Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n. 0265031-66.2012.8.26.0000

Requerente: Prefeito do Município de Jundiaí

Requerido: Presidente da Câmara Municipal de Jundiaí

 

 

 

 

 

 

 

Constitucional. Administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 7.580, de 16 de novembro de 2010, do Município de Jundiaí. Preliminar. Parâmetro do contencioso de constitucionalidade de lei municipal. Norma constitucional federal de observância obrigatória. Rejeição. Obrigação de uso do símbolo internacional de acesso à pessoa portadora de deficiência nos estabelecimentos particulares de acesso público. Lei de iniciativa parlamentar. Separação de Poderes. Recursos financeiros. Competência normativa. Improcedência da ação. 1. O controle objetivo de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal tem parâmetro a CE/89, inclusive quando reproduza, imite ou remeta a preceito da CF/88 ou se trate de norma de observância obrigatória (art. 125, § 2º, CF/88), não podendo balizá-lo ofensa à norma infraconstitucional como a Lei Orgânica do Município. 2. Lei municipal, de iniciativa parlamentar, que obriga os estabelecimentos particulares de acesso público ao uso do símbolo internacional de acesso à pessoa portadora de deficiência, e à reserva de local especial para estacionamento, embarque e desembarque dessas pessoas, condicionantes da licença de funcionamento. 3. Inocorrência de invasão da competência normativa (federal e estadual) concorrente para proteção e integração social das pessoas com deficiência por se tratar de matéria da competência normativa municipal, consistente na polícia de construções e edificações, sem avançar à esfera normativa alheia (arts. 24, XIV, e 30, I, II e VIII, CF/88 c.c. art. 144, CE/89). 4. Inconsistência de violação ao art. 25, CE/89, porque a norma não cria direta e imediatamente obrigações financeiras para o poder público, impondo deveres somente aos particulares, não bastasse veicular questão de fato dependente de prova. 5. Princípio da separação de poderes (art. 5º, CE/89) não vulnerado por não revelar o conteúdo da norma contestada violação da reserva da Administração ou da reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo, uma vez que a polícia das construções e edificações e de estabelecimentos particulares de acesso público é matéria da iniciativa comum ou concorrente. 6. Improcedência da ação.

 

 

 

Colendo Órgão Especial:

 

 

1.                Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Prefeito do Município de Jundiaí em face da Lei n. 7.580, de 16 de novembro de 2010, do Município de Jundiaí, de iniciativa parlamentar, que obriga os estabelecimentos particulares de acesso público ao uso do símbolo internacional de acesso à pessoa portadora de deficiência, e à reserva de local especial para estacionamento, embarque e desembarque dessas pessoas, condicionantes da licença de funcionamento, sob alegação de incompatibilidade com os arts. 24, XIV, e 61, § 1º, da Constituição Federal, os arts. 5º, 25 e 144 da Constituição do Estado, e preceitos da Lei Orgânica do Município (fls. 02/07).

2.                A liminar foi negada (fls. 30/31).

3.                O douto Procurador-Geral do Estado de São Paulo declinou da defesa do ato normativo (fls. 41/42).

4.                O Presidente da Câmara Municipal de Campinas sustentou a constitucionalidade da norma sustentando, em suma, mera reprodução da Lei n. 7.405, de 12 de novembro de 1985, exercida sob o pálio dos incisos I e II do art. 30 da Constituição Federal, sem geração de despesas em sua fiscalização, impossibilitando seu controle objeto em face desse parâmetro, postulando a extinção sem resolução do mérito ou a improcedência da ação (fls. 44/48).

5.                É o relatório.

6.                É impróprio para o desate da lide o contraste da norma municipal impugnada com outro parâmetro para além da Constituição Estadual, salvo quando reproduza, imite ou remeta a preceito da Constituição Federal (ou se trate de norma de observância obrigatória), nos termos do art. 125, § 2º, da Constituição Federal.

7.                Qualquer alegação fundada em norma infraconstitucional, como a Lei Orgânica do Município, não merece cognição, tendo em vista que é “inviável a análise de outra norma municipal para aferição da alegada inconstitucionalidade da lei” (STF, AgR-RE 290.549-RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, 28-02-2012, m.v., DJe 29-03-2012).

8.                O art. 144 da Constituição Estadual, que determina a observância na esfera municipal, além das regras da Constituição Estadual, dos princípios da Constituição Federal, é denominado “norma estadual de caráter remissivo, na medida em que, para a disciplina dos limites da autonomia municipal, remete para as disposições constantes da Constituição Federal”, como averbou o Supremo Tribunal Federal ao credenciar o controle concentrado de constitucionalidade de lei municipal por esse ângulo (STF, Rcl 10.406-GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, 31-08-2010, DJe 06-09-2010; STF, Rcl 10.500-SP, Rel. Min. Celso de Mello, 18-10-2010, DJe 26-10-2010).

9.                Daí decorre a possibilidade de contraste da lei local com o art. 144 da Constituição Estadual, por sua remissão à Constituição Federal e a seus arts. 24, XIV e 61, § 1º, que expressam, respectivamente, a competência normativa concorrente entre União e Estados para “proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência”, como técnica elementar de repartição de competências no plano do pacto federativo inerente ao federalismo, e a reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo, tendo em vista que as regras do processo legislativo federal são de observância compulsória pelos Estados e Municípios como vem julgando reiteradamente o Supremo Tribunal Federal:

“(...) 2. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno --- artigo 25, caput ---, impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo. O legislador estadual não pode usurpar a iniciativa legislativa do Chefe do Executivo, dispondo sobre as matérias reservadas a essa iniciativa privativa. (...)” (STF, ADI 1.594-RN, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 04-06-2008, v.u., DJe 22-08-2008).

“(...) I. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que as regras básicas do processo legislativo da Constituição Federal, entre as quais as que estabelecem reserva de iniciativa legislativa, são de observância obrigatória pelos estados-membros. (...)” (RT 850/180).

“(...) 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno (artigo 25, caput), impõe a obrigatória observância de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. (...)” (RTJ 193/832).

“(...) I. - As regras básicas do processo legislativo federal são de observância obrigatória pelos Estados-membros e Municípios. (...)” (STF, ADI 2.731-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 02-03-2003, v.u., DJ 25-04-2003, p. 33).

10.              Portanto, não merece prosperar a preliminar arguida.

11.              A autonomia municipal é condicionada pelo art. 29 da Constituição da República. O preceito estabelece que a Lei Orgânica Municipal e sua legislação deve observância ao disposto na Constituição Federal e na respectiva Constituição Estadual, sendo reproduzido pelo art. 144 da Constituição do Estado. Eventual ressalva à aplicabilidade das Constituições federal e estadual só teria, ad argumentandum tantum, espaço naquilo que a própria Constituição da República reservou como privativo do Município, não podendo alcançar matéria não inserida nessa reserva nem em assunto sujeito aos parâmetros limitadores da auto-organização municipal ou aqueles que contém remissão expressa ao direito estadual.

12.              O princípio federativo, estruturante da organização política e administrativa brasileira (arts. 1º e 18, Constituição Federal), albergado como cláusula pétrea (art. 60, § 4º, I, Constituição Federal), assenta-se na repartição de competências, tendo a Constituição Federal de 1988 arrolado na esfera de competência normativa concorrente federal e estadual a proteção e a integração social da pessoa com deficiência (art. 24, XIV).

10.              A Lei n. 7.580, de 16 de novembro de 2010, do Município de Jundiaí, de iniciativa parlamentar, obriga os estabelecimentos particulares de acesso público ao uso do símbolo internacional de acesso à pessoa portadora de deficiência, e à reserva de local especial para estacionamento, embarque e desembarque dessas pessoas, condicionantes da licença de funcionamento. Eis sua redação:

“Art. 1º. Todo estabelecimento privado de acesso público, como supermercado, cinema, teatro, museu, casa de diversões e espetáculos, hospital e similares, utilizará o símbolo internacional de acesso à pessoa portadora de deficiência, nos termos da Lei federal 7.405, de 12 de novembro de 1985.

Art. 2º. Os estabelecimentos previstos no art. 1º reservarão, ainda, local especial para estacionamento, embarque e desembarque das pessoas portadoras de deficiência, nas especificações legais já existentes.

Art. 3º. Os estacionamentos destinarão espaços, à frente dos locais mencionados nesta lei, com as seguintes especificações:

I – preferencialmente localizadas ao lado esquerdo da via pública, para facilitar o embarque e desembarque das pessoas portadoras de deficiência;

II – nos casos de estacionamento ao lado direito da via pública, haverá um recuo para estacionamento, de modo a tornar possível o embarque e desembarque sem prejuízo ao trânsito e sem risco à pessoa portadora de deficiência.

Parágrafo único. As especificações estabelecidas serão consideradas para a concessão da respectiva licença de funcionamento, cuja inobservância ensejará o indeferimento do pedido.

Art. 4º. O Executivo regulamentará esta lei.

Art. 5º. Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação”.

11.              Por sua vez, a Lei n. 7.405, de 12 de novembro de 2005, editada pela União, nela referida, assim dispõe:

Art. 1º - É obrigatória a colocação, de forma visível, do ‘Símbolo Internacional de Acesso’, em todos os locais que possibilitem acesso, circulação e utilização por pessoas portadoras de deficiência, e em todos os serviços que forem postos à sua disposição ou que possibilitem o seu uso.

Art. 2º - Só é permitida a colocação do símbolo em edificações:

I - que ofereçam condições de acesso natural ou por meio de rampas construídas com as especificações contidas nesta Lei;

II - cujas formas de acesso e circulação não estejam impedidas aos deficientes em cadeira de rodas ou aparelhos ortopédicos em virtude da existência de degraus, soleiras e demais obstáculos que dificultem sua locomoção;

III - que tenham porta de entrada com largura mínima de 90cm (noventa centímetros);

IV - que tenham corredores ou passagens com largura mínima de 120cm (cento e vinte centímetros);

V - que tenham elevador cuja largura da porta seja, no mínimo, de 100cm (cem centímetros); e

VI - que tenham sanitários apropriados ao uso do deficiente.

Art. 3º - Só é permitida a colocação do ‘Símbolo Internacional de Acesso’ na identificação de serviços cujo uso seja comprovadamente adequado às pessoas portadoras de deficiência.

Art. 4º - Observado o disposto nos anteriores artigos 2º e 3º desta Lei, é obrigatória a colocação do símbolo na identificação dos seguintes locais e serviços, dentre outros de interesse comunitário:

I - sede dos Poderes Executivo, legislativo e Judiciário, no Distrito Federal, nos Estados, Territórios e Municípios;

II - prédios onde funcionam órgãos ou entidades públicas, quer de administração ou de prestação de serviços;

III - edifícios residenciais, comerciais ou de escritórios;

IV - estabelecimentos de ensino em todos os níveis;

V - hospitais, clínicas e demais estabelecimentos do gênero;

VI - bibliotecas;

VII - supermercados, centros de compras e lojas de departamento;

VIII - edificações destinadas ao lazer, como estádios, cinemas, clubes, teatros e parques recreativos;

IX - auditórios para convenções, congressos e conferências;

X - estabelecimentos bancários;

XI - bares e restaurantes;

XII - hotéis e motéis;

XIII - sindicatos e associações profissionais;

XlV - terminais aeroviários, rodoviários, ferroviários e metrôs;

XV - igrejas e demais templos religiosos;

XVI - tribunais federais e estaduais;

XVII - cartórios;

XVIII - todos os veículos de transporte coletivo que possibilitem o acesso e que ofereçam vagas adequadas ao deficiente;

XIX - veículos que sejam conduzidos pelo deficiente;

XX - locais e respectivas vagas para estacionamento, as quais devem ter largura mínima de 3,66m ( três metros e sessenta e seis centímetros);

XXI - banheiros compatíveis ao uso da pessoa portadora de deficiência e à mobilidade da sua cadeira de rodas;

XXII - elevadores cuja abertura da porta tenha, no mínimo, 100cm (cem centímetros) e de dimensões internas mínimas de 120cm x 150cm (cento e vinte centímetros por cento e cinqüenta centímetros);

XXIII - telefones com altura máxima do receptáculo de fichas de 120cm (cento e vinte centímetros);

XXIV - bebedouros adequados;

XXV - guias de calçada rebaixadas;

XXVI - vias e logradouros públicos que configurem rota de trajeto possível e elaborado para o deficiente;

XXVII - rampas de acesso e circulação com piso antiderrapante; largura mínima de 120cm (cento e vinte centímetros); corrimão de ambos os lados com altura máxima de 80cm (oitenta centímetros); proteção lateral de segurança; e declive de 5% (cinco por cento) a 6% (seis por cento), nunca excedendo a 8,33% (oito vírgula trinta e três por cento) e 3,50m (três metros e cinqüenta centímetros) de comprimento;

XXVIII - escadas com largura mínima de 120cm (cento e vinte centímetros); corrimão de ambos os lados coma altura máxima de 80cm (oitenta centímetros) e degraus com altura máxima de 18cm (dezoito centímetros) e largura mínima de 25cm (vinte e cinco centímetros).

Art. 5º - O ‘Símbolo Internacional de Acesso’ deverá ser colocado, obrigatoriamente, em local visível ao público, não sendo permitida nenhuma modificação ou adição ao desenho reproduzido no anexo a esta Lei.

Art. 6º - É vedada a utilização do ‘Símbolo Internacional de Acesso’ para finalidade outra que não seja a de identificar, assinalar ou indicar local ou serviço habilitado ao uso de pessoas portadoras de deficiência.

Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo não se aplica à reprodução do símbolo em publicações e outros meios de comunicação relevantes para os interesses do deficiente.

Art. 7º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 8º - Revogam-se as disposições em contrário”.

12.              Constata-se de sua leitura que a obrigação de uso do símbolo mencionado já consta dessa lei federal relativamente aos estabelecimentos referidos na lei municipal (art. 4º, VIII), bem como que aquela também trata de estacionamentos para pessoas com deficiência (art. 4º, XX).

13.              Esses preceitos estão concordes ao § 2º do art. 227 da Constituição da República cuja redação estabelece que:

“A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência”.

14.              E também ao traçado da Constituição do Estado de São Paulo:

“Artigo 266 - As ações do Poder Público e a destinação de recursos orçamentários para o setor darão prioridade: 
(....)
V - à adequação dos locais já existentes e previsão de medidas necessárias quando da construção de novos espaços, tendo em vista a prática de esportes e atividades de lazer por parte dos portadores de deficiências, idosos e gestantes, de maneira integrada aos demais cidadãos. 

(...)

Artigo 277 - Cabe ao Poder Público, bem como à família, assegurar à criança, ao adolescente, ao idoso e aos portadores de deficiências, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e agressão.

(...)
Artigo 278 - O Poder Público promoverá programas especiais, admitindo a participação de entidades não governamentais e tendo como propósito: 
(...)
IV - integração social de portadores de deficiências, mediante treinamento para o trabalho, convivência e facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos.

(...)

Artigo 280 - É assegurado, na forma da lei, aos portadores de deficiências e aos idosos, acesso adequado aos logradouros e edifícios de uso público, bem como aos veículos de transporte coletivo urbano”.

15.              Aliás, estão afinados ao quanto verbaliza a Lei n. 7.853/89, cujo art. 2º firma diretrizes ao poder público de tratamento prioritário e adequado à pessoa com deficiência, colhendo-se de seu inciso V o seguinte:

“V - na área das edificações:

a) a adoção e a efetiva execução de normas que garantam a funcionalidade das edificações e vias públicas, que evitem ou removam os óbices às pessoas portadoras de deficiência, permitam o acesso destas a edifícios, a logradouros e a meios de transporte”.

16.              E, ainda, com a Lei n. 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que fixa normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, mediante a supressão de barreiras e de obstáculos nas vias e espaços públicos, no mobiliário urbano, na construção e reforma de edifícios e nos meios de transporte e de comunicação, dispondo que:

“Art. 4º. As vias públicas, os parques e os demais espaços de uso público existentes, assim como as respectivas instalações de serviços e mobiliários urbanos deverão ser adaptados, obedecendo-se ordem de prioridade que vise à maior eficiência das modificações, no sentido de promover mais ampla acessibilidade às pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida.

(...)

Art. 7º. Em todas as áreas de estacionamento de veículos, localizadas em vias ou em espaços públicos, deverão ser reservadas vagas próximas dos acessos de circulação de pedestres, devidamente sinalizadas, para veículos que transportem pessoas portadoras de deficiência com dificuldade de locomoção.

Parágrafo único. As vagas a que se refere o caput deste artigo deverão ser em número equivalente a dois por cento do total, garantida, no mínimo, uma vaga, devidamente sinalizada e com as especificações técnicas de desenho e traçado de acordo com as normas técnicas vigentes”.

17.              Essa especial proteção [que também implica a adaptação dos meios ventilados § 2º do art. 227 da Constituição da República (art. 244, Constituição Federal)] promove uma verdadeira interseção entre normas federais (gerais), estaduais (regionais) e municipais (locais), em atenção, no tocante à polícia das construções e edificações, à competência normativa dos Municípios arrimada no inciso VIII do art. 30 da Constituição Federal.

18.              No ponto, é apropriada a invocação da literatura especializada explicando que:

“A ausência do Município neste rol não lhe retira autonomia ou o coloca em um segundo plano legislativo, pois tem ele autonomia político-constitucional, com poderes de auto-organização e auto-administração (embora às vezes com a restrição de uma normatividade superior), podendo legislar sobre assuntos de interesse local e de maneira suplementar à legislação federal e estadual (para suprir omissões e sem as violentar), no que se refira a peculiaridades locais (arts. 29 e 30, I e II), contando com poderoso instrumento legislativo que é a lei orgânica municipal e toda a legislação periférica necessária à sua implementação” (Lauro Luiz Gomes Ribeiro. Manual dos Direitos da Pessoa com Deficiência, São Paulo: Verbatim, 2010, p. 51).

19.              Longe de promover contraste entre as leis federais acima transcritas e a lei local vergastada nesta demanda, demonstra-se que, em realidade, esta não foi além dos limites da competência municipal, o que afasta, na espécie, a alegação de incompatibilidade com o art. 24, XIV, da Constituição Federal, c.c. o art. 144 da Constituição Estadual.

20.              Friso, contudo, que se, ad argumentandum tantum, houvesse espaço para se cogitar de invasão da esfera normativa alheia em face de eventual omissão ou lacuna legislativa federal ou estadual, não seria possível, de per si, concluir-se imediatamente pelo vício de lei local à vista da necessidade de análise da competência municipal sedimentada no art. 30 da Carta Magna de 1988.

21.              Da mesma maneira, havendo o exercício da competência normativa federal nem por isso é possível concluir-se antecipadamente pelo vício, ainda mais sopesando que a competência legislativa da União é relativa a normas gerais (art. 24, § 1º, Constituição Federal) e, assim mesmo, não autoriza a rejeição do reconhecimento de algum espaço à competência legislativa municipal nos domínios que lhe franqueiam o art. 30 da Carta Magna – ainda que para isso, e sem receio de heresia, se examine a eventual exorbitância da legislação federal (ou estadual) e da municipal para fins de controle objetivo de constitucionalidade de lei municipal.

22.              Assentadas essas premissas, a lei local não inovou em relação ao quanto disposto na órbita normativa federal a respeito do símbolo e de seu uso, como acima já apontado, máxime tendo em conta que no art. 1º ela é autêntica norma remissiva à lei federal pelo emprego da fórmula normativa “nos termos da Lei federal 7.405, de 12 de novembro de 1985”.

23.              O caráter inovador está nos arts. 2º e 3º que refletem o exercício do mandamento tutelar das pessoas com deficiência contido nos preceitos acima transcritos das Constituições Federal e Estadual, sem penetrar no espaço normativo da União que, no campo próprio das normas gerais, descreveu diretriz na Lei n. 7.853/89 e estabeleceu reserva de vagas de estacionamento na Lei n. 10.098/00, não imolada pela lei local).

24.              Nesse aspecto, a lei local traçou regras de polícia das construções e das edificações, refletindo o exercício de competência normativa daquilo que lhe é próprio, sem ofensa a competências alheias, obrigando estabelecimentos particulares de acesso público à reserva de locais para estacionamento, embarque e desembarque de pessoas com deficiência nos limites da predominância do interesse local (art. 30, I, Constituição Federal) ou, se assim aprouver, da competência suplementar cujo desempenho deve, outrossim, observar a predominância do interesse local (art. 30, II, Constituição Federal).

25.               Não obstante, consigno que a polícia de construções e edificações está inserida na competência normativa municipal por revelar a ocupação do solo urbano (art. 30, VIII, Constituição Federal), e que, na espécie, foi mecanizada na lei local sem exorbitância do espaço normativo municipal ou invasão no domínio legislativo federal ou estadual.

26.              Destarte, não se configura violação do art. 24, XIV, da Constituição Federal, c.c. o art. 144 da Constituição Estadual.

27.              Tampouco se manifesta, in casu, incompatibilidade com o art. 25 da Constituição Estadual.

28.              A lei não cria obrigações para o Poder Executivo, estabelecendo deveres a particulares. No ponto, integralmente procedente o respeitável despacho denegatório da liminar ao ponderar que:

“Não colhe tampouco, prima facie, a alegada violação ao preceito do artigo 25 da Constituição do Estado de São Paulo, visto que não há evidência nos autos de que a fiscalização do cumprimento da legislação impugnada implicaria no aumento das despesas do ente público local, máxime por se tratar o exercício do poder de polícia de atribuição ínsita ao Poder Executivo” (fls. 30/31).

29.              Com efeito, o art. 25 da Constituição do Estado tem aplicação circunscrita ao “projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública”, como explicita a própria norma com nítido intuito de responsabilidade fiscal ao exigir que, nessa circunstância, conste a indicação de recursos disponíveis, próprios para atendimento dos novos encargos.

30.              Sua incidência é adstrita a leis que diretamente importem repercussão positiva na despesa pública, e não em qualquer lei. Em se tratando de lei que manifestamente não produza esse impacto, é descabida sua arguição por traduzir matéria de fato e de prova inadmissível no seio do controle objetivo de constitucionalidade.

31.              A lei prescreve obrigação não se podendo cogitar que do exercício de sua execução e fiscalização derivem despesas novas sem cobertura financeiro-orçamentária, pois, já são precedentemente absorvidas pela polícia administrativa preexistente.

32.              É verdadeiro sofisma a alegação de que toda e qualquer lei que gere despesa só possa advir de projeto de autoria do Executivo. O Supremo Tribunal Federal tem estimado que:

“não procede a alegação de que qualquer projeto de lei que crie despesa só poderá ser proposto pelo Chefe do Executivo. As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).

33.              É que diferentemente do ordenamento constitucional anterior, “não havendo mais a expressa disposição no texto constitucional de que é iniciativa privativa do Presidente da República as leis que disponham sobre matéria financeira, tal reserva não mais subsiste, não sendo cabível interpretação ampliativa na hipótese, conforme entende inclusive nossa Suprema Corte”, assinala José Maurício Conti ao comentar a inexistência de reserva de iniciativa para leis que criam ou aumentam despesa pública (Iniciativa legislativa em matéria financeira, in Orçamentos Públicos e Direito Financeiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pp. 283-307, coordenação José Maurício Conti e Fernando Facury Scaff).

34.               Neste sentido, calha invocar o entendimento do colendo Órgão Especial:

“Nem tampouco há que se falar que a previsão legal contestada nos autos implicaria no indevido aumento de despesas do ente público local, sem a respectiva indicação da fonte de custeio, em violação ao comando contido no artigo 50 da Lei Orgânica do Município de Jundiaí, que reproduz a regra contida no artigo 25 da Constituição do Estado de São Paulo.

Com efeito, a perene fiscalização das atividades comerciais estabelecidas em seu território insere-se no poder-dever da Administração Municipal, que dela não pode furtar-se; assim, não merece acolhida o argumento de que a proibição de comercializarem a substância ‘organofosforado carbamato’, imposta aos ‘pet shops’, casas de ração e similares no Município de Jundiaí, implicaria no aumento de despesa do ente público local, ao estabelecer encargo ao Poder Executivo.

Ora, tais quais todas as demais empresas instaladas, os estabelecimentos destinatários dessa norma legal devem estar sob permanente vigilância dos órgãos públicos locais responsáveis, aos quais incumbe verificar o pleno atendimento da legislação de regência, não se podendo então falar na criação de nova obrigação ao Município pela Lei n° 7.341/09.

A propósito, já decidiu esta Corte Paulista, em caso análogo, que ‘o dever de fiscalização do cumprimento das normas é conatural aos atos normativos e não tem, no caso, efeito de gerar despesas ao Município. Além disso, a matéria tratada na lei impugnada é de polícia administrativa, e as obrigações foram impostas aos particulares, exclusivamente’ (v. Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 0006247-80.2012.8.26.0000, relator Desembargador Guerrieri Rezende). (...)” (TJSP, ADI 0580128-04.2010.8.26.0000, Rel. Des. Paulo Dimas Mascaretti, m.v., 30-01-2013).

35.              Também é improcedente a ação sob a alegação de vício de iniciativa legislativa e ofensa ao princípio da separação de poderes.

36.              A iniciativa parlamentar não ofende o quanto contido nos arts. 5º, 24, § 2º, 2 e 47, II, XIV e XIX, a, da Constituição Estadual, por não veicular matéria inserida na reserva da Administração nem na reserva de iniciativa legislativa do Chefe do Poder Executivo.

37.              Como acima ponderado, as regras federais do processo legislativo são de observância obrigatória, e a lei local não ventila em seu conteúdo a disciplina da organização e do funcionamento da Administração Pública ou de serviço público nem a atribuição de órgãos do Poder Executivo ou atos da gestão ordinária.

38.              Impossível invocar-se como parâmetro o art. 61, § 1º, II, b, da Constituição da República, por ser norma específica destinada exclusivamente à organização administrativa e aos serviços públicos dos Territórios.

39.              Neste sentido, pronuncia o Supremo Tribunal Federal que “a reserva de lei de iniciativa do chefe do Executivo, prevista no art. 61, § 1º, II, b, da Constituição, somente se aplica aos Territórios federais” (STF, ADI 2.447-MG, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 04-03-2009, v.u., DJe 04-12-2009).

40.              A polícia das construções e das edificações e dos estabelecimentos particulares de acesso público é matéria que não está arrolada nos preceitos constitucionais que cunham a reserva de iniciativa legislativa em favor do Chefe do Poder Executivo, situando-se na iniciativa comum ou concorrente.

41.              Regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que:

“a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

42.              Fixadas estas premissas, as reservas de iniciativa legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos públicos diversos do Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas restritivamente na medida em que, ao transferirem a ignição do processo legislativo, operam reduções a funções típicas do Parlamento e de seus membros. Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:

“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).

As hipóteses de limitação da iniciativa parlamentar estão previstas, em numerus clausus, no artigo 61 da Constituição do Brasil --- matérias relativas ao funcionamento da Administração Pública, notadamente no que se refere a servidores e órgãos do Poder Executivo” (RT 866/112).

“A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição - e nele somente -, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. - A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima - considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa - se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa” (STF, MS 22.690-CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, 17-04-1997, v.u., DJ 07-12-2006, p. 36). 

43.              Tampouco se capta competência privativa do Chefe do Poder Executivo. O art. 47 da Constituição do Estado consagra a atribuição de governo do Chefe do Poder Executivo, traçando suas competências próprias de administração e gestão que compõem a denominada reserva de Administração, pois, veiculam matérias de sua alçada exclusiva, imunes à interferência do Poder Legislativo.

44.              A norma local impõe obrigação a particulares, no âmbito da polícia administrativa e demanda, por isso mesmo, a observância de reserva formal de lei, não sendo possível mero ato normativo da Administração Pública, por traduzir o poder extroverso do Estado.

45.              Colhe-se da jurisprudência da Suprema Corte que a matéria respeitante à polícia administrativa em geral é da iniciativa legislativa concorrente:

“Recurso extraordinário. Ação direta de inconstitucionalidade contra lei municipal, dispondo sobre matéria tida como tema contemplado no art. 30, VIII, da Constituição Federal, da competência dos Municípios. 2. Inexiste norma que confira a Chefe do Poder Executivo municipal a exclusividade de iniciativa relativamente à matéria objeto do diploma legal impugnado. Matéria de competência concorrente. Inexistência de invasão da esfera de atribuições do Executivo municipal. 3. Recurso extraordinário não conhecido” (STF, RE 218.110-SP, 2ª Turma, Rel. Min. Néri da Silveira, 02-04-2002, v.u., DJ 17-05-2002, p. 73).

46.              Opino pela improcedência da ação.

                   São Paulo, 05 de março de 2013.

 

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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