Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 0265025-59.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito Municipal de Jundiaí

 

 

 

Ementa:

1)     Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 7.618, de 21 de dezembro de 2010, de Jundiaí, que “exige da instituição de crédito informar a opção de quitação antecipada do débito”.

2)     Ausência de inconstitucionalidade. Lei municipal que, no exercício de competência suplementar e restrita ao interesse local, complementa a proteção constante da legislação federal e estadual relativamente à defesa do consumidor (art. 24, V e VIII c. c. o art. 30, I e II da CF). Inexistência de reserva de iniciativa do Chefe do Poder Executivo (art. 61, § 1º da CF). Inexistência de contrariedade ao art. 144 da CF.

3)     Parecer pela improcedência da ação direta.

 

 

 

 

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

 

Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Jundiaí, tendo como alvo a Lei Municipal nº 7.618, de 21 de dezembro de 2010, de Jundiaí, que “Exige da instituição de crédito informar opção de quitação antecipada do débito”.

O requerente alega inconstitucionalidade por tratar o diploma legal de assunto inerente ao sistema financeiro nacional, por versar matéria da competência privativa da União, e ainda reserva de iniciativa do Chefe do Poder Executivo Municipal.

Assinala, assim, contrariedade aos seguintes dispositivos da Constituição do Estado: art. 47, II, e art. 144.

Foi indeferido o pedido de liminar (fls. 30/31).

Citado, o senhor Procurador-Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo (fls. 39, 72/74).

A Câmara Municipal prestou informações (fls. 41/43).

É o relato do essencial.

A Lei Municipal nº 7.618, de 21 de dezembro de 2010, que “Exige da instituição de crédito informar opção de quitação antecipada do débito”, tem o seguinte teor:

“(...)

Art. 1º. O estabelecimento que opere com outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor para fornecimento de produtos ou serviços fica obrigado a:

I – imprimir nos carnês de pagamento:

a) os seguintes dizeres: ‘O Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal 8.078/90) garante ao consumidor a liquidação antecipada do débito, total ou parcial, com redução proporcional de juros e demais acréscimos’;

b) o valor referente ao desconto diário previsto para o caso de liquidação antecipada do débito, com os percentuais correspondentes à redução proporcional dos juros e demais acréscimos;

II – manter afixado no local de atendimento ao público, em posição de fácil visibilidade para o consumidor, cartaz ou placa legível à distância com os dizeres previstos na alínea ‘a’ do inciso I deste artigo.

Art. 2º. O descumprimento do disposto no art. 1º sujeita o infrator à multa no valor de:

I – R$ 2.000,00 (dois mil reais);

II – R$ 4.000,00 (quatro mil reais), na primeira reincidência;

III – R$ 8.000,00 (oito mil reais), na segunda reincidência.

Parágrafo único. Considera-se reincidência, para fim do disposto neste artigo, a persistência de uma ocorrência ou a constatação de uma nova quanto decorridos 5 (cinco) dias ou mais da imposição de multa imediatamente anterior.

Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

(...)”

Com a devida vênia, a ação deve ser julgada improcedente.

Note-se, inicialmente, que a lei em exame não trata do sistema financeiro nacional, e não discorre, ao contrário do que afirma a petição inicial da ação direta, sobre matéria da competência privativa do legislador federal.

A lei municipal em exame apenas dispôs a respeito da necessidade de prestação de informações ao consumidor, prevendo, em suma, que as instituições noticiem aos beneficiários de crédito ou de financiamento a possibilidade de quitação antecipada do débito, com seus corolários lógicos, ou seja, redução proporcional de juros e demais acréscimos.

Observe-se que sendo competência concorrente da União e dos Estados legislar sobre produção e consumo, bem como sobre a responsabilidade por dano causado ao consumidor (art. 24, V e VIII, da CF), não há impedimento a que os Municípios complementem a legislação federal, nessa seara, no que couber, ou seja, naquilo que se refira ao interesse local (art. 30, I e II, da CF).

Esse é o entendimento pacífico do Col. STF, aplicável à hipótese mutatis mutandis:

“(...)

Atendimento ao público e tempo máximo de espera na fila. Matéria que não se confunde com a atinente às atividades fim das instituições bancárias. Matéria de interesse local e de proteção ao consumidor. Competência legislativa do Município. (RE 432.789, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 14-6-2005, Primeira Turma DJ de 7-10-2005.) No mesmo sentido: RE 285.492-AgR, rel. min. Joaquim Barbosa, julgamento em 26-6-2012, Segunda Turma, DJE de 28-8-2012;  RE 357.160-AgR, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 13-12-2011, Segunda Turma, DJE de 23-2-2012; RE 610.221-RG, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 29-4-2010, Plenário, DJE de 20-8-2010, com repercussão geral; AC 1.124-MC, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 9-5-2006, Primeira Turma, DJ de 4-8-2006; AI 427.373-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 13-12-2006, Primeira Turma, DJ de 9-2-2007.

(...)”

Não há, portanto, ofensa ao art. 144 da Constituição do Estado, pois não foi desrespeitado o princípio estabelecido consistente na repartição constitucional de competências, tendo em vista que a matéria constante da lei municipal impugnada não se insere na hipótese prevista no art. 22, VII e XIX, da CF, como pretendeu a inicial.

Insista-se: é absolutamente evidente que a lei não trata de política de crédito, câmbio, seguro e transferência de valores, e tampouco de sistemas de poupança, captação e garantia da poupança popular.

Por outro lado, não houve quebra do princípio da separação de poderes, pelo só fato de que a lei prevê a existência de infração administrativa e multa em caso de descumprimento.

Em que pese nosso respeito pelo entendimento adotado pelo autor, a norma impugnada não é inconstitucional por tal fundamento, e caso seja julgada procedente a ação direta, isso significará contrariedade aos art. 2º, 61, e 125, § 2º, da Constituição da República, pelos motivos expostos a seguir.

Para a construção da argumentação contida na inicial o autor parte da premissa, mais ou menos explícita, de que na fiscalização e na aplicação da lei o Município deverá aparelhar melhor seus órgãos de controle.

Anota expressamente a inicial, cf. fls. 4, que:

“(...)

Lei de iniciativa parlamentar não pode impor dever de fiscalização ao Poder Executivo, visto que isso viola o art. 47, II, da Constituição Estadual. Cabe ao Poder Executivo o exercício de atos de gestão das atividades municipais. Cabe-lhe também a iniciativa das leis que digam respeito a tal atividade. No presente caso, a lei em questão estabelece nítida interferência na atividade de gestão do Poder Executivo, o que não pode ser admitido.

(...)”

Em outras palavras, deixa entrever que na aplicação da lei, indiretamente, poderá ocorrer o aumento de despesas para as quais a lei não indica receitas, pois deverá ser criado órgão de fiscalização, ou haverá alteração na estrutura ou rotina de trabalho dos órgãos de municipais de controle já existentes.

Com a devida vênia, se esse raciocínio estiver correto, doravante restará completamente eliminada a iniciativa legislativa parlamentar.

Isso, na medida em que, como toda lei editada pelo Poder Legislativo exige fiscalização (inerente ao Poder de Polícia da Administração Pública), chegar-se-á à conclusão de que sempre, inexoravelmente, a iniciativa do processo de formação das leis deve partir do Poder Executivo.

Esse raciocínio, ao esvaziar a iniciativa parlamentar para o processo de formação das leis, contraria o art. 61 da Constituição da República (que é reproduzido pelo art. 24 da Constituição Paulista), bem como contraria o art. 2º da Constituição da República (que é reproduzido pelo art. 5º da Constituição Estadual).

O equívoco dessa construção, com absoluto respeito, fala por si mesmo.

O entendimento pacificado há muito no âmbito do Col. STF, intérprete último da Constituição, é de que reserva de iniciativa é matéria de direito estrito e não pode ser interpretada extensiva ou analogicamente.

E a situação tratada nestes autos não se encaixa em nenhuma das hipóteses taxativamente tipificadas, de reserva de iniciativa do Poder Executivo, previstas no art. 61, § 1º, da CR (reproduzidas no art. 24, § 2º, da Constituição Paulista), aplicáveis, por força do princípio da simetria, ao processo legislativo estadual ou municipal.

Confira-se o precedente a seguir transcrito, aplicável ao caso em exame mutatis mutandis:

“(...)

iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que, por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo, deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca. O ato de legislar sobre direito tributário, ainda que para conceder benefícios jurídicos de ordem fiscal, não se equipara, especialmente para os fins de instauração do respectivo processo legislativo, ao ato de legislar sobre o orçamento do Estado. (ADI 724-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 7-5-1992, Plenário, DJ de 27-4-2001, g.n.)

(...)”

Assim, se não há regra expressa prevendo reserva de iniciativa do Chefe do Executivo, afirmar que ela existe significa contrariar o art. 61, da CF (que estabelece a iniciativa de parlamentares para o processo de formação das leis e os casos limitados de reserva de iniciativa do Chefe do Executivo), bem como contrariar o art. 2º da CF, dando ao princípio da separação de poderes alcance que ele não tem.

Mas não é só.

Observe-se que a lei não cria diretamente órgão administrativo para fins de fiscalização, nem estabelece rotina para o controle, por parte do Poder Público local, quanto ao seu cumprimento.

Dessa forma, saber se haverá ou não aumento de despesa sem previsão de receita, para fins de aplicação do art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo, é uma questão de fato.

Mais ainda é possível afirmar.

Saber se haverá ou não aumento de despesa sem previsão de receita, é, em verdade, uma conjectura relativamente aos fatos.

Mas o exame de questões de fato (ou de conjecturas relativamente aos fatos) é vedado em sede de ação direta de inconstitucionalidade.

Isso, porque o art. 125, § 2º, da CF apenas autoriza o constituinte estadual a instituir “representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual”.

Em outras palavras, por força do art. 125, § 2º, da CF, é legitimada a previsão na Constituição do Estado da ação direta de inconstitucionalidade por força da qual o Tribunal de Justiça pode examinar a compatibilidade entre leis locais e a Carta Estadual.

A Constituição da República não autorizou, entretanto, que para examinar a inconstitucionalidade de leis locais no processo objetivo, o Tribunal de Justiça examine questões de fato.

Aliás, nem ao Col. STF foi concedida tal autorização, pois o que a Constituição permite à Suprema Corte, no art. 102, I, “a”, é que seja examinada, apenas, a “inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal”.

A Constituição da República, por meio de tais dispositivos, criou mecanismos de controle abstrato, e não concreto, sobre a constitucionalidade das leis.

Daí o entendimento absolutamente pacífico no sentido de que, no processo objetivo, a cognição da Corte está limitada ao confronto direto entre a lei e a norma constitucional indicada como parâmetro de controle, sendo inviável estender esse exame à análise de inconstitucionalidades reflexas ou às questões de fato.

Nesse sentido, no STF, mutatis mutandis: ADI 1.347-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 5-10-1995, Plenário, DJ de 1º-12-1995; ADPF 93-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 20-5-2009, Plenário, DJE de 7-8-2009; ADI 3.376, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 16-6-2005, Plenário, DJ de 23-6-2006; entre outros.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da improcedência da ação direta, afirmando-se a constitucionalidade da Lei Municipal nº 7.618, de 21 de dezembro de 2010, de Jundiaí.

São Paulo, 18 de março de 2013.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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