustenta o autor que a lei em questão, de autoria parlamentar, contraria o disposto no art. 22, XI, da Constituição Federal, pois somente a União pode legislar sobre matéria de trânsito. Aponta, ainda, como violado o art. 5º da Constituição Estadual, na medida em que a legislação impugnada impõe obrigação à Administração Pública.

O pedido de medida liminar foi indeferido (fls. 54/55).

Contra referida decisão o Prefeito de Bauru, interpôs agravo regimental (fls. 64/66), cujo provimento foi negado (fls. 70/72).

A Procuradoria Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 87/88).

O Presidente da Câmara Municipal Bauru prestou informações defendendo a constitucionalidade do ato normativo questionado (fls. 90/98).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A presente ação é procedente.

A Lei nº 6.256, de 13 de setembro de 2012, do Município de Bauru, que “Dispõe sobre a obrigatoriedade de veiculação nas notificações de Auto de Infração de Trânsito, aplicadas pela Empresa Municipal de Desenvolvimento Urbano e Rural de Bauru, a respeito do constante no art. 267 da Lei Federal n. 9.503/97, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro”, apresenta a seguinte redação:

“Art. 1º- Nas notificações de Auto de Infração de Trânsito, aplicadas pela Empresa Municipal de Desenvolvimento Urbano e Rural, deverá constar a seguinte impressão do conteúdo do caput do art. 267 do Código  de Trânsito Brasileiro: “Poderá ser imposta a penalidade de advertência por escrito á infração de natureza leve, ou média, passível de ser punida com multa, não sendo reincidente o infrator, na mesma infração, nos últimos doze meses, quando a autoridade considerando o prontuário do infrator, entender ser esta providência mais educativa”.

Parágrafo único- Vinculam-se à impressão, as informações necessárias para que o autuado possa pleitear o exercício a tal direito.

Art. 2º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação”.

 

Um dos princípios constitucionais estabelecidos é o denominado princípio federativo, que está assentado nos arts. 1º e 18 da Constituição da República, bem como no art. 1º da Constituição Paulista.

Como é cediço, a Constituição da República estabelece a repartição constitucional de competências entre as diversas esferas da federação brasileira. E a repartição de competências entre os entes federados é o corolário mais evidente do princípio federativo.

Referindo-se aos princípios fundamentais da Constituição, que revelam as opções políticas essenciais do Estado, José Afonso da Silva aponta que entre eles podem ser inseridos, entre outros, “os princípios relativos à existência, forma, estrutura e tipo de Estado: República Federativa do Brasil, soberania, Estado Democrático de Direito (art. 1º)” (Curso de direito constitucional positivo, 13ªed., ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. 96, g.n.).

Um dos aspectos de maior relevo, e que representa a dimensão e alcance do princípio do pacto federativo, adotado pelo Constituinte em 1988, é justamente o que se assenta nos critérios adotados pela Constituição Brasileira para a repartição de competências entre os entes federativos, bem como a fixação da autonomia, e dos respectivos limites, dos Estados, Distrito Federal e Municípios, em relação à União.

Anota a propósito Fernanda Dias Menezes de Almeida que “avulta, portanto, sob esse ângulo, a importância da repartição de competências, já que a decisão tomada a respeito é que condiciona a feição do Estado Federal, determinando maior ou menor grau de descentralização.” Daí a afirmação de doutrinadores no sentido de que a repartição de competências é “’a chave da estrutura do poder federal’, ‘o elemento essencial da construção federal’, ‘a grande questão do federalismo’, ‘o problema típico do Estado Federal’” (Competências na Constituição Federal de 1988, 4ªed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 19/20).

Não pairaria qualquer dúvida a respeito da inconstitucionalidade de proposta de emenda constitucional ou de lei que sugerisse, por exemplo, a extinção da própria Federação: a Constituição veda, como visto, proposta de emenda “tendente a abolir”, entre outros, “a forma federativa de Estado” (art. 60, § 4º, inciso I, da Constituição Federal).

A preservação do princípio federativo tem contado com a anuência do E. Supremo Tribunal Federal, pois como destacado em julgado relatado pelo Min. Celso de Mello:

"(...) a idéia de Federação — que tem, na autonomia dos Estados-membros, um de seus cornerstones — revela-se elemento cujo sentido de fundamentalidade a torna imune, em sede de revisão constitucional, à própria ação reformadora do Congresso Nacional, por representar categoria política inalcançável, até mesmo, pelo exercício do poder constituinte derivado (CF, art. 60, § 4º, I)." (HC 80.511, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 21-8-01, DJ de 14-9-01).

A legislação impugnada, de fato, viola o artigo 144 da Constituição de São Paulo, que remete ao artigo 30 da Constituição Federal. Segundo este, os municípios só poderão legislar sobre assuntos de interesse local (inciso I).

São inconfundíveis os círculos da competência normativa federal sobre trânsito e da competência normativa municipal para organização e fiscalização do trânsito no seu território. Remanesce espaço normativo ao município para limitações ao tráfego de veículos em suas vias públicas em atenção às peculiaridades locais e desde que não neutralizada a legislação federal, o que abrange a imposição de certas condições, como a disciplina do uso das vias, logradouros e espaços públicos.

Não é o que se vê na Lei nº. 6.256/2012, de Bauru, que avançou em matéria estranha à sua competência. Isto porque, disciplinou matéria específica do Código de Trânsito Brasileiro. É que a Constituição Federal, no artigo 22, inciso XI, restringe à União a competência para legislar sobre “trânsito”.

Vê-se que a lei municipal não se restringe a suplementar a legislação federal.

Para Pinto Ferreira, a expressão “interesse local” se refere a “matérias específicas dos Municípios” (Comentários à Constituição Brasileira, São Paulo, Saraiva, 1990, p. 2/277). Comenta Manoel Gonçalves Ferreira Filho que “o texto em estudo refere-se a 'interesse local' e não mais a 'peculiar interesse'. Forçoso é concluir, pois, que a constituição restringiu a autonomia municipal e retirou de sua competência as questões que, embora de seu interesse também, são do interesse de outros entes” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, São Paulo, Saraiva, 1990, p. 1/218).

Especificamente sobre legislação em matéria de trânsito, observa Hely Lopes Meirelles:

“De um modo geral, pode-se dizer que cabe à União legislar sobre os assuntos nacionais de trânsito e transporte, ao Estado-membro compete regular e prover os aspectos regionais e a circulação intermunicipal em seu território, e ao Município cabe a ordenação do trânsito urbano, que é de seu interesse local (CF, art. 30, I e V). (...) Na competência do Município insere-se, portanto, a fixação de mão e contramão nas vias urbanas, limites de velocidade e veículos admitidos em determinadas áreas e horários, locais de estacionamento, estações rodoviárias, e tudo o mais que afetar a vida da cidade” (Direito municipal brasileiro, São Paulo, Malheiros, 2000, pp. 417 e 419).

Diógenes Gasparini também comenta:

 “No que respeita à competência legislativa do Município, em matéria de trânsito, podemos afirmar, seguramente, não se tratar de matéria de interesse local, haja vista ter sido reservada expressamente e de forma privativa, à União, consoante dispõe o art. 22, inc. XI, da Constituição da República. (...) Com efeito, nas responsabilidades legislativas privativas da União, só se admite, excepcionalmente, a atuação dos Estados e Municípios, mediante lei complementar e, mesmo assim, sobre questões específicas, conforme faculta o parágrafo único, do art. 22, do Estatuto Supremo” (Revista de Direito Administrativo, nº. 212, abril/junho, 1998, pp. 175-194).

Por essa linha de raciocínio, pode-se afirmar que a Lei Municipal ao regular matéria cuja competência é do legislador federal, desrespeitou a repartição constitucional de competências, violando o princípio federativo.

Ademais, a Lei n. 6.256/2012 é fruto de iniciativa parlamentar, sendo por mais essa razão verticalmente incompatível com o nosso sistema constitucional, como será demonstrado a seguir.

Desta feita, houve violação do princípio da separação de poderes, tendo em vista que a legislação em questão impôs obrigação à Administração Pública, ao estabelecer a obrigatoriedade de impressão nas notificações dos Autos de Infração de Trânsito aplicadas pela Empresa Municipal de Desenvolvimento Urbano e Rural, do conteúdo do caput do art. 267 do Código de Trânsito Brasileiro.

É ponto pacífico na doutrina bem como na jurisprudência que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

Em que pese a relevante intenção do parlamentar, o fato é que ela interfere no âmbito da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional.

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.

Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que devem existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que "dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações remitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade da lei em análise.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 6.256, de 13 de setembro de 2012, do Município de Bauru.

São Paulo, 28 de junho de 2013.

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

vlcb