Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº. 0258873-92.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Catanduva

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Catanduva

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 4.151, 21 de novembro de 2005, de Catanduva, que “dispõe sobre o parcelamento de despesas com velório e sepultamento e dá outras providências”.

2)      Matéria tipicamente administrativa. Iniciativa parlamentar. Invasão da esfera da gestão administrativa, reservada ao Poder Executivo Municipal. Violação ao princípio da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado).

3)      Parecer pela procedência da ação direta de inconstitucionalidade.

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei Municipal nº 4.151, 21 de novembro de 2005, de Catanduva, fruto de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre o parcelamento de despesas com velório e sepultamento e dá outras providências”.

Sustenta o requerente a inconstitucionalidade da norma em razão de sua incompatibilidade vertical com nosso sistema constitucional, por ofensa aos arts. 5º, 25 e 144 da Constituição do Estado.

Foi indeferido o pedido de liminar (fls. 19).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa quanto ao ato normativo (fls. 27, e 29/30).

A Presidência da Câmara Municipal prestou informações (fls. 32/33).

É o relato do essencial.

A Lei Municipal nº 4.151, 21 de novembro de 2005, de Catanduva, fruto de iniciativa parlamentar, que “dispõe sobre o parcelamento de despesas com velório e sepultamento e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

“(...)

Art. 1º. O Serviço Funerário do Município de Catanduva oferecerá a possibilidade de parcelamento, em pelo menos 6 (seis) vezes, das despesas com velório e sepultamento, para famílias que tenham a renda mensal de até 3 (três) salários mínimos.

Art. 2º. Os munícipes que não tiverem condições de pagar as despesas com velório e sepultamento, passarão em triagem junto a Assistência Social.

Art. 3º. As despesas com velório e sepultamento a que se refere o artigo anterior serão pagas pela Assistência social, a preço de custo, cujo valor será repassado à Funerária Municipal de Catanduva.

Art. 4º. O Poder Executivo regulamentará o disposto nesta lei no prazo de 60 (sessenta) dias contados da data de publicação.

Art. 5º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas, as disposições em contrário.

(...)”

O ato normativo em análise viola o princípio da separação de poderes, previsto no art. 5º, bem como decorrente do art. 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista.

A questão é objetiva.

A lei municipal hostilizada é fruto de iniciativa parlamentar, determinando o parcelamento de despesas com velório e sepultamento junto à Funerária Municipal, bem como a atuação da área da Assistência Social do Município em determinados casos.

Em que pese a boa intenção que certamente animou o Vereador autor do projeto de lei que se converteu no diploma ora questionado, é certo que determinar ou não a realização de parcelamento relativamente a preço público ou tarifa, decorrente de determinado serviço municipal é matéria a cargo do Poder Executivo, ou seja, da Administração Pública.

         Em síntese, cabe nitidamente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito do tema.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Tal afirmação encontra apoio na autorizada doutrina de Hely Lopes Meirelles (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Nem se chegaria à conclusão diversa a partir da afirmação de que a lei ora questionada é simples “lei autorizativa”, da qual não resta nenhuma imposição para o administrador público.

Em trabalho, publicado na Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da Instituição Toledo de Ensino (Bauru, n. 29, ago/nov. 2000, pp. 259-267), disponível também na internet (Endereço eletrônico: www.srbarros.com.br), sustenta o Professor Sérgio Resende de Barros:

“(...)

Em 17 de março de 1982 – ainda sob a Constituição (Emenda Constitucional nº 1/69) anterior à atual – o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou representação (nº 993-9) por inconstitucionalidade de uma lei estadual (Lei nº 174, de 8/12/77, do Estado do Rio de Janeiro) que autorizava o Chefe do Poder Executivo a praticar ato que já era de sua competência constitucional privativa. Nesse julgamento, decidiu, textualmente: O só fato de ser autorizativa a lei não modifica o juízo de sua invalidade por falta de legítima iniciativa. Não obstante a clareza do acórdão (Diário da Justiça de 8/10/82, p. 10187, Ementário nº 1.270-1, RTJ 104/46), persistiu por toda a Federação brasileira, nos níveis estadual e municipal, a prática de "leis" autorizativas (...).

 Insistente na prática legislativa brasileira, a "lei" autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de "leis" passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu "lei" autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente. Autorizativa é a "lei" que – por não poder determinar – limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da "lei" começa por uma expressão que se tornou padrão: "Fica o Poder Executivo autorizado a...". O objeto da autorização – por já ser de competência constitucional do Executivo – não poderia ser "determinado", mas é apenas "autorizado" pelo Legislativo. Tais "leis", óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente.

 (...)

 Pelo que, se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei é inconstitucional. Não é só inócua ou rebarbativa. É inconstitucional, porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir, ferindo a Constituição por ele estatuída. O fato de ser mera autorização não elide o efeito de dispor, ainda que de forma não determinativa, sobre matéria de iniciativa alheia aos parlamentares. Vale dizer, a natureza teleológica da lei – o fim: seja determinar, seja autorizar – não inibe o vício de iniciativa. A inocuidade da lei não lhe retira a inconstitucionalidade. A iniciativa da lei, mesmo sendo só para autorizar, invade competência constitucional privativa.

 (...)

A jurisprudência do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo corrobora o entendimento aqui sustentado. Confiram-se, a título de exemplificação, os seguintes precedentes do Col. Órgão Especial: ADI. 0323870-55.2010.8.26.0000, Rel. Barreto Fonseca, j. 3.2.2011; ADI 150.400-0/6-00, Rel. Renato Nalini, j. 12.12.2007.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 4.151, de 21 de novembro de 2005, de Catanduva.

São Paulo, 15 de março de 2013.

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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