Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº  0265018-67.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Jundiaí

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Jundiaí

 

Ementa:

1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal n. 7.702, de 13 de junho de 2011, do Município de Jundiaí. Iniciativa parlamentar. Dispensa do pagamento de custas (ônus financeiro administrativo não –tributário) a pessoa com deficiência ou mobilidade reduzida.

2) Dispensa, por lei de iniciativa parlamentar, de recolhimento de custo (preço público) decorrente do exercício de atividade (prestação de serviço) pela Administração. Matéria que se enquadra no conceito de “gestão executiva”, que envolve planejamento, direção, organização e execução de atos de governo. Violação da regra da separação de poderes (art.5º, c.c. o art.144 da Constituição do Estado).

3) Competência exclusiva do Poder Executivo para a fixação, modificação ou extinção de preços públicos (art.159, parágrafo único, c.c. o art.144 da Constituição do Estado).

4) Vedação à sanção de projeto de lei que crie despesas sem indicação das fontes de receita (art. 25 da Constituição do Estado).

5)Inconstitucionalidade reconhecida.

Colendo Órgão Especial,

                Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente:

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito do Município de Jundiaí, tendo por objeto a Lei n. 7.702, de 13 de junho de 2011, que “isenta de custas a pessoa com deficiência ou mobilidade reduzida”.

A inicial indica vício de iniciativa, eis que a adoção de referida postura municipal deveria decorrer de projeto de iniciativa do Chefe do Poder Executivo. Assenta que legislação referente à isenção de custas é privativa do Poder Executivo, à luz do que dispõe o art. 61, § 1º, inciso II, letra “b”, do Constituição Federal, e art. 174 da Constituição do Estado de São Paulo, aplicáveis aos Municípios por conta do art. 144 da Carta Paulista.

Ao lado da inconstitucionalidade formal acima mencionada, a inicial indica inconstitucionalidade material, por conta de ofensa ao art. 25 da Constituição Estadual, diante de renúncia de receita.

O pedido de medida liminar foi deferido (fl. 26).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações (fls. 38/40). A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 64/67).

Eis, em síntese, o relatório.

A Lei Municipal n. 7.702, de 13 de junho de 2011, de Jundiaí, fruto de iniciativa parlamentar e que, conforme respectiva rubrica, “isenta de custas a pessoa com deficiência ou mobilidade reduzida”, é verticalmente incompatível com a Constituição Estadual.

 Saliente-se, de antemão, que o fundamento para o reconhecimento da inconstitucionalidade do ato normativo não é a reserva de iniciativa do Chefe do Executivo, conforme menciona a inicial.

A reserva de iniciativa é matéria de direito estrito, e só deve ser reconhecida nos casos taxativamente previstos na Constituição Federal ou Estadual. Suas hipóteses estão indicadas taxativamente no art.61, §1º, da Constituição Federal, e no art.24, §2º, da Constituição Paulista, não incluindo matéria tributária. Aliás, é pacífico o entendimento, no âmbito do E. Supremo Tribunal Federal, no sentido da inexistência de reserva de iniciativa em matéria de legislação tributária, inclusive no que toca aos casos de leis tributárias benéficas. Confira-se: MS 22.690, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-4-97, DJ de 7-12-06.

Entretanto, a hipótese aqui versada é distinta. Não se trata de lei tributária benéfica, mas sim de diploma que diz respeito à cobrança de preço público. O que a lei concede é a isenção do pagamento de custas, definidas pela própria legislação como “ônus financeiro administrativo não-tributário”.

Não se tratando de matéria tributária, mas sim de preços públicos, sua fixação, modificação ou isenção é matéria que cabe ao Poder Executivo.

Anote-se, com Hely Lopes Meirelles, que preço público é cobrado pela Administração Pública que o fixa, prévia e unilateralmente, por ato do Executivo, para remuneração de serviços e utilidades prestados diretamente por seus órgãos, ou indiretamente por seus delegados (concessionários e permissionários), mas sempre facultativos para os usuários. Enquanto a taxa (tributo) só pode ser instituída por lei, o preço público ou tarifa “pode ser estabelecida e modificada por decreto ou por outro ato administrativo” (Direito Municipal Brasileiro, 6ª ed., 3ª tir., São Paulo, Malheiros, 1993, p.145). No mesmo sentido é o posicionamento de José Nilo de Castro, Direito Municipal Positivo, 6ªed., Belo Horizonte, Del Rey, 2006, p.240.

Embora seja notória a dificuldade de estabelecer a distinção entre taxa e preço público, anota Luciano Amaro que, de todas as elaborações teóricas, “é possível identificar uma linha comum: tem-se procurado dizer que ‘alguns’ serviços (ditos ‘essenciais’, ‘próprios’, ‘inerentes’, indispensáveis’ ou ‘compulsórios’, ou ‘públicos’, em determinado sentido estrito) devem ser taxados, enquanto ‘outros’ serviços’ (sem aqueles qualificativos) podem ser taxados ou tarifados (ou devem ser tarifados)”. Na última hipótese é que se reconhece a figura da tarifa ou preço público (Direito Tributário Brasileiro, 13ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.43).

Note-se que a dificuldade de estabelecimento de critérios para a diferenciação entre taxas e preços públicos é sentida também na doutrina estrangeira, havendo respeitável posição, inclusive, no sentido de que caberia ao Poder Público escolher o regime público (taxas) ou privado (preços) para remuneração dos serviços que presta. Confira-se: José Juan Ferreiro Lapatza, Direito Tributário – Teoria Geral do Tributo, São Paulo, edição conjunta Marcial Pons e Manole, 2007, p.176/180.

Diante do quadro, recomendável é adotar-se o posicionamento do E. Supremo Tribunal Federal. A Suprema Corte Brasileira identificou na facultatividade da imposição, em síntese, a nota distintiva, reconhecendo-a como principal fundamento para a diferenciação, nos termos do verbete nº 545 da Súmula de sua jurisprudência dominante, assim vazada: “Súmula nº 545: Preços de serviços públicos e taxas não se confundem, porque estas, diferentemente daqueles, são compulsórias e têm sua cobrança condicionada à prévia autorização orçamentária, em relação à lei que às instituiu.”

Nesse contexto, o ato legislativo que trata de preço público, mormente se decorrente de iniciativa parlamentar, invade a esfera da gestão administrativa, sendo contrário ao princípio da separação de Poderes, previsto no art.5º da Constituição Paulista.

Veja-se que a lei ora guerreada deixa expresso que a isenção refere-se às custas, definidas como “ônus financeiro administrativo não-tributário”; logo, não se trata de taxa.

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

 Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e a independência que deve existir entre os poderes estatais.

Como não se trata de tributo, é forçoso concluir que a isenção de custas prevista na Lei Municipal nº 7.702/2011refere-se efetivamente à remuneração pelos serviços prestados pelo Poder Público para atendimento à solicitação do particular.

E remuneração pelo serviço que não se enquadra como taxa é tarifa ou preço público.

Ademais, forçoso reconhecer também que o ato normativo impugnado violou o disposto no art.159, parágrafo único, da Constituição do Estado (aplicável aos Municípios por força do art.144 da mesma Carta), pelo qual “Os preços públicos serão fixados pelo Executivo, observadas as normas gerais de Direito Financeiro e as leis atinentes à espécie”.

Em outros termos, se cabe ao Poder Executivo, por decreto, fixar o preço, cabe a ele também – não ao Legislativo – modificar o valor ou isentar quanto ao pagamento.

Nesse sentido já se posicionou esse C. Órgão Especial, como se infere dos julgados a seguir transcritos:

“Ação direta de inconstitucionalidade - Lei n° 5.957, de 13 de junho de 2001, que dispõe sobre dispensa do pagamento de taxa de inscrição em concurso público, realizado por órgãos da administração municipal - Alegada afronta ao artigo 24, § 2o, "4" da Constituição Estadual - Ato normativo de iniciativa do Poder Legislativo - Ato típico de administração, cujo exercício e controle cabem ao Chefe do Poder Executivo – Ofensa ao principio da separação dos poderes - Matéria não afeta ao regime jurídico dos servidores públicos - Momento anterior ao da caracterização do candidato como servidor público - Não incidência da cláusula da reserva de iniciativa legislativa - Valor cobrado com natureza de preço público - Competência privativa do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 24, § 2o, "4", 25, 144 e 159, parágrafo único, todos da Constituição Estadual - Ação procedente.” (ADI 158.730-0/0-00, rel. des. Debatin Cardoso, v.u., j.1º.10.2008).

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n° 6.505, de 13 de fevereiro de 2006, do município de Franca que “dispõe sobre a isenção da taxa de inscrição nos concursos públicos, realizados pela Prefeitura municipal de Franca, aos candidatos com baixa renda familiar ou portadores de necessidades especiais". Ato normativo de iniciativa de vereador que invade seara própria do prefeito, no que toca ao gerenciamento dos serviços públicos. Natureza de preço público da cobrança dispensada. Competência privativa do Executivo. Ausência de especificação dos recursos para seu atendimento. Violação dos artigos 5º, 25, 144, 159, parágrafo único, todos da Constituição Estadual. Precedente desta corte. Pedido julgado procedente.” (ADI nº 160 027-0/1-00, rel. des. Oscarlino Moeller, v.u., j. 25.06.2008.

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei n° 2.152, de 23/8/2002, do Município de Guararema - Vício de iniciativa - Caracterização - Usurpação de atribuições pertinentes a atividades próprias do Poder Executivo - Ocorrência - Princípio da independência e harmonia entre os poderes - Violação - Invasão de competência do Executivo, pelo Legislativo – Preço público - Fixação pelo Executivo - Desrespeito aos princípios orçamentários constitucionais - Criação de despesa pública sem indicação dos recursos disponíveis para atendê-la - Impossibilidade - Afronta aos arts. 5º, 25, 47, incisos II e XVII, e 159 e seu parágrafo único da Constituição Estadual - Inconstitucionalidade declarada - Ação procedente.” (ADIN nº 124.053-0/6, rel. des. Sousa Lima, v.u., j. 19.04.2006.).

Finalmente, é necessário recordar que a Constituição do Estado prevê, em seu art. 25, que “nenhum projeto de lei que implique a criação ou aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos”. Com base nesse dispositivo, esse C. Órgão Especial tem reconhecido a inconstitucionalidade de leis que criem encargos financeiros para o Poder Público, sem indicação da respectiva fonte de receitas. Confira-se: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.; ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.; ADI 135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u..

3)Conclusão.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência da presente ação direta de inconstitucionalidade.

São Paulo, 8 de abril de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

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