Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0265019-52.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Jundiaí

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Jundiaí

 

 

Ementa:

 

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 7.650,  de 28 de março de 2011, do Município de Jundiaí, de iniciativa parlamentar, que “Regula recolhimento e destinação de pneus inservíveis”.

2)      A instituição de programas e serviços administrativos, por órgãos do Poder Executivo, é matéria da reserva da Administração e da iniciativa legislativa reservada do chefe do Poder Executivo, sendo inconstitucional lei de iniciativa parlamentar, maculada ainda pela ausência de fonte para cobertura de novos gastos públicos (art. 25 da Constituição Estadual). Violação do princípio da separação de poderes (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144 da Constituição do Estado).

3)      Parecer pela procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade, tendo como alvo a Lei nº 7.650, de 28 de março de 2011, do Município de Jundiaí, de iniciativa parlamentar, que “Regula recolhimento e destinação de pneus inservíveis”.

Sustenta o requerente que a lei é inconstitucional por conter vício de iniciativa, violação do princípio da separação dos poderes e por criar despesas sem indicação dos recursos disponíveis. Daí, a afirmação de ofensa ao disposto nos arts.  5º, 25, 47, II, 111 e 144 da Constituição Estadual.

O pedido de medida liminar foi indeferido (fls. 42/43).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 52/53).

Notificado, o Presidente da Câmara Municipal prestou informações defendendo a validade do ato normativo impugnado              (fls. 56/58).

É o breve relato do ocorrido nos autos.

Procede o pedido.

Com efeito, a Lei nº 7.650, de 28 de março de 2011, do Município de Jundiaí, de iniciativa parlamentar, tem a seguinte redação:

“Art. 1º - Todo estabelecimento comercial que manuseie pneus inservíveis disporá de local seguro para recolhimento desse produto, atendendo às normas técnicas e à legislação em vigor no país.

Parágrafo único. O estabelecimento afixará, em local visível, placa em tamanho e com letras facilmente legíveis, contendo os seguintes dizeres: “Pneus usados podem transformar-se em focos de mosquitos transmissores de doenças como  dengue, malária ou febre amarela. Se jogados em rios ou córregos provocam enchentes. Se queimados a céu aberto liberam enxofre. Cuide do meio ambiente e da saúde de todos!.”

Art. 2º -  Quanto aos locais de armazenamento:

I- serão compatíveis com o volume e segurança do material armazenado;

II-serão cobertos e fechados de maneira a impedir a acumulação de água;

III-serão sinalizados corretamente, alertando para os riscos do material a ser armazenado;

IV- o sistema de escoamento de água não poderá se ligado à rede de esgoto ou de águas pluviais.

Parágrafo único. O armazenamento dos pneus inservíveis far-se-á de maneira ordenada e classificada de acordo com as dimensões do produto.

Art. 3º - Regulamento do Executivo disporá sobre a destinação final do passivo gerado e/ou adquirido, relativamente ao produto objeto desta lei.

Art. 4º - A infração do disposto nesta lei implica:

I- notificação por escrito, na primeira ocorrência;

II- multa de R$ 1.000,00 (mil reais), se no prazo de 30 (trinta) dias da notificação esta não for atendida;

III- multa de R$ 2.000,00 (dois mil reais) e cassação da licença do estabelecimento, no caso de nova reincidência.

§1º - A atualização monetária das multas far-se-á com base na variação ao Índice de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA, medido pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, ou outro que venha a ser instituído pelo Governo Federal.

§2º - Enquanto não houver um sistema de coleta e destinação final implantado, nos termos do parágrafo primeiro deste artigo, para a coleta ou recepção de pneus inservíveis, a Prefeitura disponibilizará local adequado para recebimento destes, dando-lhes destinação adequada.

Art. 6º - Regulamento do executivo disporá sobre a realização de campanha esclarecendo sobre os riscos que os pneus inservíveis representam para o meio-ambiente e a população, bem como orientando sobre a destinação ambientalmente correta desses produtos.

Art. 7º - Os pneumáticos recolhidos destinar-se-ão à pavimentação asfáltica, em processo úmido ou em processo seco, na proporção mínima de 80% (oitenta por cento) do total dos pneumáticos recolhidos, observando-se a quantidade e os prazos fixados pela Resolução do CONOMA n. 258/1999.

Parágrafo único. A Secretaria Municipal de Planejamento e Meio Ambiente promoverá periodicamente, através de uma organização do terceiro setor, um levantamento sobre a demanda existente do produto pneumático para fins de pavimentação asfáltica, com prioridade para as regiões com mais carência em asfalto.

Art. 8º - As despesas decorrentes da implantação desta lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

Art. 9º - Esta lei será regulamentada pelo Executivo.

Art. 10 – São revogados:

I – a Lei n. 5.442, de 17 de abril de 2000; e

II- o inciso III do art. 1º da Lei n. 6.170, de 18 de novembro de 2003, introduzido pela Lei n. 7.038, de 09 de abril de 2008.

Art. 11- Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”

 

Verifica-se que a Lei Municipal impugnada instituiu programa para o recolhimento e destinação de pneus inservíveis.

O ato normativo impugnado, de iniciativa parlamentar, é verticalmente incompatível com nosso ordenamento constitucional por violar o princípio da separação de poderes, previsto nos arts. 5 e 47, II e XIV, da Constituição do Estado, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da Carta Paulista, os quais dispõem o seguinte:

“Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 47 – Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II – exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

XIV – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;

Art. 144 – Os Municípios, com autonomia, política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

A questão é objetiva.

Cabe exclusivamente ao Poder Executivo a criação ou instituição de programas e serviços nas diversas áreas de gestão, envolvendo os órgãos da Administração Pública Municipal e a própria população.

Assim, quando o Poder Legislativo do Município edita lei criando ou “autorizando o Poder Executivo a criar” novo programa de governo, disciplinando-o total ou parcialmente, como ocorre, no caso em exame, em função da criação do programa para a o recolhimento e destinação de pneus inservíveis invade, indevidamente, esfera que é própria da atividade do administrador público, violando o princípio da separação de poderes.

Observa-se que o Poder Legislativo não se limitou à criação do programa, ao contrário, disciplinou-o de forma específica e impôs obrigações ao Poder Executivo (incentivar a implantação de unidades e reciclagem de pneus inservíveis, bem como a utilização alternativa de maneira ambientalmente correta desse produto; providenciar um local adequado para o recebimento dos pneus em local adequado, enquanto não houver um sistema de coleta e destinação implantado; expedição de regulamento dispondo sobre a realização de campanhas esclarecendo os riscos que os pneus inservíveis representam para o meio ambiente e para a população, bem como orientando sobre a destinação correta desses produtos e, por fim, a realização periódica de um levantamento sobre a demanda existente do produto pneumático para fins de pavimentação asfáltica) (arts  5º, §§ 1º e 2º,  6º e art. 7º, parágrafo único).

A criação de programas com previsão de novas obrigações aos órgãos municipais é atividade nitidamente administrativa, representativa de atos de gestão, de escolha política para a satisfação das necessidades essenciais coletivas, vinculadas aos Direitos Fundamentais. Assim, privativa do Poder Executivo.

Cabe essencialmente à Administração Pública, e não ao legislador, deliberar a respeito da conveniência e oportunidade de programas em benefício da população. Trata-se de atuação administrativa que decorre de escolha política de gestão, na qual é vedada intromissão de qualquer outro Poder.

A inconstitucionalidade, portanto, decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art. 5º, art. 47, II e XIV, e art. 144).

É pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público.

De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O diploma impugnado, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo, no caso em análise, representados pela criação de programa destinado à coleta de medicamentos vencidos por farmácias e drogarias no Município de Jundiaí. A atuação legislativa impugnada equivale à prática de ato de administração, de sorte a violar a garantia constitucional da separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. (...) O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15. ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

É ponto pacífico que “as regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.). Como desdobramento particularizado do princípio da separação dos poderes (art. 5º, Constituição Estadual), a Constituição do Estado de São Paulo prevê no art. 24, § 2º, 2, iniciativa legislativa reservada do chefe do Poder Executivo (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) para “a criação e extinção das Secretarias de Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX”, o que compreende a fixação ou alteração das atribuições dos órgãos da Administração Pública Direta.

Também prevê no art. 47 (aplicável na órbita municipal por obra de seu art. 144) competência privativa do chefe do Poder Executivo. O dispositivo consagra a atribuição de governo do chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.

A alínea a do inciso XIX desse art. 47, fornece ao chefe do Poder Executivo a prerrogativa de dispor mediante decreto sobre “organização e funcionamento da administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos”, em preceito semelhante ao art. 84, VI, a, da Constituição Federal. Por sua vez, os incisos II e XIV estabelecem competir-lhe o exercício da direção superior da administração e a prática dos demais atos de administração, nos limites da competência do Poder Executivo.

A inconstitucionalidade transparece exatamente pelo divórcio da iniciativa parlamentar da lei local com esses preceitos da Constituição Estadual.

Pois, ao instituir programa ou serviço administrativo, de um lado, ela viola o art. 47, II, XIV e XIX, a, no estabelecimento de regras que respeitam a direção da administração e a organização e o funcionamento do Poder Executivo, matéria essa que é da alçada da reserva da Administração, e de outro, ela ofende o art. 24, § 2º, 2, na medida em que impõe atribuição ao Poder Executivo.

Neste sentido, a jurisprudência:

“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.

I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.

II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.

III. - Precedentes do STF.

IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI 2.719-1-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 20-03-2003, v.u.).

“É indispensável a iniciativa do Chefe do Poder Executivo (mediante projeto de lei ou mesmo, após a EC 32/01, por meio de decreto) na elaboração de normas que de alguma forma remodelem as atribuições de órgão pertencente à estrutura administrativa de determinada unidade da Federação” (STF, ADI 3.254-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 16-11-2005, v.u., DJ 02-12-2005, p. 02).

“Ação direta de inconstitucionalidade - Ajuizamento pelo Prefeito de São José do Rio Preto - Lei Municipal n°10.241/08 cria o serviço de fisioterapia e terapia ocupacional nas unidades básicas de saúde e determina que as despesas decorrentes 'correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário' - Matéria afeta à administração pública, cuja gestão é de competência do Prefeito - Vício de iniciativa configurado - Criação, ademais, de despesas sem a devida previsão de recursos - Inadmissibilidade - Violação dos artigos 5° e 25, ambos da Constituição Estadual - Inconstitucionalidade da lei configurada - Ação procedente” (ADI 172.331-0/1-00, Órgão Especial, Rel. Des. Walter de Almeida Guilherme, v.u., 22-04-2009).

Além disso, invade a denominada reserva de Administração, como já decidido:

“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais” (STF, ADI-MC 2.364-AL, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 01-08-2001, DJ 14-12-2001, p. 23).

De outro lado, e não menos importante, a lei local contestada colide frontalmente com o art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo.

A norma combatida, ao instituir programa ou serviço de incumbência do Poder Executivo, não indica os recursos orçamentários necessários para a cobertura dos gastos advindos que, no caso, são evidentes porquanto ordenam atividades novas na Administração Pública, cuja instituição demanda meios financeiros que não foram previstos, não servindo a tanto a genérica menção a rubricas orçamentárias próprias.

A ausência desses recursos impede o cumprimento da gestão financeira responsável.

Diante do exposto, aguarda-se seja o pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 7.650, de 28 de março de 2011, do Município de Jundiaí.  

São Paulo, 8 de abril de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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