Parecer
Processo nº 0250353-46.2012.8.26.0000
Requerente: Prefeito do Município de Suzano
Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Suzano
Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito. Lei nº 4.580, de 30 de maio de 2012, do Município de Suzano, que “Institui no município de Suzano a Semana de Combate ao Crack, e dá outras providências”. Projeto de autoria de Vereador. Ausência de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo. Parágrafo 3º, do art. 3º, que viola o princípio da separação dos poderes, com ofensa aos artigos 24, § 2º, ns. 1 e 2; 47, incs. II e XIV; e 144 da Constituição do Estado de São Paulo. Criação de despesas e obrigação à Administração (art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo). Parecer pela procedência parcial da ação.
Colendo
Órgão Especial,
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Presidente:
Trata-se
de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Suzano, tendo por objeto a Lei nº 4.580, de 30 de maio de
2012, do Município de Suzano, que “Institui no município de Suzano a Semana de
Combate ao Crack, e dá outras providências”.
O
autor noticia que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e
que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto
foi derrubado e, ao final, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara
Municipal.
Sustenta
que a lei em questão cria obrigações para a Administração, havendo usurpação
por parte do Poder Legislativo de atribuições pertinentes a atividades próprias
do Poder Executivo e aponta transgressão aos arts. 5º, 111 e 144 da
Constituição Estadual.
Como
apoio secundário, consigna ainda o autor que a vergastada norma padeceria de
inconstitucionalidade por faltar ao Município competência legislativa para
tratar de assunto relacionado à proteção e defesa da saúde e da infância e
juventude, à luz do que dispõe o art. 24, incs. XII e XV da Constituição
Federal.
A
lei teve a vigência e eficácia suspensas ex
nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fl. 22).
O
Presidente da Câmara Municipal deixou transcorrer “in albis” o prazo para informações
(fl. 30).
A
Procuradoria-Geral do Estado não foi citada, em obediência ao disposto no item
4 do despacho de fl. 22.
Este
é o breve resumo do que consta dos autos.
Preliminarmente, requer-se a citação do Procurador-Geral do Estado, a fim de defender o ato normativo impugnado, nos termos do art.90, §2º, da Constituição Estadual.
No mérito, procede a ação, em parte.
A
lei impugnada do Município de Suzano assim dispõe:
Autoria: Ver. Rafael Franchini Garcia
VER. José Izaqueu Rangel, Presidente da Câmara Municipal de
Suzano, no uso de suas atribuições legais e conforme o disposto no artigo 45, §
5º da Lei Orgânica do Município;
Faz saber que a Câmara Municipal de Suzano aprova e ele
promulga a seguinte Lei:
Art. 1º. Fica
instituída, no âmbito do município de Suzano, a “Semana de Combate ao Crack”.
Parágrafo único – O evento a que se refere o caput deste
artigo deverá ser realizado na semana que compreende o dia 28 de fevereiro.
Art. 2º. A Semana
de Combate ao Crack tem como objetivos:
I - Prevenir o
crescente consumo da droga;
II -
Conscientizar crianças, adolescentes, educadores, pais e comunidade em
geral sobre efeitos do consumo da droga;
III - Buscar
alternativas, não apenas para o combate, mas também para o tratamento e
recuperação dos dependentes químicos;
IV - Valorizar
exemplos de pessoas que tenham superado a dependência e retornado ao convívio
social;
V - Mobilizar a
comunidade em geral para a realização de atividades referentes a este tema;
VI - Fortalecer os
vínculos familiares e importância dos pais no desenvolvimento do indivíduo.
Art. 3º. Serão
convidadas a participar da Semana de Combate ao Crack as direções das escolas
de educação infantil, ensino fundamental e médio da rede municipal, estadual e
particulares do município, bem como as Organizações não Governamentais – ONG’s,
segmentos do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, e a sociedade em geral.
§ 1º. A sociedade
deverá ser convidada a participar das atividades desenvolvidas pelas entidades
através dos meios de comunicação.
§ 2º. Poderão
participar das atividades entidades e escolas de outros municípios a convite
dos organizadores.
§ 3º. Todos os
órgãos, programas e serviços desenvolvidos pelas Secretarias Municipais da
Promoção da Cidadania e Inclusão Social, de Defesa Social e Prevenção à
Violência, de Educação e de Saúde, deverão realizar algum tipo de atividade.
Art. 4º. O Poder
Executivo Municipal deverá regulamentar esta Lei no prazo de 90 (noventa) dias,
contados da publicação desta.
Art. 5º. As
despesas decorrentes da execução desta Lei correrão por conta das dotações
orçamentárias próprias, suplementadas, se necessário, e previstas na Lei
Orçamentária Anual (LOA 2011), através da Secretaria Municipal de Saúde
(09.00.00), Programa Manutenção da Secretaria – SMS, Função Saúde, Subfunção
Comunicação Social, Grupo de Despesa 4, Fonte de Recurso 01, código
10.131.7158.2252 – Comunicação e Publicidade na Área de Saúde.
Art. 6º. Esta Lei
entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições
contrárias.
Sala da Presidência da Câmara Municipal de Suzano, em 30 de maio de 2012.”
Com todo respeito, a Carta em vigor não contém nenhuma disposição que impeça a Câmara de Vereadores de legislar sobre programa que visa combater o uso de droga, nem tal matéria foi reservada com exclusividade ao Executivo ou mesmo situa-se na esfera de competência legislativa privativa da União.
Por força da Constituição, os municípios foram dotados de autonomia legislativa, que vem consubstanciada na capacidade de legislar sobre assuntos de interesse local, inclusive sobre programa que visa combater o uso de crack, e de suplementar a legislação federal e estadual no que couber (CF, art. 30, I e II). Por isso, a alegação de violação ao princípio da legalidade, previsto no art. 111 da Constituição Estadual, em razão de o art. 24 não prever a competência concorrente do município, não deve prevalecer.
A fixação da semana de programa de combate ao uso de crack por lei municipal não excede os limites da autonomia legislativa de que foram dotados os municípios, mesmo considerando-se a existência de lei federal a dispor sobre esse tema, porquanto no rol das matérias de competência privativa da União (CF, art. 22, I a XXIV) nada há nesse sentido, ou seja, prevalece a autonomia municipal.
Por outro lado, eméritos Desembargadores, a matéria em questão não é de competência reservada ao Executivo e, por esse aspecto, vale ressaltar, os fundamentos contidos na inicial são contraditórios, pois, num primeiro momento, aponta-se a invasão da esfera de competência da União e, secundariamente, a usurpação de prerrogativa que é própria da função Executiva, qual seja a de iniciar o processo legislativo nas hipóteses previstas na Constituição.
Ocorre que a Constituição em vigor nada dispôs sobre a instituição de reserva em favor do Executivo da iniciativa de leis que versem sobre programas de conscientização, como as situações previstas no art. 61 da Carta Paulista constituem exceção à regra da iniciativa geral ou concorrente, a sua interpretação deve sempre ser restritiva, máxime diante de sua repercussão no postulado básico da independência e da harmonia entre os Poderes.
Além de apresentar argumentação contraditória – pois se a competência para dispor sobre a matéria é privativa da União a conclusão inexorável a que se chega é a de que não pode ter havido usurpação de prerrogativa própria da função executiva e vice-versa –, a inicial não indicou dispositivo da Constituição do Estado de São Paulo que assegura ao Prefeito a exclusividade para dispor sobre programa que visa combater o uso de crack, matéria típica de lei.
Cada ente federativo dispõe de autonomia para fixar semana de programa que visa combater o uso de drogas, só havendo limites quanto à fixação de feriados, por força de legislação federal de regência, o que, porém, não ocorre na situação em análise.
Assim, com a devida vênia, não é possível recusar à Câmara de Vereadores o direito de legislar sobre assunto de interesse local e sobre o qual não paira reserva de iniciativa.
Contudo,
o que até aqui restou dito não se aplica ao § 3º, do art. 3º, da Lei 4.580/12
do Município de Suzano, que é verticalmente incompatível com a Constituição do
Estado de São Paulo, especialmente com os seus arts. 5.º; 24, § 2º, ns.
1 e 2; 47, incs. II e XIV; e 144 os quais dispõem o seguinte:
“Art. 5.º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 24 – A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
(...)
§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:
1 – criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;
2 – criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX;”
(...)
Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;
(...)
XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;
(...)
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”
Como visto, a impugnada norma cria obrigações para a Administração, ao dispor que “Todos os órgãos, programas e serviços desenvolvidos pelas Secretarias Municipais da Promoção da Cidadania e Inclusão Social, de Defesa Social e Prevenção à Violência, de Educação e de Saúde, deverão realizar algum tipo de atividade.”
Com isso, há geração de obrigação à Administração e, consequentemente, maiores despesas, o que importa em invasão da seara administrativa.
Nos
entes políticos da Federação, dividem-se as funções de governo: o Executivo foi
incumbido da tarefa de administrar, segundo a legislação vigente, por força do
postulado da legalidade, enquanto que o Legislativo ficou responsável pela
edição das normas genéricas e abstratas, as quais compõem a base normativa para
as atividades de gestão.
Essa
repartição de funções decorre da incorporação à Constituição brasileira do
princípio da independência e da harmonia entre os Poderes (art. 2º),
preconizado por Montesquieu, e que visa a impedir a concentração de poderes num
único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.
A
tarefa de administrar o Município, a cargo do Executivo, engloba as atividades
de planejamento, organização e direção dos serviços públicos, o que abrange,
efetivamente, a concepção de programas, como o da espécie em análise.
Por
intermédio do dispositivo em análise, a Câmara criou uma espécie de programa que visa combater o uso
de crack no âmbito do Município de Suzano, onerando, desta forma, a
Administração. Embora elogiável a
preocupação do Legislativo local com o tema, a iniciativa não tem como
prosperar na ordem constitucional vigente, uma vez que a norma disciplina atos
que são próprios da função executiva.
Por
esse motivo, a Constituição Estadual, em dispositivo que repete o artigo 61, §
1º, II, “e”, da Constituição Federal, conferiu ao Governador do Estado a
iniciativa privativa das leis que disponham sobre as atribuições da
Administração Pública e, consequentemente, sobre o seu orçamento. Trata-se de
questão relativa ao processo legislativo, cujos princípios são de observância
obrigatória pelos Municípios, em face do artigo 144, da Constituição do Estado,
tal como tem decidido o C. Supremo Tribunal Federal:
“O modelo estruturador do processo legislativo, tal como delineado em seus aspectos fundamentais pela Constituição da República - inclusive no que se refere às hipóteses de iniciativa do processo de formação das leis - impõe-se, enquanto padrão normativo de compulsório atendimento, à incondicional observância dos Estados-Membros. Precedentes: RTJ 146/388 - RTJ 150/482” (ADIn nº 1434-0, medida liminar, relator Ministro Celso de Mello, DJU nº 227, p. 45684).
Se
a regra é impositiva para os Estados-membros, é induvidoso que também o é para
os Municípios.
As
normas de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo
derivam do princípio da separação dos poderes, que nada mais é que o mecanismo
jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo
competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos
(Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit., pp. 111-112). Se essas normas não
são atendidas, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em
face de vício de iniciativa.
Sobre
isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à
privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais
matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e
promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício
inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais
inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o
Legislativo as exerça” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 7ª
ed., pp. 544-545).
Nota-se,
por fim, que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte,
colide com o disposto no artigo 25, da Constituição Bandeirante.
Esse
Sodalício, aliás, tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais que
infringem esses comandos:
“LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL” (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).
Diante
do exposto, nosso parecer é no sentido da parcial procedência desta ação
direta, declarando-se a
inconstitucionalidade do parágrafo 3º, do art. 3º, da Lei nº 4850 de 30 de maio
de 2012, do Município de Suzano.
São Paulo, 10 de abril de
2013.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
fjyd